sábado, 6 de novembro de 2021

FÉ INCONDICIONAL

 

FÉ INCONDICIONAL

(Lc 17, 1-6 –“depois disse a seus discípulos: é inevitável que haja escândalos, mas ai daquele que os causar! Melhor lhe fora ser lançado ao mar com uma pedra de moinho enfiada no pescoço do que escandalizar um só desses pequeninos. Acautelai-vos!

Se teu irmão pecar repreende-o e se ele prender perdoa-lhe. E caso ele peque contra ti sete vezes por dia e sete vezes retornar dizendo: “estou arrependido, tu lhe perdoarás”.

Os apóstolos disseram ao Senhor: “aumente em nós a fé! ” O Senhor respondeu; com a fé que tendes como um grão de mostarda se dissésseis a esta amoreira: ”arranca-te e replanta-te no mar e ela vos obedeceria”).

Exortações aos discípulos. Disse Jesus a seus discípulos: “É inevitável que venham incitamentos ao pecado; mas ai do homem por quem vem! Melhor lhe fora que lhe atassem ao pescoço uma mó e o lançassem ao mar, do que ser ele ocasião de pecado a um desses pequeninos.

Tende cuidado de vós mesmos! Se teu irmão pecar, repreende-o; e, se se

arrepender, perdoa-lhe. E, se pecar contra ti sete vezes por dia, e vier ter contigo sete vezes dizendo: Estou arrependido – perdoa-lhe”.

Pediram os apóstolos ao Senhor: “Aumenta-nos a fé”.

Respondeu o Senhor: “Se tiverdes fé, como um grão de mostarda e disserdes a esta amoreira: Desarraiga-te e transplanta-te para o mar – obedecer-vos-á.”

A fé cresce na razão em que homem se liberta do egoísmo. Disseram os discípulos ao Senhor: “Aumenta-nos a fé! ”

Respondeu-lhes Jesus: “Se tiverdes fé, que seja como um grão de mostarda, é disserdes a esta amoreira: arranca-te e transplanta-te para o mar! Ela vos

obedecerá”.

Logo depois desta elevada metafísica, passa Jesus ao plano de uma física tão corriqueira, como a dos trabalhos de agricultura e pecuária – que, à primeira vista, não atinamos com a afinidade entre esta e aquela.

Mas, no fim dessa estranha digressão de aparente heterogeneidade, volta o Mestre a ligar o fio da homogeneidade, concluindo: “Quando tiverdes feito tudo que vos foi mandado fazer, dizei: somos servos inúteis; cumprimos a nossa obrigação; nenhuma recompensa merecemos por isto”.

Esta conclusão final é a resposta ao pedido inicial dos discípulos: Senhor,

aumenta-nos a fé!

Antes de tudo, que quer dizer fé?

Há quase 2000 anos que a cristandade identifica fé com crença – e esta identificação marcou o início de uma das maiores tragédias espirituais do cristianismo de todos os setores, sobretudo do protestantismo, que se baseia principalmente no princípio de “quem crer será salvo”.

A nossa palavra “fé” vem do termo fides, radical de fidelidade. Fé é, pois, uma atitude de fidelidade, harmonia, sintonia. Quando o meu aparelho de rádio está sintonizado com a onda eletrônica emitida pela estação emissora, então o meu rádio apanha nitidamente a música irradiada pela emissora – meu rádio tem “fé”, fidelidade, alta fidelidade, com a estação emissora. Mas quando o meu aparelho receptor não está afinado pela mesma frequência vibratória da emissora, não apanha a música, porque não tem “fé”, fidelidade, sintonia.

A “crença” nada tem de ver com a fé. A crença, substantivo derivado do verbo crer, é uma opinião vaga, incerta, indefinida; assim como quando alguém diz: creio que vai chover, creio que fulano morreu – mas nada disto é certo.

Por que é que a palavra exata “fé” foi substituída pelo vocábulo vago “crença”?

Por que dizemos “eu creio”, em vez de dizermos “eu tenho fé”?

Infelizmente, o substantivo latino fides não tem verbo, e como fé é derivado de fides, também em português, como na maior parte das línguas neolatinas, não existe verbo derivado da palavra fé. E temos de empregar um verbo de outro radical. Do latim credere fizemos crer, crença.

E com isto perdemos a verdadeira noção da palavra fé, no sentido de fidelidade.

Poderíamos inventar o verbo “fidelizar” para dizer “ter fé” – mas é um neologismo desconhecido.

O texto dos Evangelhos do primeiro século foi escrito em grego, e nesta língua fides, fé, é pistis, que tem o verbo pisteuein, ter fé, fidelizar. Mas a tradução latina, não encontrando verbo derivado de fides, viu-se obrigada a recorrer ao termo vago credere, que em português deu crer.

Os discípulos de Jesus pedem, pois, ao Mestre: “Aumenta a nossa fidelidade, a nossa sintonia, a nossa harmonia com o mundo espiritual; robustece a consonância entre a nossa consciência humana e a consciência divina”. Os discípulos sentem que têm uma ligeira fidelidade com o mundo da realidade divina; mas sentem também a fraqueza e pequenez dessa sua fidelidade.

Então lhes respondeu o Mestre: “Se tiverdes fidelidade, genuína e autêntica, mesmo que seja inicialmente pequena como um grão de mostarda, porém genuína e autêntica, então tereis poder sobre todo o mundo material”. O que é importante não é a quantidade, mas sim a qualidade da vossa fé. A onipotência do espírito tem poder sobre qualquer potência da matéria. O que é decisivo é a intensidade qualitativa da vossa fé, não a extensão quantitativa.

E para lhes mostrar em que consiste essa qualidade intensiva da fé, recorre o Mestre não a uma definição abstrata e teórica, mas a uma exemplificação

concreta e prática. Faz ver que os atos desinteressados produzem o clima

propício para uma atitude espiritual de fé ou fidelidade. Quem trabalha para ser recompensado age em nome do ego humano, sempre egoísta; mas quem trabalha sem nenhuma intenção, explícita ou implícita, de ser recompensado, esse crea um ambiente propício para a atitude da fé.

Os discípulos pediram ao Mestre: “Aumenta-nos a fé! ”. E o Mestre lhes fez ver que eles mesmos devem aumentar a sua fé por meio de atos desinteressados.

A fé é uma atitude espiritual do Eu, mas qualquer ato interesseiro do ego mercenário enfraquece o ambiente para o nascimento e crescimento da fé.

A frase final sobre “servos inúteis” é um golpe de misericórdia para o nosso

Inveterado egoísmo humano. Todo ego se sente “servo útil” e, de tão útil que se julga, quer ser sempre recompensado por seus atos. O ego nada faz de graça; a zona da graça é do Eu espiritual que, por isto mesmo, pode trabalhar de graça.

“Por Moisés foi dada a lei (ego), pelo Cristo veio a verdade, veio a graça (Eu) ”.

Todo ego mercenário é um ótimo discípulo de Moisés – e um péssimo discípulo do Cristo.

Quem vive no signo da graça age de graça – quem não vive no signo da graça, vive na desgraça.

Por isso, todo ego mercenário é um desgraçado.

O filósofo francês Bergson diz que todas as igrejas detestam o egoísmo terrestre, mas todas recomendam o egoísmo celeste. As teologias ensinam, geralmente, que o homem deve ser bom, altruísta, virtuoso, com o fim de merecer o céu – e não percebem que também isto é egoísmo, egoísmo póstumo, egoísmo sublimado.

O homem realmente liberto e totalmente realizado não espera recompensa

alguma pelo fato de ser bom, nem antes nem depois da morte. O homem realmente bom é incondicionalmente bom. Não é bom para ser recompensado com algum céu objetivo, com um prêmio celeste. O homem incondicionalmente bom realiza o reino dos céus dentro de si subjetivamente, e esta auto-realização que é o seu céu. Não espera nenhum céu externo, de fora, realiza o seu céu interno, de dentro.

Isto não é egoísmo, porque onde o ego foi totalmente superado não há mais

egoísmo.

É o que o Mestre chama ser “servo inútil”, sem crédito, sem direito a nenhuma recompensa objetiva.

Kant, na sua filosofia analítica, censura acremente Spinoza pelo fato de ter

glorificado o homem incondicionalmente bom; mas o monista judeu de Amsterdam era mais crístico que o teísta cristão de Königsberg.

Toda esta parábola visa a mostrar que a verdadeira fé, ou fidelidade com o

espírito de Deus, cresce na razão direta da libertação do homem de qualquer espírito mercenário.

FONTE;

Huberto Rodhen

Bíblia de Jerusalém

 

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