OS GUIAS DO MUNDO
Tudo é luta na
vida. Esta parece querer exprimir-se sobretudo em forma de luta, e exercitar
desta maneira a sua maior atividade. É a vida uma contínua tensão para vencer
em qualquer plano. Nas suas fases mais primitivas, vencer a fera inimiga, na
atual fase de vida em sociedade, vencer o próximo a fim de suplantá-lo; no
biótipo do super-homem vencer para subjugar e superar as leis inferiores da
animalidade e dar ao mundo novas diretrizes. Lutar para vencer, ou seja, para
elevar-se, ascender, evolver. A lei suprema da evolução toma a forma de luta
desesperada, para remir-se da dor e do mal e conquistar a felicidade. Esta
encontra-se escrita e arde perenemente no fundo da alma humana, como um
instinto, um anseio inextinguível, um sonho, uma fé, como uma utopia que
sabemos fugir longínqua e inatingível, mas na qual o homem é obrigado a crer,
contra todas as aparências e dificuldades, até ao desespero. Isto porque, sem
tal fé num futuro melhor, mesmo que pareça loucura, não teria o homem mais
conforto na fadiga de ascender, nem mais finalidade na sua caminhada, nem luz
alguma de esperança no amanhã.
 
São por isso
importantes elementos a utopia e a fé e fazem parte integrante da mecânica da
vida. Por mais que desprezem tudo isso os céticos e os práticos positivos, se
existe isso na vida, alguma função deve ter, e é justamente a de antecipar o
futuro. A série das mesquinhas, ilusórias e instáveis aquisições, que estão ao
nosso alcance na existência terrena, não é suficiente para dar finalidade e
justificação a todo o trabalho imenso que realiza a nossa existência, como
indivíduos e como sociedade. E não podemos dizer que vivemos para perder tempo,
inutilmente, e para sofrer. Se cada fenômeno, se cada ato nosso é um caminho
para uma finalidade, o fenômeno e o ato máximo, que são a nossa vida e o
funcionamento do universo, como poderiam deixar de ter uma finalidade? Por mais
escuro que seja o futuro, a utopia e a fé são uma ponte lançada sobre essa
escuridão, para sondá-la, nela apoiar o pé e aí construir, à proporção que ela
se torna presente pelo nosso aproximar-se.
 
Respondem, pois, a
utopia e a fé a necessidades criadoras, que representam verdadeiras funções
biológicas de sondagem no desconhecido e de preparação para o porvir. A luta
pelo ideal, isto é, pela superação das velhas formas de vida, a fim de
progredir realizando outras mais evolvidas e aperfeiçoadas, é uma das formas, e
a mais elevada, da luta pela vida. Se nos primeiros degraus da evolução
biológica consistia tal luta apenas em salvar, por qualquer meio, rude e feroz,
a própria existência contra os elementos hostis e o assalto das feras; se hoje
a mesma luta assumiu formas de competição política e econômica, próprias da
vida social; para alguns biótipos mais adiantados, pode assumir essa luta outra
forma: a que se dirige contra o lado humano mais involuído, específico do
primitivo feroz, lado que ainda sobrevive em nossos instintos, ou seja, luta
para superar o plano biológico do animal, de que faz parte ainda o nosso corpo
físico. Significa isto libertar-se das formas de existência inferior, para ter
acesso a outras superiores, não só na forma de progresso individual de quem
realiza essa luta, mas também na forma de progresso coletivo para povos assim
guiados a formas mais evolvidas de convivência.
 
Tratando-se então de verdadeiras funções
biológicas, a vida as confia a algumas células do organismo – humanidade –, a
alguns elementos mais especializados e selecionados, como acontece para as
células nervosas no corpo humano. Produz assim a vida, em quantidade e
qualidade proporcionadas aos tempos e ao trabalho a executar, alguns tipos de
super-homens, particularmente aptos a essas funções. Podem eles tomar a forma
de heróis, de gênios, de santos. Sua função pode manifestar-se em várias
formas, de acordo com o lugar, a época e as realizações a executar. São os
maiores lutadores, porque se propõem a subjugar não as feras inimigas ou os
seus semelhantes, mas a superar leis e formas de vida de um plano biológico,
para pôr em prática leis e formas de vida de um plano mais adiantado de
evolução. Despertam eles em si e na humanidade, qualidades latentes ainda
adormecidas, dão uma direção à contínua transformação dos instintos, indicando
ou impondo novos hábitos, que depois, pela longa repetição através da técnica
dos automatismos, se fixam como qualidades novas. Desse modo, impulsionam eles
a humanidade para sempre mais longe da ferocidade, da ignorância, do egoísmo,
da materialidade, e sempre mais próximo da bondade, da inteligência, do altruísmo
do homem coletivo, da espiritualidade. Podem assumir a forma de condutores de
povos, de grandes pensadores, cientistas, artistas, mártires do ideal e do
dever, místicos, santos. Mas, de qualquer modo, emergem ensanguentados das mais
duras experiências e lançam o novo grito do porvir. São eles a flor, o produto
destilado da raça, e anunciam, percorrem e fazem percorrer novo caminho para
novos horizontes. São verdadeiros pastores do rebanho humano, que doutra forma
permaneceria sempre atento a pastar com a cabeça inclinada para a terra, seu
único anseio.
 
Esses homens de
exceção personificam, no vértice, o drama das deslocações evolutivas ou
revoluções biológicas. Passam no ciclo da vida como um raio que ilumina dum
extremo a outro a terra escura, dinamizando a massa inerte da carne do vulgo
humano. São eles a centelha do espírito que vivifica as formas da matéria. São
os maiores vencedores, porque realizam e vencem a luta mais alta, a que
impulsiona a humanidade a progredir. São os grandes da vida, que os fez os mais
fortes e lhes confia trabalhos de gigante. O seu trabalho é o resultado de
atitudes superiores, de vontade de ferro, de fadiga ardentemente desejada,
tenaz e convergente, de irresistível paixão do bem. O homem normal, imerso nas
batalhas do contingente cotidiano, ignora essas lutas apocalípticas realizadas
no terreno da evolução para subir a Deus. Tremenda coragem é necessária para
aventurar-se contra as forças biológicas, para arrancar o ser de um plano
inferior e arrastá-lo a um superior. Mas só assim podem superar-se as barreiras
que atrasam a ascensão e arrombar as portas de um mundo mais elevado, para
entrar por elas.
 
Esses homens
superiores são sempre guias do mundo, ainda que não pertençam à classe dos
condutores políticos dos povos. Não é só no terreno político que deve
adiantar-se o mundo, mas em todos os campos do seu multiforme progresso.
Tornam-se esses homens instrumentos da vida, por meio do qual ela realiza seus
fins. Fazem-se intérpretes de seus desígnios e executores de seus planos. Têm
sempre, por isso, nova mensagem a comunicar à humanidade e a sua função é
sempre de modeladores, qualquer que seja o seu tipo particular e a missão a
executar. É sempre aos mais adiantados que compete, por força da lei da vida,
guiar o mundo em todas as suas formas; a vida assim quer e assim de fato
acontece, mesmo que eles não tenham o poder político, ou bélico, ou econômico,
ainda que os seus semelhantes os reneguem e matem. É realidade biológica
indiscutível o fato de que eles são mais evoluídos em relação à média, e isto é
muito importante para a vida e suas finalidades. As massas nada sabem, antes
são levadas a desconhecê-los, porque eles são diferentes e porque delas se
distanciaram pela evolução. As massas acham-nos diferentes, porque eles participam
pouco em seus vícios e defeitos, que tanto irmanam as inferiores. Por isso,
procuram rejeitá-los, e às vezes os perseguem até matá-los.
 
Esta é a luta
trágica dos mais evoluídos contra os menos evoluídos, a fim de fazê-los
progredir. Mesmo estes últimos desejariam dominar e se julgam modelo de vida,
biótipo exemplar. O tipo normal, ainda hoje, de valor tão duvidoso, não é
considerado como o que todos deveriam ser? E quem não é assim, é anormal. E
todos se apressam a entrar nas filas da normalidade, pouco importa seu valor,
contanto que não fiquem isolados, e, portanto, fora da lei e condenados. O peso
tremendo da ignorância da grande massa humana é o lastro enorme que pende dos
ombros do mais evoluído que tenta novos caminhos, com risco e perigo seus
apenas, ao passo que os outros ficam a olhar, prontos para condená-lo logo que
caia, prontos para agredi-lo por inveja, logo que ele triunfe. Com esse peso às
costas, que representa o misoneísmo (aversão, repulsa a tudo o que é novo ou contém
novidade; O mesmo que neofobia), inércia do
passado, deve ele subir os íngremes degraus da evolução sozinho. A seu lado
estão apenas as forças da vida, o pensamento da história, a vontade de Deus que
impõe o progresso.
 
Deve esse homem
enfrentar e conseguir superar todas as resistências que lhe opõem os seus
semelhantes, nem eles mesmos sabem por que, mas que a vida usa como meio de
verificação do valor do escolhido, que deve dar prova de saber vencer, dado que
o alto monte da evolução tem que ser escalado mediante esforço nosso. Quando,
vencendo tudo com suas forças, tiver o homem dado prova de o ser
verdadeiramente superior, então as multidões ignaras, também desta vez sem
saber por que, aprovam-no e exaltam, por um instinto profundo comandado pela
vida. Então, aquela mesma distância que antes as afastava do tipo mais eleito,
essa mesma é que agora as atrai, pois neste caso distância significa justamente
posição mais avançada, que a vida, em seu instinto, aceita, respeita e exalta.
As multidões, então, aceitam, respeitam e exaltam. Tudo na vida é utilitário.
Elas fazem isto, porque precisam do super-homem e o buscam porque ele é a única
antena da vida e o pioneiro do porvir, é o pastor único que as pode guiar. As
multidões estão sempre à espera de chefes, de modeladores, de condutores em qualquer
campo, para saberem o que devem fazer. Necessitam e procuram um modelo para
imitar, um legislador que estabeleça a norma que devem seguir na vida, pois bem
poucos sabem agir sozinhos. Por isso, sempre estão à espera, observam e, se o
acham, ouvem, recebem, bebem e assimilam. E se o homem escolhido é adequado, e
se com a sua vitória deu prova de valor, então as multidões o constituem seu
modelo ideal, sua bandeira e ídolo sobre o qual projetam e concentram as suas
aspirações, que a vida faz nascer em seu instinto naquela hora, com o fim de
obter progresso. Forma-se então desse homem, a lenda, o mito, a divinização, em
que permanece o essencial dele, o valor biológico, o impulso vital. Morre o
homem, mas fica a sua imagem, até que tenha cumprido a sua função biológica. E
desse homem permanece um símbolo, uma bandeira, a ideia, ativos até sua
completa atuação na vida dos povos.
 
Explica-se assim o
fascínio de tantos seres superiores, diante de um mundo que, de início, os
julgou loucos, e que julgaria louco qualquer um que tornasse a imitá-los. Mas
resta o fato de que é necessidade absoluta da vida o renovar-se para evolver.
Só a evolução pode explicar-nos como esses seres de exceção ser aceitos pelas
multidões absolutamente incapazes de compreendê-los. A admiração delas não pode
explicar-se apenas como concordância passiva para imitar os mais cotados, que
primeiramente entoaram o hino da exaltação. A concordância das multidões é
própria delas e nasce por um instinto que lhes está no âmago e que as faz falar
dessa maneira. Além disso, ninguém saberia explicar claramente o porquê dessa
admiração. Mas de fato ela existe. E, no entanto, parece estranho ver como um
São Francisco possa exercer um fascínio sobre o tipo normal, que está muito
longe de pensar que um santo desses possa jamais ser verdadeiramente imitado
por ele. Como podem as virtudes de renúncia desse santo, tão antivitais no
plano comum biológico, tão nos antípodas dos instintos normais de conquista,
egoísmo e agressividade, como podem fascinar tantas criaturas, num mundo em que
perder é morrer e diante de princípios da vida tão ferreamente utilitários? Só
pode explicar-se tudo isso, pensando na função biológica que a santidade tem em
relação ao progresso religioso, moral e espiritual, que é sem dúvida, um
aspecto importantíssimo do progresso social, sobre o qual ele tem grande
influência. Mesmo na santidade há uma função biológica, e onde é função, é
também fascínio, isto é, atração, um apelo ao instinto, ou seja, um convite a
aderir, para que se cumpra a evolução. A veneração pelo santo é uma atitude que
existe enquanto corresponde aos fins da vida, tanto quanto é admirado o homem
pelo ser muito mais fraco do que ele, a mulher.
 
O ideal é loucura,
e o mundo o sabe. Entretanto, tendo que evolver, o mundo tem fome do que é
novo, e para conquistá-lo tem necessidade de tentar também o absurdo. As
grandes conquistas da civilização foram vitórias conseguidas constrangendo o
absurdo a tornar-se lógico e atual, pelas condições de vida que se mudaram. Se não
houver razão biológica, jamais o subconsciente das massas tributária homenagens
ao gênio, ao herói, ao santo, homenagem que continua mesmo quando tenha morrido
o homem, e dele se não possa tirar mais vantagem alguma. Não basta o interesse
de um grupo de sequazes, para explicar a sua sobrevivência ideal, que é uma
corrente coletiva e não um produto de grupo. E não deixe de se pensar que
aquele ideal que as multidões veneram, se representa um guia, significa também
uma censura contínua e uma condenação à sua conduta. E, no entanto, a veneração
permanece. Então, o instinto das massas sente por intuição a superioridade do
super-homem, mesmo se não sabe compreender pela análise, sente que ali está
assinalada uma das metas para seu porvir. Sabe que ela está longe, tanto que
não sabe realizá-la hoje e lhe parece utopia. Mas ali está o farol luminoso, e
aquela luz o atrai, porque, ainda que hoje pareça irrealizável utopia, representa,
todavia, a única esperança do futuro.
 
Sabem todos muito
bem que na vida prática não se consegue imitar um São Francisco, e bem poucos
pensam em fazê-lo. E, no entanto, a sua figura nos enche a alma de saudade por
algo de belo, de grande e de longínquo, enche-nos a mente com a imagem de um
paraíso de alegrias espirituais, e nesse sonho se aquieta a nossa alma cansada.
É tão dura a realidade cotidiana, é tão amarga a luta pela vida, tão triste é o
mundo cheio de maldades e dor, que se torna alegria evadir-se em sonho e, ao
menos nele, ver realizada uma beleza irreal. Por mais que tudo isso nos pareça
absurdo e entre no terreno do irracional – e o homem que conheça o real o saiba
– no entanto, ele não sabe resistir à alegria de poder repousar da vista
sufocante das baixezas humanas, refugiando-se mais alto, num mundo melhor.
Vistas da profundeza da miséria cotidiana de uma vida monótona e plana, por
gente que se arrasta na estrada de destinos cinzentos e insignificantes, essas
figuras, superiores em qualquer campo, aparecem como luzes ofuscantes que
reanimam, provando que o progresso não é vã utopia e que o ideal é uma força
que verdadeiramente impulsiona e sustém a vida. Se tão grande parte de nós, é
representada pelo subconsciente, em que persistem e de que ressurgem os
atávicos instintos animais, outra parte de nós é sem dúvida representada pelo
superconsciente, em que desponta, por intuição, o pressentimento da ascensão e
dos melhoramentos num plano mais elevado.
 
Tudo isso parece
sonho e fantasia. E, no entanto, são estas evasões do mundo positivo da
realidade concreta, os momentos mais criadores da vida. Quando a alma parece
perder-se no irreal e no irracional, afastando-se do que parece única verdade
segura, então afigura-se-nos que algo do melhor de nós desperte de um longo
sono e se lança à obra de romper os limites do passado e transpor os velhos
horizontes. Realmente são esses estranhos impulsos do desejo ainda inexpresso,
que lançam o mundo nas novas estradas da evolução e que permitem realizar-se o
milagre que sempre se repete, pelo qual, da utopia de hoje se extrai a
realidade de amanhã. Se é verdade que estamos imersos nas necessidades férreas
do contingente, é também verdade que, no fundo da alma humana, há um
irrefreável e insaciável anseio de subida. Daí nasce uma contínua náusea do
passado e um constante e desesperado esforço para subir. Há uma luta, na qual a
luz quer vencer as trevas. Ainda que vagamente, as multidões sentem a beleza do
homem superior, mas sabem que há muito cansaço e dificuldade em segui-lo.
Apegam-se então à sua memória, veneram as suas relíquias, esfregam-se às pedras
do seu túmulo, cantam-lhe hinos, para assim desafogar como podem essa vaga
saudade de superação que existe em cada ser humano, este anseio de infinito que
nos arrasta a todos.
 
Tudo isto é um
sonho, sabemo-lo. Mas sonhar é pensar e desejar. E o pensamento e o desejo têm
poder criador. Quando fortemente e durante muito tempo pensamos em alguma coisa
e cremos nela, no fim ela passa a existir. Assim, aqueles modelos ideais, que a
humanidade forma com os seus elementos mais evoluídos, servem-lhe para criar
correntes psicológicas, que depois, pela longa repetição, cada vez mais são
assimiladas e fixadas nas qualidades da estirpe. O que plasma a vida é a ideia,
a qual precede e antecipa as suas formas futuras. Lança-se assim o pensamento no
ignoto e nele se agarra como utopia, que é sem dúvida também esperança; assim o
espera, o saboreia, o antecipa e finalmente nele se fixa como realização
concreta. Mediante esse processo gradual de conquista, lentamente os ideais
tornam-se realidade.
 
Morto o
super-homem, permanece o seu modelo. Iniciada depois a corrente de psicologia
coletiva, pelo consenso público das pessoas mais destacadas, reforçada pela
adesão dos grupos dos sequazes e pela concordância instintiva de muitos, ela
cresce por si, porque a imitação, meio pelo qual funcionam as multidões, se
incumbe de fazer o resto. As coletividades pensam e agem por sintonia, por
correntes. Vemos que cada indivíduo olha mais ou menos em redor de si, para ver
como os outros fazem, porque acha que a verdade é decidida pelo que a maioria
pensa e faz e que erra aquele que não age como a maioria. Cada indivíduo, mais
ou menos, tem em grande monta a opinião pública, torna-se escravo do julgamento
do próximo, tende sempre a mimetizar-se com a cor dominante e a seguir a
correnteza, pois apenas nela se sente aprovado e seguro. Bem poucos têm
autonomia de julgamento. As massas funcionam com a psicologia do rebanho.
 
Fizemos, assim,
nestas páginas, a análise racional do ideal, da sua formação, desenvolvimento e
função biológica, até à sua realização, conquanto esta pareça utopia. Quem
tiver compreendido como esse jogo de forças opera na evolução da vida, não
achará mais utópico falar do advento de um novo tipo de civilização no III
milênio, ou seja, a realização na Terra do reino de Deus. Se aquele Reino
corresponde a um anseio da alma humana, a um instinto da vida que aspira ao
melhoramento, se este é o sonho de quem mais pensa e de quem mais sofre, como
poderá tudo isso resolver-se no nada? Desde quantos milênios vem o homem
dilacerado invocando que a justiça triunfe? O homem faz a guerra, mas anseia a
paz, faz o mal, mas anseia o bem, odeia, mas está sedento de amor. Se existe
esse desejo no fundo da alma humana, e daí faz pressão com tenacidade para
realizar-se, e se ele também representa uma força da vida e um poder criador,
como poderá tudo isso ficar sem efeito? O exame crítico que até aqui vimos
fazendo, diz-nos que, mesmo falando apenas racionalmente, o fato de esperarmos
uma nova civilização no III milênio não é sonho nem utopia.
 
Vimos a técnica
usada pela vida para atingir essas formações. É toda ela o desenvolvimento de
uma semente, isto é, de um estado de latência, da qual, parece, podem
revelar-se todas as possibilidades. A existência não é só vontade de viver. É
também e sobretudo vontade de evoluir. Na vida há uma Lei, que não é só
pensamento que dirige, mas é também vontade que impõe a sua atuação. Vontade
fundamental desta Lei é o evoluir, porque o universo caído “deve” voltar à
perfeição de Deus. Por isso se vive, por isso a insaciabilidade no subir
representa o instinto fundamental da vida. Indivíduos mais adiantados neste
caminho seguem à frente, no caminho ascensional de todos. Inspira-os o
pensamento da vida, a sua vontade impele-os e os ajuda. Com a técnica acima
examinada, as multidões seguem, assimilam, avançam, e assim se cumpre a
evolução.
 
Neste sentido,
todos os tipos de super-homem são condutores de povos. No capítulo seguinte,
ocupar-nos-emos sobretudo dos condutores políticos, fazendo a crítica do modelo
que, em seu Príncipe, nos propõe Maquiavel como exemplo. Desenvolveremos assim
o lado sombrio ou negativo do capítulo “o Chefe” de A Grande Síntese, capítulo
que representa o lado luz ou positivo-afirmativo do problema. Só pode ser verdadeiramente
chefe quem pertence ao biótipo do super-homem, que acima traçamos, ainda que
não apresente os graus mais elevados. Não é necessário que seja um santo, um
gênio ou um herói. Mas é sempre um pastor, com funções administrativas em
parte, e sobretudo de ação. Mas é sempre a locomotiva de um trem, que arrasta
atrás de si todo o comboio de um povo.
 
O Chefe é um
condutor de massas, dentro dos limites de seu tempo, nação e função, atento
especialmente a realizações práticas e imediatas. Mas, se bem que em dimensões
mais reduzidas que o santo, gênio ou herói, deverá ser sempre um intérprete da
história de seu tempo e um executor da vontade dela. É sempre um chefe, cujo
pensamento chegará à atuação através da técnica acima examinada. Deve, portanto,
saber como funciona a psicologia coletiva. É o conhecimento dessa técnica que
lhe dará a chave do domínio sobre as multidões, indicando-lhe a que impulsos
elas reagem. De modo que um homem com voz elevada afirme, de maneira a ser por
todos ouvido, ideologias sãs – que sejam não apenas o produto de um só, mas
produto do pensamento da vida, isto é, que estejam na linha do progresso e de
acordo com as suas leis – esse homem deve forçosamente encontrar, no profundo
do instinto da coletividade em que fala a vida, consenso geral e aceitação. Se
o condutor tiver sabido compreender bem e aceitar o pensamento da história em
relação ao seu tempo, ele não pode deixar de encontrar-se com o mesmo
pensamento que aprova e sanciona a sua obra, falando-lhe não a ele diretamente,
mas do mais fundo do instinto das massas. O segredo para obter a sua adesão
está com efeito em procurar o que reclama o instinto vital delas. E esse
instinto coletivo, se não é nem racional nem consciente, é intuição que não é
de maneira nenhuma cega. O segredo do grande condutor de povos é tornar-se fiel
instrumento da vontade da vida, no caso particular que ele dirige, para
traduzir, com a ação, na realidade concreta, os imperativos da história,
sabendo achá-los e lê-los nos lugares em que estão impressos, isto é, no
pensamento dela, na linguagem dos acontecimentos, no subconsciente das massas.
Elas sentem, mas não sabem exprimir o seu pensamento com palavras, e procuram
um homem que o exprima e personifique para depois ajudá-las a traduzi-lo em ato.
Enquanto o condutor que age só por diretivas de seu egoísmo pessoal, tentando
forçar com elas a história e impô-las aos povos, tem poucas probabilidades de
êxito, o condutor que enquadrando-se no movimento das forças que querem o
progresso, faz de sua obra uma função biológica e de sua vida uma missão.
Então, é também lógico que este homem, avançando pelos grandes caminhos da
vida, tenha muito maior probabilidade de triunfar.
   
                  
Examinamos assim a
função biológica do ideal e do super-homem, no caminho da história e na
economia da vida, isto é, o lado luminoso, positivo e construtivo do problema.
É assim o mundo, visto dos planos mais altos. Mas já observamos que cruel e
feroz realidade biológica se aninha nos planos inferiores da animalidade
humana, mentindo e torcendo a cada passo essas afirmações, e pondo empecilhos à
sua realização. No próximo capítulo enfrentaremos em cheio outro tipo de
condutor de homens, qual nos mostra Maquiavel em seu Príncipe, que é o
super-homem no negativo, isto é, o herói do egoísmo, da violência e da
bestialidade, o super-homem das virtudes às avessas, segundo o princípio
satânico, como no-lo mostrou depois Nietzsche. Para que o nosso estudo seja
positivo, resistente aos ataques da crítica, devemos nós mesmos prever todas as
objeções que, partindo de indiscutíveis verificações de fato, tiradas da
realidade da vida, estão bem armadas para demonstrar que o ideal é um absurdo
inaplicável no mundo de hoje, nós mesmos temos que demonstrar que conhecemos
bem estas verdades do mundo inferior, tomando-as como nosso ponto de partida, e
elevando as nossas construções ideais justamente sobre aquele estado de fato,
cuja verdade é uma realidade que só os ingênuos sonhadores podem desconhecer ou
esquecer.
 
O defeito que é
apontado a tantos idealistas, e que queremos evitar, é justamente o fato de não
terem levado em conta essa realidade. As nossas afirmações, que parecem utopias
a quem fica parado na superfície das coisas, podem e devem achar, numa lógica
diversa, pertencente a planos mais elevados, e baseada em pontos de referência
diferentes, à sua demonstração positiva e as suas bases seguras. Ao homem
atual, que ignora o tremendo peso do imponderável, devemos mostrar a solidez
desses novos pontos de apoio, que é tão grande como aquela em que ele tem tanta
confiança, só porque está perto dela, e, portanto, ela a conhece bem, ao passo
que os outros pontos lhe escapam quase por completo. A nossa é fé, mas quer ser
uma crença férrea; é hoje antecipação utópica, mas quer ser antecipação
positiva, controlada e calculada; o nosso é sonho, mas feito de olhos abertos,
dando-se conta de todas as dificuldades que se opõem à sua realização.
 
Acredita o leitor
que não conhecemos nós a ilimitada velhacaria humana?
 
E sabemos também que
muitos sonhadores pouco positivos, prejudicaram mais do que ajudaram o
progresso humano, por serem irrealizáveis os seus sonhos, mostrando com isto
como o ideal é muitas vezes irrealizável.
 
Serviu assim a sua boa-fé
pouco controlada para dar razão aos céticos. Sabemos bem que os nobres apelos à
virtude, à religião, ao dever, ao sacrifício, à fraternidade, ao progresso,
foram explorados com frequência por gente astuta, para satisfazer os seus
próprios interesses e conseguir melhor lugar na vida. Conhecemos muito bem os
truques de tantos pseudo-super-homens que se arvoram em condutores apenas para
chegar às honras e ao bem-estar, que abraçam os próprios companheiros, amam os
próprios prosélitos, apenas para deles fazer um pedestal ao seu poder, e depois
os abandonam, após havê-los explorado apenas em sua exclusiva vantagem.
Conhecemos tudo isso, e não nos iludimos, julgando que na vida acharemos homens
diferentes. Esquecer os fatos e pedir o impossível é o que faz naufragar os
ideais. Não queremos, pois, construir sobre o sonho, mas no terreno sólido da
dura, ainda que hostil, realidade da vida.
 
Pretendemos uma
coisa mais simples e mais positiva. Não contar de maneira nenhuma com a bondade
dos homens, coisa muito rara para poder contar-se com ela, mas apenas com um
pouco da sua inteligência, dado que, ao praticar o mal, eles demonstram
possuí-la em grau elevado. Fazendo apelo apenas a essa inteligência, desejamos
demonstrar-lhes a vantagem enorme, mesmo no sentido utilitário e egoístico, de
fazer o bem aos outros, porque esse bem é também deles: demonstrar que há uma
Lei que eles ignoram, pela qual, ajudar ao próximo é ajudar a todos, e,
portanto, também a si mesmos; ensinar-lhes esse egoísmo mais vasto que, em seu
próprio eu, compreende também o seu semelhante, pelo que, na vantagem dele,
entra também a nossa vantagem. É um problema de lógica, é uma mecânica de
forças, fatos que, claramente explicados não podem ser repelidos por uma
inteligência normal. Se esta se rebelou até hoje a tantas exortações à virtude,
foi porque se fez dessa virtude uma agressão à vida, algo que tenta sufocá-la e
mutilá-la com renúncias que, por serem biologicamente contraproducentes, a
própria vida procura repeli-las através do instinto. É mister reconhecer que a
vida é utilitária e respeitar esse seu utilitarismo defensivo e protetor.
Infelizmente, os pregadores de virtude muitas vezes a sustentam só em vantagem
do próprio grupo e em dano dos demais. É natural então que o homem se rebele. A
virtude deve engrandecer a vida, desenvolvê-la e não a sufocar. Deve
transportá-la a planos mais altos para aumentá-la e dar-lhe potência, fazendo-a
expandir-se e desenvolver. Então, encorajar, e não reprimir essa conquista,
porque a vida só se pode mover pela conquista. Ai de quem se mantém exclusivamente
no lado negativo e renunciador da virtude. É indispensável mostrar o lado
expansionista da vida, porque é justo que só este atraia, dado que o homem é
feito para crescer, subir, melhorar, e não para regredir. A marcha da vida é
para a frente, não para trás. Aceite-se a virtude da renúncia e do sofrimento
no sentido utilitário que a sabedoria da vida colocou em nosso instinto, isto
é, em vista de uma mercê, que consiste na conquista, em termos de felicidade,
de uma vida mais ampla, num plano mais alto.
 
Foram escritos
muitos livros como este, que pregam belas coisas. Mas aqui oferecemos uma coisa
nova:   a demonstração racional da vantagem de fazer o bem, assim como o
grave dano pessoal de fazer o mal. Oferecemos, pois, ao leitor sábio, de um lado,
a perspectiva real de uma vantagem e do outro, de um dano para si. Conhecemos o
homem e sabemos que estas são as únicas molas que o movem, os únicos impulsos a
que obedece. Sabemos que estes livros, que falam de belos ideais, são depois
explorados por homens camuflados de idealistas, para seus interesses. Muitas
vezes aconteceu isto, e poderá ocorrê-lo também com este volume e com os demais
da nossa obra. Mas podemos advertir a esses, que nossos princípios se baseiam
na presença demonstrada de uma Lei, de cujas reações não há distância de tempo
nem de espaço, nem força ou astúcia que os possa salvar, se a violarem. Nós só
possuímos as armas do amor e da inteligência, próprias aos planos superiores.
Avisamos, porém, que, contra os transgressores da Lei, há uma polícia do
imponderável, armado com reações fatais das quais não se escapa. Nós, que não
temos poder algum e nem o direito de julgar quem o mereça ou não, queremos
apenas mostrar aos cegos como funciona a Lei e com que terríveis consequências
pode ela golpear-nos se o merecemos, pouco importando se nela não cremos e se
dizemos que nada disso é verdadeiro.
 
Os ideais fazem
parte dos equilíbrios da vida e quem os renega ou os trai ou os explora, vai de
encontro à vida e a vida irá contra ele. Não dizemos que a triste realidade
biológica da bestialidade humana não seja verdadeira. Mas sabemos que, ao lado
dessa verdade, há também a verdade mais alta dos ideais, que esta faz pressão
para realizar-se a luta, para vencer e sobrepujar a outra triste realidade
biológica. Ao lado do estado involuído do homem, em que se baseiam os negadores
do ideal, há uma realidade igualmente positiva, que é a lei do progresso. Se o
homem ainda está atrasado, permanece sempre a evolução como justificação de seu
existir, de seu lutar, de seu sofrer; permanece ela sempre a meta de sua vida.
O pensador equilibrado não deve ser apenas um idealista que perde contato com a
realidade, nem um positivista negador de qualquer idealismo. A realidade e a
ideia são os dois extremos de nosso caminho evolutivo, são o hoje e o amanhã de
nossa vida, são os dois polos de nosso mundo, entre os quais oscilam e se
realizam todos os nossos movimentos. Isolar-nos em qualquer dos dois, é
afastar-nos da verdade e ficar mutilados numa visão unilateral. Só quem se
colocou no meio dos dois extremos, pode vê-los e avaliá-los ambos ao mesmo
tempo, isto é, observar o céu em função da Terra e a Terra em função do céu. Só
ele pode dizer aos sonhadores do ideal: cuidado, que a Terra é bem diferente, e
é difícil fazer descer a ela tanta beleza. Só ele pode dizer aos homens
práticos do mundo: cuidado, que acima da Terra há o céu, sem o qual não pode a
Terra viver; cuidado que, além do presente, há o amanhã, em cuja direção
forçosamente tudo há de caminhar-se, e sem o qual o presente não teria
significação.
 
Sabemos bem que a
realização do ideal é árdua. Mas isso não quer dizer que ele não é coisa
verdadeira. Os maiores homens da humanidade lutaram e muitas vezes morreram só
por isso. Não o conseguiram, dir-se-á, mas a humanidade, mesmo não os imitando,
admira-os e venera-os. O homem é animal, mas, no entanto, tem fome de subir. O
animal tem vergonha de o ser, e aspira a tornar-se anjo. Subir é a lei, a
primeira paixão, o máximo impulso da vida. Dir-se-á: mas os dois milênios de
cristianismo também poderiam chamar-se dois milênios de exploração de Cristo,
com outras finalidades, ao passo que o homem permaneceu mais ou menos o mesmo.
Dir-se-á que os ideais parecem que servem na terra para não serem postos em
prática, mas só para serem pregados e explorados, em vantagem de alguns homens
ladinos, que os utilizam como uma bandeira, com a qual possam cobrir melhor o
próprio jogo, que é conseguir um lugar melhor na vida. Parece que na Terra as
verdades superiores só podem aparecer sob a forma de mentira. E se houver algum
idealista, os seus escritos e trabalhos servem apenas para melhor enganar o
próximo, cuja boa-fé é mais facilmente conquistada, quando se fala em nome de
um ideal que dê maior garantia de honestidade.
 
Estes livros,
também, especialmente depois de morto e colocado definitivamente sob silêncio o
seu Autor terreno, correm esse perigo, podendo ser utilizados quem sabe por
quem e quem sabe para que fins. Mas, justamente por isso, procuramos
colocar-nos em contato com a dura realidade da vida, denunciando todas as suas
traições, demonstrando conhecê-las e trabalhando em seu próprio terreno.
Quisemos dar-nos bem conta da grande distância entre a vida real e os
princípios ideais. Não quisemos iludir-nos com o otimismo dos homens levianos.
Quisemos dar-nos conta objetivamente de que estamos construindo sobre a lama,
para concluir, que, no entanto, é fatal avançar e o mundo avançará. Quisemos
nós mesmos, em primeiro lugar, procurar demolir a nossa fé, para que dela
permanecesse apenas o que tem a solidez do ferro. Quisemos reconhecer todos os
vícios e defeitos do homem, fazendo-nos céticos até ao fundo, para sairmos mais
aguerridos de um tal banho de ceticismo. E então, o que resta do ideal, não é
mais uma fantasia fácil de mente leviana, mas, no terreno do imponderável,
adquire a evidência da luz e a solidez da pedra. É assim, e só assim se poderia
chegar a conjugar a verdade bestial de Maquiavel com os mais altos ideais do
espírito, como dois momentos bem compreensíveis, dado que logicamente conexos,
de uma mesma verdade em evolução.
 
Reconhece-se assim
que o poder devia ser missão, mas que no entanto, dado que a vida de hoje exige
uma compensação, é natural que o homem, que se esforçou para chegar, sinta o
direito de gozar, na posição conquistada, o fruto do seu esforço. Ele não pode
então ocupar-se do bem do povo, mas só de seu bem, dado que o povo faz o mesmo
com ele, e a lei de exploração é universal. Mas também se reconhece que, à
força de abusar e errar, e, portanto, de pagar, o homem tem por fim que
aprender, ainda que à sua custa e, aprendendo, tem que evolver, isto é,
caminhar para a realização do ideal. Já é mais do que sabido, agora, o velho
sistema de que os ideais são pregados com o fito de exploração. Mas, se um
interesse não houvera, quem faria alguma coisa no mundo? Não se pode pretender
que a vida não seja utilitária. Preciso é reconhecer-lhe esse direito, que está
na sua lógica e em seus equilíbrios. O que é preciso é apenas passar a um
utilitarismo mais inteligente e mais universal, que não constitua dano para
ninguém e seja vantagem para cada vez maior número de pessoas.
 
Não se pode demolir
o velho com a agressão, para destruí-lo, pois tudo o que existe quer viver e,
se for agredido, reage. O que é preciso, é transformar o velho fazendo-o
evoluir. Não se pode pretender sufocar a vida, nem se devem utilizar os
princípios ideais para esmagar o próximo, para vencê-lo na luta pela vida, e
para substituir-se a ele em posições vantajosas. Ao pedir-se duros sacrifícios
à natureza humana, em favor da evolução, é preciso ter em conta que ela deve
também viver, e não pode ficar sufocada. E, infelizmente, muitas vezes se
estabelece a tábua de valores só em função da própria utilidade, e com
frequência a pregação dos ideais se faz apenas em favor próprio, para a vitória
dos interesses da própria casta. É indispensável recordar que a luta pela vida
invade e penetra tudo no mundo, e portanto, se quisermos obter e construir com
justiça - e então em forma durável, porque equilibrada, isto é, sem as
inevitáveis reações, teremos que levar em conta o direito à vida que existe
também do lado oposto, essa vida que às vezes queremos esmagar em nome de
virtudes, que naturalmente supomos dever existir antes nos outros que em nós.
Se tantos ótimos princípios são infelizmente sustentados no mundo, por vezes
calorosamente, isto acontece, porque o homem conseguiu transformá-los em armas
de ataque contra o próximo, na luta pela vida.
 
O nosso mundo
assenta mais sobre sistemas do que sobre o indivíduo. Talvez tenha decaído a
tal ponto a fé no valor do homem, que ela se reduziu a ter que prescindir dele,
confiando só na perfeição do sistema, que deveria sanar tudo. Talvez tenha
chegado o orgulho humano ao ponto de crer que uma organização perfeita e um
sistema de normas, podem suprir a má qualidade da matéria prima, que é o homem.
É também verdade que o sistema pode ser uma escola para fazer o homem, como,
por exemplo, o sistema representativo pode servir para ensinar a saber votar,
formando, através de duras provas, uma consciência coletiva política. Mas é
também verdade que, enquanto o homem não tiver aprendido, o sistema não poderá
suprir os erros dele. Dizia Giuseppe Mazzini, nos Deveres do homem: Os homens
bons tornam boas as más organizações, e os maus tornam más as boas.
 
Acredita-se hoje
que se possa melhorar, alegando direitos. Não. Só se pode progredir através do
esforço de cada um. E assim, através dos séculos, como é diferente da de
Maquiavel a resposta de Mazzini: (...) nada conseguireis senão melhorando; não
conquistareis o exercício de vosso direito, senão merecendo-o com o sacrifício,
com a atividade, com o amor. Se procurardes, em nome de um dever cumprido ou a
cumprir, obtereis; se procurardes em nome do egoísmo, em nome de não sei que
direito ao bem-estar, que vos ensinam os homens do materialismo, só
conseguireis triunfos de uma hora, seguidos por tremendas desilusões. Os que
vos falam em nome do bem-estar, da felicidade material, vos trairão. Também
eles procuram o seu bem-estar; se confraternizam convosco, como com um elemento
de força, enquanto têm obstáculos a superar, para conquistá-lo, logo que o
consigam com vosso auxílio, vos abandonarão, para tranquilamente gozar a sua
conquista. Esta é a história do último meio século e se chama Materialismo.
Isto escrevia Mazzini em 1860, e é também hoje absolutamente verdadeiro. E
conclui: (...) o materialismo arrasta-vos inevitavelmente, com o culto dos
interesses, ao egoísmo e à anarquia. É assim que o materialismo ameaça levar o
mundo à destruição, com o fim da civilização europeia.
 
Nos capítulos do
Apocalipse, no volume: Profecias, vimos como o mundo vive debaixo de grandes
ameaças, numa era de destrucionismo. Mas é uma destruição que consiste apenas
numa condição de melhor reconstrução. Em sua sábia economia, é só com essa
condição que a vida destrói. Depois de nos termos ocupado alhures especialmente
do fim do mundo velho, ocupar-nos-emos aqui dos princípios sobre os quais terá
que ser reconstruído o novo. O contraste que o leitor encontra neste volume,
entre a realidade biológica e o ideal, em luta, entre o velho que rui e o novo
que nasce, entre as trevas e a luz que deve vencê-las, é apenas o espelho do
que está hoje acontecendo no mundo, nesta hora apocalíptica, em que atingimos a
plenitude dos tempos…
FONTE:
Pietro Ubaldi
 
 
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