sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

O HOLOCAUSTO MAIOR

 

O Holocausto Maior 

“E Jesus, chamando um menino, o pôs no meio deles. ” – (Mateus, 18:2.) Depois do terrível drama do Gólgota que sucedeu ao julgamento de Jesus, julgamento feito por juízes venais e omissos, pressionados pela casta sacerdotal que sabia muito bem manipular o poviléu ignaro, levando verdadeiras multidões à sedição, João, o Discípulo Amado, trasladou-se juntamente com Maria, a mãe de Jesus, para o promontório de Éfeso, onde ganhara uma nesga de terra cultivável... Era um ponto geográfico privilegiado, aconchegante, emoldurado de rara beleza, de onde se avistava o mar pigmentado pelas velas coloridas das embarcações. Flores miúdas, miosótis, ciprestes, loendros e tamareiras completavam a harmonia daquele sítio aprazível, pacato, hospitaleiro... Até mesmo os pequenos animais e os pássaros impregnavam-se do superior magnetismo ambiente, parecendo mais vivos e alegres com seus trinados a festejarem a primavera que espocava em beleza de variegado matiz. Naquela tarde amena, a brisa suave carreava o ar salitrado do mar que se mesclava com o perfume das diversas flores, e o poente fazia-se majestoso, bordando os outeiros com o ouro luminoso dos raios solares a se derramarem em cascatas de luz pelas pradarias sem fim... tudo era paz. O silêncio convidava à reflexão... Quase quatro anos depois do cruento episódio do Calvário, João via desfilar por sua tela mental o episódio daquela frágil criança que o Mestre aconchegara em Seu regaço. Uma cariciosa vibração de amor repletou-lhe o coração ao rever as divinas mãos acariciando os cabelos desgrenhados daquela criança e parecia ainda ver aquelas duas perninhas magras pendendo balouçantes, frouxas e confiantes do colo do Mestre. João reencontra, agora, aquela mesma criança, com aproximadamente oito anos de idade. Adota-a, forjando-lhe o caráter com a têmpera dos alcandorados ensinos cristãos, condimentados pela aconchegante ternura e carinho de Maria. Colocavam-se na posição de pai e mãe do petiz. Essa criança se tornaria um dos maiores e mais abnegados cristãos dos primeiros e de todos os tempos: Inácio de Antíoquia. Estoicismo, coragem, bravura da alma nunca lhe faltaram.... Seguiu sem tergiversar as trilhas abertas por Paulo, Pedro e João na ampliação das fronteiras cristãs no solo sáfaro dos corações. Impertérrito, não reagiu à voz de prisão. E, num dia ensolarado e quente de agosto, é levado a Roma. Acompanhemos a sucessão dos fatos na empolgante narrativa de Divaldo Franco, sob a inspiração de Joanna de Ângelis: “Ao saltar no porto de Óstia, cercado por legionários, é levado a Roma pela Via Ápia, numa madrugada do mês de agosto. Ao chegar ao acume de uma das colinas que circundam a cidade, ele começa a sorrir. Aquele homem, a ferros, alquebrado, sorria a ponto de comover-se, entre lágrimas e júbilos... O legionário dele se acerca, esbordoa-lhe a face, e pergunta, na voracidade da cólera: – Tu deves estar louco. Por que sorris? – Sorrio diante de tanta beleza que os meus olhos descortinam. Sorrio porque chego a Roma e vejo uma cidade imponente. Sorrio ao olhar o casario de mármore, as estátuas que rutilam ao Sol, as águas prateadas do Tibre que circundam como um alaúde as montanhas. Sorrio... O soldado não podia compreender, e riposta: – Mas tu vais morrer. Ainda esta semana tu irás pelo fosso subterrâneo para a arena do circo, onde teu corpo será despedaçado pelas feras da Dalmácia. Como podes sorrir, se tu vais morrer? – É exatamente por isso que sorrio. Pela tela da memória passavam-lhe as cenas da remota Galileia. A gentil Galileia verde e branca; a suave Galileia do mar a duzentos metros abaixo do nível do Mediterrâneo; a Galileia das colinas, dos miosótis azuis, das trepadeiras em flor e dos roseirais, que se abrem e se despedaçam diante da brisa do mês de Nisan. Ainda sem compreender o sorriso do prisioneiro naquela hora tão imprópria, visto que estava preste a ser devorado pelas feras, o soldado insiste na pergunta: – Por que sorris? Inácio responde com incontida alegria a invadir-lhe os mais íntimos refolhos da alma: – Eu sorrio de felicidade porque agora eu posso ter uma dimensão do amor de Deus. Porque, se para vós, que sois adúlteros, corrompidos, abutres que voais sobre o cadáver das gerações vencidas, se para vós que sois criminosos, Deus concede uma cidade tão bela e tão harmônica, que não oferecerá Ele para os que Lhe são fiéis? Se a vós vos dá uma cidade opulenta e de prazeres, que nos não dará a nós outros, que lhe temos dado a nossa Vida? Eu sorrio de gáudio, antecipadamente, e anelo para que venha o sofrimento já, a fim de que Ele me leve... Inácio foi levado ao subterrâneo, onde encontrou os amigos. Ali ele se recordou de Jesus, falou-lhes durante várias horas a respeito das blandícias do Reino dos Céus. Uma semana após, quando milhares de espectadores lotavam o circo Máximo e a arena ovalada se repletava de feras da Núbia, da Dalmácia – que não foram alimentadas por uma semana e sobre as quais se atiravam postas de carne ensanguentadas, cheias de Vida para lhes espicaçar o paladar –, os cristãos foram lançados aos animais, que despedaçaram aqueles corpos frágeis de anciãos, homens, mulheres e crianças, também, estoicos, que se não intimidavam diante da morte. Enquanto Inácio aguardava o momento da patada no tórax que lhe despedaçasse ossos e músculos, nenhuma fera arrebentou-lhe o corpo. Conta a querida Benfeitora que, naquele momento em que as feras saciadas refugavam os cadáveres e ele, na arena ensanguentada, era o único que persistia, ajoelhou-se, humilhado e perguntou: – Por quê? Por que fui poupado? Ser poupado é morte em Vida. Por que eu não tive a honra de morrer? Apareceu-lhe um anjo, um ser espiritual, e, contemplando-o entre lágrimas de amor, respondeu-lhe: – Inácio, morrer é muito fácil.... Perder o corpo numa só arremetida é um testemunho pequeno para ti. Tu, que tanto amas Jesus, mereces algo mais penoso e magoador: Tu Viverás... Morrer, no momento leva-te ao paroxismo da abnegação, mas viver entre pessoas que te não compreendam, porfiar quando os outros desconfiarão de ti, estar firme no ideal no momento das dificuldades, eis o holocausto maior. O Mestre deseja que vivas, para que a Sua mensagem saia da tua boca e experimentes o escárnio sem delinquir, experimentes a perseguição continuada sem desanimar. Porque esta é uma morte rápida demais para os que são bons e fiéis. Inácio saiu da arena, e os companheiros supuseram que ele houvera abjurado. A calúnia sórdida, a intriga e a maledicência semearam, na comunidade primitiva, que ele teve a Vida poupada porque prestara sacrifício aos deuses. Inácio nunca se defendeu, porque quem ama Jesus não tem tempo a perder com defesas inoportunas. Ele jamais se justificou, porque deveria prestar contas ao seu Rei, não aos súditos e escravos, como escravo e súdito era ele. Não disse uma palavra, até que os anos, dobrando-se uns sobre os outros, demonstraram a grandeza desse discípulo eleito, que passou a ser o protótipo do cristão verdadeiro, o modelo daquele servidor primitivo de Jesus, elevando-se à categoria de bem-aventurado por seu testemunho de amor...” Inácio de Antíoquia é bem aquele discípulo verdadeiro do Cristo que vive a Caridade em toda a plenitude tal como a entendia Jesus: * “Benevolência para com todos, indulgência para as imperfeições dos outros, perdão das ofensas.”

FONTE:

ROGÉRIO COELHO

Allan O Livro dos Espíritos, questão 886

REVISTA REFORMADOR

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