O Holocausto Maior
“E Jesus, chamando um menino, o pôs no
meio deles. ” – (Mateus, 18:2.) Depois do terrível drama do Gólgota que sucedeu
ao julgamento de Jesus, julgamento feito por juízes venais e omissos,
pressionados pela casta sacerdotal que sabia muito bem manipular o poviléu
ignaro, levando verdadeiras multidões à sedição, João, o Discípulo Amado,
trasladou-se juntamente com Maria, a mãe de Jesus, para o promontório de Éfeso,
onde ganhara uma nesga de terra cultivável... Era um ponto geográfico
privilegiado, aconchegante, emoldurado de rara beleza, de onde se avistava o
mar pigmentado pelas velas coloridas das embarcações. Flores miúdas, miosótis,
ciprestes, loendros e tamareiras completavam a harmonia daquele sítio
aprazível, pacato, hospitaleiro... Até mesmo os pequenos animais e os pássaros
impregnavam-se do superior magnetismo ambiente, parecendo mais vivos e alegres
com seus trinados a festejarem a primavera que espocava em beleza de variegado
matiz. Naquela tarde amena, a brisa suave carreava o ar salitrado do mar que se
mesclava com o perfume das diversas flores, e o poente fazia-se majestoso,
bordando os outeiros com o ouro luminoso dos raios solares a se derramarem em
cascatas de luz pelas pradarias sem fim... tudo era paz. O silêncio convidava à
reflexão... Quase quatro anos depois do cruento episódio do Calvário, João via
desfilar por sua tela mental o episódio daquela frágil criança que o Mestre
aconchegara em Seu regaço. Uma cariciosa vibração de amor repletou-lhe o
coração ao rever as divinas mãos acariciando os cabelos desgrenhados daquela
criança e parecia ainda ver aquelas duas perninhas magras pendendo balouçantes,
frouxas e confiantes do colo do Mestre. João reencontra, agora, aquela mesma
criança, com aproximadamente oito anos de idade. Adota-a, forjando-lhe o
caráter com a têmpera dos alcandorados ensinos cristãos, condimentados pela
aconchegante ternura e carinho de Maria. Colocavam-se na posição de pai e mãe
do petiz. Essa criança se tornaria um dos maiores e mais abnegados cristãos dos
primeiros e de todos os tempos: Inácio de Antíoquia. Estoicismo, coragem,
bravura da alma nunca lhe faltaram.... Seguiu sem tergiversar as trilhas
abertas por Paulo, Pedro e João na ampliação das fronteiras cristãs no solo
sáfaro dos corações. Impertérrito, não reagiu à voz de prisão. E, num dia
ensolarado e quente de agosto, é levado a Roma. Acompanhemos a sucessão dos
fatos na empolgante narrativa de Divaldo Franco, sob a inspiração de Joanna de
Ângelis: “Ao saltar no porto de Óstia, cercado por legionários, é levado a Roma
pela Via Ápia, numa madrugada do mês de agosto. Ao chegar ao acume de uma das
colinas que circundam a cidade, ele começa a sorrir. Aquele homem, a ferros,
alquebrado, sorria a ponto de comover-se, entre lágrimas e júbilos... O
legionário dele se acerca, esbordoa-lhe a face, e pergunta, na voracidade da
cólera: – Tu deves estar louco. Por que sorris? – Sorrio diante de tanta beleza
que os meus olhos descortinam. Sorrio porque chego a Roma e vejo uma cidade
imponente. Sorrio ao olhar o casario de mármore, as estátuas que rutilam ao
Sol, as águas prateadas do Tibre que circundam como um alaúde as montanhas.
Sorrio... O soldado não podia compreender, e riposta: – Mas tu vais morrer.
Ainda esta semana tu irás pelo fosso subterrâneo para a arena do circo, onde
teu corpo será despedaçado pelas feras da Dalmácia. Como podes sorrir, se tu
vais morrer? – É exatamente por isso que sorrio. Pela tela da memória
passavam-lhe as cenas da remota Galileia. A gentil Galileia verde e branca; a
suave Galileia do mar a duzentos metros abaixo do nível do Mediterrâneo; a Galileia
das colinas, dos miosótis azuis, das trepadeiras em flor e dos roseirais, que
se abrem e se despedaçam diante da brisa do mês de Nisan. Ainda sem compreender
o sorriso do prisioneiro naquela hora tão imprópria, visto que estava preste a
ser devorado pelas feras, o soldado insiste na pergunta: – Por que sorris?
Inácio responde com incontida alegria a invadir-lhe os mais íntimos refolhos da
alma: – Eu sorrio de felicidade porque agora eu posso ter uma dimensão do amor
de Deus. Porque, se para vós, que sois adúlteros, corrompidos, abutres que
voais sobre o cadáver das gerações vencidas, se para vós que sois criminosos,
Deus concede uma cidade tão bela e tão harmônica, que não oferecerá Ele para os
que Lhe são fiéis? Se a vós vos dá uma cidade opulenta e de prazeres, que nos
não dará a nós outros, que lhe temos dado a nossa Vida? Eu sorrio de gáudio,
antecipadamente, e anelo para que venha o sofrimento já, a fim de que Ele me
leve... Inácio foi levado ao subterrâneo, onde encontrou os amigos. Ali ele se
recordou de Jesus, falou-lhes durante várias horas a respeito das blandícias do
Reino dos Céus. Uma semana após, quando milhares de espectadores lotavam o
circo Máximo e a arena ovalada se repletava de feras da Núbia, da Dalmácia –
que não foram alimentadas por uma semana e sobre as quais se atiravam postas de
carne ensanguentadas, cheias de Vida para lhes espicaçar o paladar –, os
cristãos foram lançados aos animais, que despedaçaram aqueles corpos frágeis de
anciãos, homens, mulheres e crianças, também, estoicos, que se não intimidavam
diante da morte. Enquanto Inácio aguardava o momento da patada no tórax que lhe
despedaçasse ossos e músculos, nenhuma fera arrebentou-lhe o corpo. Conta a
querida Benfeitora que, naquele momento em que as feras saciadas refugavam os
cadáveres e ele, na arena ensanguentada, era o único que persistia,
ajoelhou-se, humilhado e perguntou: – Por quê? Por que fui poupado? Ser poupado
é morte em Vida. Por que eu não tive a honra de morrer? Apareceu-lhe um anjo,
um ser espiritual, e, contemplando-o entre lágrimas de amor, respondeu-lhe: –
Inácio, morrer é muito fácil.... Perder o corpo numa só arremetida é um
testemunho pequeno para ti. Tu, que tanto amas Jesus, mereces algo mais penoso
e magoador: Tu Viverás... Morrer, no momento leva-te ao paroxismo da abnegação,
mas viver entre pessoas que te não compreendam, porfiar quando os outros
desconfiarão de ti, estar firme no ideal no momento das dificuldades, eis o
holocausto maior. O Mestre deseja que vivas, para que a Sua mensagem saia da tua
boca e experimentes o escárnio sem delinquir, experimentes a perseguição
continuada sem desanimar. Porque esta é uma morte rápida demais para os que são
bons e fiéis. Inácio saiu da arena, e os companheiros supuseram que ele houvera
abjurado. A calúnia sórdida, a intriga e a maledicência semearam, na comunidade
primitiva, que ele teve a Vida poupada porque prestara sacrifício aos deuses.
Inácio nunca se defendeu, porque quem ama Jesus não tem tempo a perder com
defesas inoportunas. Ele jamais se justificou, porque deveria prestar contas ao
seu Rei, não aos súditos e escravos, como escravo e súdito era ele. Não disse
uma palavra, até que os anos, dobrando-se uns sobre os outros, demonstraram a
grandeza desse discípulo eleito, que passou a ser o protótipo do cristão
verdadeiro, o modelo daquele servidor primitivo de Jesus, elevando-se à
categoria de bem-aventurado por seu testemunho de amor...” Inácio de Antíoquia
é bem aquele discípulo verdadeiro do Cristo que vive a Caridade em toda a
plenitude tal como a entendia Jesus: * “Benevolência para com todos,
indulgência para as imperfeições dos outros, perdão das ofensas.”
FONTE:
ROGÉRIO COELHO
Allan O Livro dos Espíritos, questão
886
REVISTA REFORMADOR
Nenhum comentário:
Postar um comentário