O CRISTO CÓSMICO E OS ESCRITOS ESSÊNIOS DO MAR MORTO
Era o ano de 1947. Um jovem pastor árabe
pastoreava os rebanhos de seus pais, nas planícies que se estendem ao noroeste
do Mar Morto, chamadas Qumran, não longe do ponto em que o Jordão desemboca
nesse lago betuminoso. Por mero desenfado, o pastorzinho jogou uma pedra para dentro
duma das numerosas cavernas dum elevado paredão rochoso. Com espanto ouviu o
eco de um som oco, como se um vaso espocasse em consequência da pedrada.
Espavorido, fugiu do lugar, onde pareciam habitar maus espíritos. Foi contar a
alguém o motivo da sua fuga. Esse alguém buscou uma escada, encostou-a no
paredão e penetrou na caverna, onde encontrou diversos potes de argila, um
deles quebrado. Cada um dos vasos continha largas tiras de couro cobertas de
caracteres estranhos. Algumas dessas tiras foram parar nas mãos de um
sapateiro, que as guardou na sapataria, na intenção de usá-las, oportunamente,
para remendar sapatos. Quis, porém, o bom destino que não cortasse esses
couros, que adquirira o pastorzinho por preço irrisório. Um chefe espiritual da
zona chegou a saber do caso. Adquiriu parte das tiras de couro de Qumran e
reconheceu que se tratava de documentos antiquíssimos que remontavam a uma
época anterior à era cristã. Dentro em breve, o mundo científico dos cinco
continentes do globo estaria em polvorosa. Um americano adquiriu parte dos
documentos pelo preço de 250.000 dólares. Em 1949 ou 1950, eu vi esses
pergaminhos expostos na Biblioteca do Congresso de Washington, no tempo em que
lecionava filosofia na capital federal dos Estados Unidos. Os preciosos
documentos estavam resguardados por detrás de paredes de vidro e devidamente
policiados. Milhares e milhares de visitantes viram esses escritos mais antigos
que a humanidade possui em originais, remontando a um ou dois séculos antes de
Cristo. Pouco a pouco, os peritos conseguiram decifrar os estranhos caracteres;
alguns tópicos se referem às palavras do grande profeta Isaías, que viveu
durante o exílio babilônico, cerca de 600 anos antes de Cristo. Outros textos
representam usos e costumes de uma sociedade místico-ascética de judeus
dissidentes, chamados Essênios, ou Terapeutas. A comunidade dos Essênios não
simpatizava com o espírito do judaísmo oficial, nem frequentava o templo de
Jerusalém, mas vivia entre Jerusalém, Jericó e o Mar Morto, numa vida solitária
de grande rigor ascético, alimentando-se de frutas e ervas. Numerosas passagens
desses escritos essênios dizem as mesmas verdades espirituais que conhecemos
pelos evangelhos; alguns tópicos são quase literalmente idênticos às
correspondentes palavras de Jesus – e, no entanto, esses documentos nasceram
antes do Nazareno. Daí o fascinante mistério que envolve os escritos
recentemente encontrados em Qumran. Qual a sua explicação? Nas Sombras Dum
Grande Mistério Como se explica essa surpreendente semelhança entre certos
textos evangélicos e os documentos essênios do Mar Morto? Como é que Mateus,
Marcos e Lucas, e em parte João, referindo palavras de Jesus de Nazaré, se
servem de palavras parecidas e, por vezes, idênticas às dos escritos essênios?
Devem os evangelistas ser considerados como plagiários dos Essênios? Faziam
eles mesmo parte da comunidade desses eremitas solitários? E não parece que o
próprio Jesus recebeu a sua sabedoria espiritual desses monges? Não teria o
Nazareno convivido com eles durante os 18 anos, entre os 12 e os 30 anos, a
respeito dos quais os evangelhos fazem total silêncio? Não parece que o berço
do cristianismo se ache às margens do Mar Morto? E que o cristianismo deve ser
chamado essênio? E por que é que Jesus e os evangelistas nunca se referem, com
uma só palavra, aos Essênios? Por que é que no Evangelho aparecem as seitas dos
Fariseus e Saduceus, e nunca os Essênios? Mistérios e mais mistérios... desde
1947, o mundo inteiro foi inundado por uma literatura imensa que tenta elucidar
a grande obscuridade. Muitas igrejas se sentiram abaladas na sua fé
tradicional. Tentativa Duma Solução Tenho diante de mim o livro de um escritor
alemão, Johannes Lehmann, intitulado Jesus-Report – Protokolleiner
Verfaelschung (Reportagem sobre Jesus – protocolo de uma falsificação). Pelo
simples título se depreende o que o autor pensa dos documentos essênios e dos
evangelhos. Lehmann sente-se desapontado com o silêncio que os evangelistas do
primeiro século fazem em torno dos Essênios; tenta diversas soluções, mas, a
meu ver, sem nenhuma resposta satisfatória. Diz tudo – menos o principal.
Ziguezagueia para a direita e para a esquerda – mas não acerta com a linha reta
do centro, porque parte de uma falsa “premissa maior” conhece todas as linhas
horizontais em torno de Jesus de Nazaré, mas ignora a linha vertical do Cristo
Cósmico; nada sabe do “Verbo que se fez carne” e por isso não pode compreender
a carne; conhece todas as facticidades, diria Einstein, mas não conhece a
Realidade. Lehmann é, um representante típico de centenas de outros escritores
europeus que, sem saber, são vítimas de um lastro ideológico tradicional; não
conseguem emancipar-se de um cipoal de ideias multisseculares para enxergar
nitidamente a verdade. O grande médico russo Salmanoff diz, no seu livro Le
miracle de Ia vie, que existem na Europa nada menos que “70 sistemas
filosóficos” cada um dos quais obscurece ou deturpa a verdadeira Filosofia. E
não valerá o mesmo no plano teológico? Lehmann, certamente, não sabe que são
esses sistemas filosóficos que o impedem de encontrar uma solução plausível, no
caso dos documentos essênios e dos evangelhos. O erro fundamental de Lehmann
está no fato de ele se mover exclusivamente no plano horizontal dos fatos
históricos em torno de Jesus de Nazaré, ou, como ele prefere dizer: do
“RabbiJ”, Nenhuma vez dá a entender que conheça algo da grande vertical do
Cristo, que é o tema central do evangelho de João, evangelho que ele considera
como uma “aberração do caminho”. Quer explicar fatos sem se referir à Realidade
donde esses fatos dimanaram. Tenta analisar as águas dos canais, mas se esquece
da fonte. Pecou contra a advertência de Einstein de que “do mundo dos fatos não
conduz nenhum caminho para o mundo dos valores, porque estes se acham em outra região”.
E dessa “outra região”, do mundo dos valores, da qualidade da realidade, o
autor nada sabe. Coloca Jesus na mesma linha horizontal com os Essênios – e não
encontra saída do seu cipoal ideológico. Que diríamos de um engenheiro que
tentasse mover uma turbina com as águas de um lago ao mesmo nível? Por maior
que seja o volume das águas de um lago, nunca moverão uma turbina, porque lhes
falta o desnível, a voltagem da verticalidade, a necessária ectopia, capaz de
desnivelar o nível da entropia. O nivelamento de Jesus com os Essênios é marcar
passo na mesma horizontal; somente o desnivelamento entre o Cristo e Jesus ou
os Essênios poderia projetar luz nessa escuridão. Mas Lehmann tenta solver o
fato essênio com o fato Jesus, e acaba sempre no ponto zero, nesse eterno
círculo vicioso. Aliás, é quase geral, nas Igrejas da Europa, o vezo de
identificarem simplesmente a pessoa humana de Jesus com a creatura cósmica do
Cristo. Quando, poucos decênios atrás, apareceram os escritos de Teilhard de
Chardin sobre o Cristo Cósmico, foi grande o alarme de muitos teólogos
europeus. Cristo Cósmico? Que inovação é esta? Quem jamais ouviu falar desse
tal Cristo Cósmico? Por que essa estapafúrdia distinção entre Jesus e o Cristo?
Se algum desses teólogos, sobretudo Johannes Lehmann, tivesse lido o meu
recente livro Que vos parece do Cristo? ter-me-ia tachado de herege ou louco –
embora essa distinção esteja nos próprios evangelhos e nas epístolas de Paulo
de Tarso, há quase 2.000 anos. Se tivesse lido..., mas, como o português é
língua morta, fora do Brasil e de Portugal, não o pode ler, se não for escrito
em inglês, francês ou alemão. A Solução do Mistério Qual a razão por que Jesus
e os evangelistas não se referem aos Essênios, cujos ensinamentos certamente
conheciam? É mais que provável que Jesus e João Batista tenham tido convivência
com os Essênios. É possível mesmo que, durante os 40 dias que Jesus passou no
deserto, orando e jejuando, tivesse contato com Qumran, que fica na mesma
região. E João Batista, donde vinha ele? Onde tinha passado a sua mocidade? O
lugar onde mergulhava os pescadores fica em Jericó e o Mar Morto, a pouca
distância de Qumran. Por que, pois, Jesus nunca se refere a seus colegas de
ideal espiritual? “A minha doutrina não é minha – é daquele que me enviou. ”
“As obras-que eu faço não sou eu que as faço, mas é o Pai em mim que faz as
obras; eu, de mim mesmo, nada posso fazer. ” Estas e outras palavras similares
de Jesus, referidas pelo Evangelho, são a chave do mistério. Jesus nunca fala
em nome de Jesus – e por que falaria em nome dos Essênios? Se a sua doutrina e
as suas obras não são do Nazareno, por que seriam dos Essênios? Quando o canal
A recebe as suas águas de canal B, mas todas as águas vêm da fonte I
(Infinito), por que deveria A mencionar B? Não bastaria dizer que suas águas
vêm da fonte I? De resto, quem pode afirmar e reivindicar para si,
exclusivamente, a paternidade dos seus pensamentos? Será que eu ou algum dos
meus leitores podemos afirmar: Esta ideia é exclusivamente minha e de mais
ninguém? Mesmo que a nossa influência não seja consciente, quem nos garante que
não haja influência inconsciente de outras pessoas? Em última análise, somos
todos “plagiários”. A lei proíbe o plágio direto – mas não há lei para plágios
indiretos. E seriam os Essênios os únicos exclusivos genitores das suas ideias?
Existe uma única Vida, uma única Mente, um único Espírito. Mas esta Fonte única
se manifesta através de muitos canais. Em última análise, todos os canais
finitos recebem da Fonte Infinita. Talvez seja esta a razão por que, na
antiguidade, os livros apareciam sem autor individual – a humanidade coletiva é
que era autora do livro. Lehmann e outros autores congêneres sofrem dum
estreito unilateralismo; acham
que os ensinamentos do Evangelho são de Jesus e foram dos Essênios,
quando, na realidade, não são destes nem daquele, mas do Cristo Cósmico,
do espírito da Divindade que se concretizou no Verbo-Logos, a Divindade
Transcendente que se manifestou no Deus Imanente. “Por ele foram feitas todas
as coisas. ”
Já
no século V teve Santo Agostinho a inaudita clarividência de afirmar que o Cristianismo
não começou com o Cristo, mas sim com o primeiro homem que teve experiência
de Deus: mas nesse tempo, diz Agostinho, essa experiência divina ainda não
se chamava cristianismo, porque o Cristo ainda não aparecera na pessoa de Jesus
de Nazaré.
Ora,
se o Cristo Pré-nazareno se revelava pelos Essênios, e depois se
revelou no Nazareno, por que insistir na diferença entre Essênios e
não-Essênios, se a água viva da fonte única era a mesma, embora fluindo através
de canais vários?
É
erro tradicional afirmar que o Cristo fundou o cristianismo, ou até uma Igreja;
não fundou Igreja nem cristianismo, que é obra de seus discípulos. O Cristo
viveu, aqui na Terra, a sua grande experiência divina e dela falou durante três
anos, como sendo “o reino de Deus dentro do homem”. Não fundou religião nem
sociedade – viveu e manifestou uma grande experiência divina.
Há
quase 2.000 anos que os teólogos se digladiam em torno da controvérsia se o
Cristo era Deus ou não – Lehmann também sofre do mesmo mal. Confunde Deus com a
Divindade. O Cristo nunca se identificou com a Divindade, mas identificou-se
com Deus e chegou ao ponto de dizer que também nós somos deuses. A Divindade –
que ele sempre chama Pai – é a única, eterna e infinita Realidade; mas, quando
essa Realidade Universal se manifesta em facticidades individuais, essas
manifestações individuais são chamadas de “Deus”, quando conscientes e livres.
O
Cristo é Deus e nós somos deuses – mas nem ele nem nós somos a Divindade.
“Eu
e o Pai somos um; eu estou no Pai e o Pai está em mim – mas o Pai é maior do
que eu. O Pai também está em vós, e vós estais no Pai. ”
Neste
sentido, escreve Paulo de Tarso que Cristo é o protótokos, o primogênito
de todas as creaturas; ele é creatura, assim como Deus é creatura; somente a
Divindade não é creatura, mas unicamente creadora.
O
Cristo é o “Unigênito do Pai”, segundo João, o único gerado da Divindade; nós
somos os “Cristos-gênitos”, porque “por ele foram feitas todas as coisas, e
nada do que foi feito foi feito sem ele”.
Por
isso, quando Jesus fala, frisa sempre que não fala em nome do seu Jesus humano,
mas sim do seu Cristo divino do Pai que está nele; não fala em nome do seu
canal-Jesus, mas sim em nome da sua fonte-Cristo, porque esta fonte, o Pai,
está nele.
Se
Jesus se tivesse referido aos Essênios como doadores do seu Evangelho, teria
afirmado a humanidade da sua mensagem, e não a sua divindade, a sua
cristicidade.
Muitos
dos ensinamentos de Jesus já preexistiam, não só entre os Essênios, mas também
no Antigo Testamento; mas ele veio “completar” o que era incompleto. (Cuidado
com as falsas traduções: cumprir em vez de completar, como dizem os
textos gregos e latino!) Podem os ensinamentos antigos fluir através dum canal
novo, mas a fonte Eterna é uma só e sempre a mesma.
“Antes
que Abraão fosse feito, eu sou.”
“Glorifica-me,
meu Pai, com aquela glória que eu tinha em ti, antes que o mundo existisse. ”
Quem
Eram os Essênios
O
historiador romano Plínio (Sênior), nascido em 23 depois de Cristo e morto na
erupção do Vesúvio em 79, escreveu o seguinte na Naturalis Historia, V,
XVII, 73:
“Os
Essênios vivem à margem ocidental do Mar Morto, a uma distância suficiente para
serem preservados dos efeitos deletérios do lago. São uma sociedade solitária
de eremitas que vivem sem mulheres; renunciaram a todo contato com Vênus e dinheiro,
tendo por únicos companheiros as palmeiras. A seus pés existia, outrora, a
cidade de Engeddi (hoje, Ein Gedi). Mais além se ergue, sobre um rochedo, a
fortaleza Masada, não longe do Mar Morto. ”
O
livro Harpas Eternas narra a vida desses “terapeutas” ou curadores. A
palavra “essênio” é derivada do radical assya, que, na língua deles,
quer dizer curador, em grego, terapeuta.
Eles
se consideravam assyas ou curadores porque conheciam as virtudes
curativas de diversas plantas; além disso, pelo poder da concentração mental
e contemplação espiritual, conseguiam evitar ou curar doenças de
toda espécie. Viviam em perfeita harmonia com as leis da natureza, que é
vida e saúde. Eram vegetarianos absolutos. Praticavam a mais vasta hidroterapia.
Todo essênio tomava cada manhã o seu baptismo, ou banho de mergulho. A
essa hidroterapia associavam ainda a helioterapia, ou banho solar. E,
graças a essas duas fontes de vitalidade e saúde, a água e a luz,
conseguiam manter o seu corpo em pleno vigor e juventude durante muito mais
tempo do que os outros homens.
Embora
os Essênios vivessem em pleno deserto, não lhes faltava água límpida para
os seus banhos diários. Ainda hoje, não longe da embocadura do Jordão, no Mar
Morto, corre uma fonte cristalina por entre os rochedos abruptos, onde os sapos
fazem a sua orquestra, sobretudo em noites de lua cheia. É bem provável que os
Essênios tivessem as suas hortas e os seus pomares nas imediações dessas águas.
As águas salgadas e betuminosas do Mar Morto são impróprias para irrigação e
banhos. O nível do Mar Morto – provavelmente uma antiga cratera vulcânica
extinta – fica a 400 metros abaixo do nível do Mediterrâneo.
Os
filósofos neoplatônicos, Filo e Plotino, de Alexandria, bem como
o historiador judeu-romano Flávio Josefo, do primeiro século, se referem
aos Essênios; mas, estranhamente, até 1947 ninguém tomava a sério essas digitações
antigas – até que, subitamente, quase por acaso, pela distração de um pastor
árabe, o mundo inteiro convergiu o seu interesse para os silenciosos desertos
de Qumran, ao noroeste do Mar Morto. Ultimamente, foram feitas vastas
escavações em todas as redondezas. Foi descoberto um cemitério de cerca
de mil túmulos, alguns ainda com esqueletos humanos, todos de homens,
confirmando a notícia de Plínio sobre a total ausência de mulheres entre esses
eremitas. Adotavam crianças para as educarem segundo o seu espírito.
Parece
que esses silenciosos desertos foram o berço ou subsolo duma vasta floração
espiritual da humanidade, que, mais tarde, culminou na mensagem do profeta de
Nazaré, no qual o Verbo se fez carne.
Eram
os Essênios um Exército de Subversivos?
Lehmann,
no seu citado livro Jesus-Report, julga descobrir um motivo de silêncio
relativamente aos Essênios no fato de serem eles uma espécie de “resistência
secreta” aos dominadores romanos. Por motivos religiosos, os Essênios não se
conformavam com a ocupação militar dos pagãos de Roma e a perda da
independência nacional de Israel. E, embora pacifistas, conspiravam
secretamente contra os romanos, solapando e sabotando as suas atividades. O
último reduto dessa resistência subterrânea era a fortaleza de Masada, ao
sudoeste do Mar Morto, destruída em 70, após a destruição de Jerusalém pelos
generais romanos Tito e Vespasiano.
Ora,
diz o citado autor, se Jesus fosse conhecido como essênio, poderia entrar em
choque com Pôncio Pilatos, então governador romano da Palestina. Por isso,
teriam os evangelistas guardado o maior segredo sobre qualquer afinidade de
Jesus com os secretos subversivos do Qumran.
Por
mais plausível que pareça, à primeira vista, esta motivação, não parece
compatível com o espírito total dos evangelhos e do caráter de Jesus. O
Nazareno nunca mostrou o menor interesse pela política, nem lhe interessava a
reconquista da independência nacional. O seu reino não é deste mundo, como ele
declara a Pilatos; ele veio ao mundo para dar testemunho à verdade. Se o seu
reino fosse deste mundo, os seus partidários lutariam certamente para que não
fosse entregue a seus inimigos. Em face da caprichosa pergunta se se deve pagar
tributo a César, ele responde que sim, contanto que se dê também a Deus o que é
de Deus. Teria um essênio dado esta resposta? Não consideraria ele o poder
romano como inimigo de Deus? Não defendiam os Essênios a ideia de uma guerra
santa, de uma cruzada em nome da consciência?
No
domingo de ramos, em Jerusalém, houve evidentemente uma tentativa de
subversão contra o governador romano, e Pilatos deve ter estado sobre brasas,
quando viu as ruas da capital em polvorosa e milhares de pessoas alvoroçadas
bradando: Viva o filho de Davi! Viva o rei de Israel! Os próprios discípulos
atiçavam o fogo da revolução nacionalista, esperando, naturalmente, “sentar-se
à direita e à esquerda”, ao lado do Messias e Rei, no “reino da sua glória”.
Mas
o Nazareno não aceita a realeza de Israel, que lhe é oferecida por seu
povo. Retira-se da capital, em vez de organizar um corpo de resistência
secreta. E, poucos dias depois, reaparece, não com a coroa real na cabeça, mas
com uma coroa de espinhos; não num trono de ouro e marfim, mas agonizante no
alto de uma cruz.
Como
seria possível harmonizar esta atitude do Nazareno com a suposição de ter ele
sido um emissário dos Essênios secretamente subversivos?
Evidentemente,
o seu reino não era deste mundo.
Falar
de um “fracasso do seu plano político”, como faz Lehmann, é negar todos os
fatos históricos e desconhecer a mais profunda mentalidade do Nazareno. Um
homem que, pelo menos dois anos antes de sua morte, prediz repetidas vezes que
vai a Jerusalém para ser preso, condenado à morte e crucificado; um homem que
diz, perante amigos e inimigos: “Ninguém me tira a vida, eu deponho a minha
vida, e eu reassumo a minha vida quando quero” – poderá esse homem ser
considerado como vítima de um fracasso e de uma frustração inesperada dos seus
planos? Meu reino...
Naturalmente,
quem só conhece o plano horizontal de Jesus de Nazaré e nada sabe das alturas
verticais do Cristo Cósmico, não pode compreender a Verdade em sua totalidade.
Bem
dizia Einstein: “Do mundo dos fatos não há nenhum caminho para o mundo dos
valores, porque estes estão em outra região”.
Em
Conclusão e Síntese
Qualquer
tentativa de compreendermos a relação entre Jesus e os Essênios, e o motivo do
silêncio dos evangelistas, é de antemão fadado a uma total incompreensão, se
não focalizarmos a verdade fundamental de que “o Verbo se fez carne”.
Carne
não explica carne, fato não explica fato...
Somente
uma visão panorâmica de Jesus, o Cristo, nos faculta uma perspectiva correta
para uma compreensão desse mistério.
Análises
de facticidades, por mais engenhosas, não garantem compreensão total se, além
dessa análise de fatos, não houver uma intuição da Realidade.
Parece
que a evolução espiritual da Humanidade, através de séculos e milênios, segue o
curso do sol (astronomicamente falando: o movimento da Terra).
O
Extremo Oriente, sobretudo a Índia, representa o mais antigo berço da
espiritualidade que, em parte, acabou em espiritualismo, e por isso estagnou.
Segundo
o curso do Sol, a evolução espiritual da humanidade passou do Extremo Oriente
para o Oriente Médio, no início da era cristã e do signo de Peixes.
Quase
vinte séculos mais tarde, no signo de Aquário, a espiritualidade ilumina o
Ocidente europeu, onde se expandiu a mensagem do Cristo, e não no Oriente, como
seria de esperar.
Em
fins do século XV, a onda da luz cristã atravessa o Oceano Atlântico, com
Colombo, Cabral e outros, e toma conta das Américas. No maior país da América
Meridional, o Brasil, a luz do Evangelho ficou quase que restrita à faixa do
litoral leste. Há poucos decênios, porém, houve um avanço inesperado, e até
hoje inexplicável, rumo ao oeste, rumo ao planalto central. A fundação e
construção de Brasília, no espaço incrível de poucos anos, é humanamente
inacreditável, e somente as gerações futuras conseguirão dar explicação
satisfatória a esse mito.
Na
noite de 10 de agosto de 1883, um grande vidente italiano, Dom Bosco, que nunca
esteve no Brasil, teve uma visão: viu as regiões ocidentais da América
Meridional, entre os grandes rios do Amazonas, do São Francisco e do Rio da
Prata, numa região onde se formava um grande lago, entre os paralelos 15 e 20;
viu surgir uma nova civilização espiritual.
No
dia 10 de novembro de 1956 baixou um helicóptero numa clareira em plena mata,
entre os paralelos 15 e 20, previstos por Dom Bosco; em plena mata foi
construída uma casa de madeira, hoje chamada o “Catetinho”, ponto inicial de
Brasília, donde, segundo a visão, deve irradiar uma nova civilização
espiritual.
Mais
tarde, talvez no terceiro milênio, o sol espiritual da humanidade, cruzando a
cordilheira dos Andes e a vastidão do Oceano Pacífico, e fechará o grande
círculo multimilenar, iluminando o Japão, a Índia, a China, esses berços
antiquíssimos da espiritualidade.
E
só então compreenderá a humanidade a verdadeira significação dos escritos dos
Essênios, que ligam o Oriente com o Ocidente e constituem, por assim dizer, uma
pedra preciosa engastada no maravilhoso anel da evolução espiritual de gênero
humano.
Os
Essênios – A Comunidade de Qumran*
Os
essênios, de acordo com Fílon e Josefo, se encontravam distribuídos entre
várias colônias, uma das quais era Qumran. Em sua História Natural – 37
livros redigidos a partir do estudo de inúmeras fontes escritas e talvez também
com a adição de experiências vividas em sua provável viagem acompanhando Tito à
Palestina, durante a Revolução de 66-70 – Plínio, o Antigo, se refere a apenas
um estabelecimento essênio, dando-lhe uma localização bastante precisa.
Descreve a depressão sírio-palestina, com suas aldeolas em ambas as margens, e
chega até o Mar Morto, relatando:
“Na
parte ocidental (do Mar Morto) os essênios se afastam das margens por toda a
extensão em que estas são perigosas. Trata-se de um povo único em seu gênero e
admirável no mundo inteiro, mais que qualquer outro: sem nenhuma mulher e tendo
renunciado inteiramente ao amor; sem dinheiro; tendo por única companhia as
palmeiras. Dia após dia esse povo renasce em igual número, graças à grande
quantidade dos que chegam; com efeito, afluem aqui em grande número aqueles que
a vida leva, cansados das oscilações da sorte, a adotar seus costumes. Assim,
durante milhares de séculos, coisa inacreditável, subsiste um povo que é eterno
e no interior do qual, contudo, não nasce ninguém: tão fecundo é para ele o
arrependimento que têm os outros em relação à sua vida passada!
Abaixo
desses (isto é, dos essênios) ficava a cidade de Engada (Engaddi), cuja
importância só era inferior à de Jerusalém (sem dúvida é necessário corrigir
para ‘Jericó’, tendo em vista a menção aos palmeirais) por sua fertilidade e
seus palmeirais, mas que se tornou hoje também uma pira secundária. A partir
daí chega-se à fortaleza de Massada, situada num rochedo, e ela própria vizinha
do lago Asfaltite (outro nome de Mar Morto). ”
(*).
Este capítulo é uma complementação do anterior. Não foi propriamente escrito
por Rohden, embora seu conteúdo tenha sido pesquisado e organizado por ele, a
partir das edições originais Les manuscrits de la Mer Morte,
recentemente editado no Brasil pela Cultrix, e Les écrits esséniens
découverts prés Ia Mer Morte do padre Dupont-Sommer.
Rohden
havia planejado escrever um estudo completo sobre a comunidade de Qumran e o
Cristianismo, assunto, aliás, frequente em suas aulas.
Infelizmente,
por motivos de viagem e saúde, Rohden não pôde concluir seu trabalho. Seus
escritos, foram organizados a partir de suas anotações. As principais fontes
citadas são: Apologia dos Judeus e Vida Contemplativa de Fílon, o
filósofo judeu de Alexandria, nascido na segunda década da nossa era; Guerra
dos Judeus e Antiguidades Judaicas, escritos pelo historiador
judeu-romanizado Flávio Josefo, que viveu entre 37 e 100 d.C.; Refutação de
todas as heresias, de Hipólito de Roma – tratado este redigido por volta de
230 da nossa era; e História Natural de Plínio, o Antigo, obra concluída
aproximadamente no ano 77 da era cristã.
As
Seitas Judaicas
(Guerra
dos Judeus, Flávio Josefo, lI, VIII, § 119.) “Existem, com efeito, entre os
judeus, três escolas filosóficas: os adeptos da primeira são fariseus; os da
segunda, os saduceus; os da terceira, que apreciam justamente praticar uma vida
venerável, são denominados essênios: são judeus pela raça, mas, além disso,
estão unidos entre si por uma afeição mútua maior que a dos outros. ”
Com
relação à natureza do recrutamento dos essênios, Fílon (Apologia, § 2)
expõe uma visão diferente da de Josefo. Segundo ele: “Seu compromisso não é
devido à raça – a palavra ‘raça’ não é adequada quando se trata de voluntários
–, mas tem como causa o zelo da virtude e o ardente amor pelos homens”.
O
Ideal Essênio: Ascetismo e Vida Comunitária
(Guerra
dos judeus, § 120) “Os essênios repudiam os prazeres como um mal e
consideram como virtude a continência e a resistência às paixões. Eles
desprezam, para si mesmos, o casamento; mas adotam os filhos dos outros numa
idade ainda bastante tenra para receberem seus ensinamentos: eles os consideram
como se fossem de sua família e os moldam de acordo com os seus costumes. ”
Também
aqui o ponto de vista de Fílon (Apologia, § 3) é divergente: “Entre os
essênios (Fílon e Josefo adotam duas formas um pouco diferentes do nome dessa
facção judicial), portanto, não existem absolutamente crianças pequenas, nem
tampouco adolescentes ou jovens, uma vez que os caracteres dessas idades são inconstantes
e voltados para as novidades, em função da falta de maturidade; existem apenas
homens de idade madura e inclinados já para a velhice, que não são mais
dominados pelo fluxo do corpo nem arrastados pelas paixões, mas que gozam da
liberdade verdadeira e realmente única”.
(Guerra
dos Judeus, § 121) “Não se trata, por parte deles, da abolição do casamento
e, consequentemente da prorrogação da espécie, mas da defesa contra o impudor
das mulheres e da convicção de que nenhuma delas conserva sua fidelidade a um
único homem. ”
Por
outro lado, Josefo apresenta outros motivos para o celibato quando diz: em suas
Antiguidades Judaicas (XVIII, I, § 21): “Além disso, eles não tomam
esposas e não adquirem escravos; consideram, com efeito, que tal coisa constituiria
uma injustiça e que levaria à discórdia. Vivem, por conseguinte, entre si e
realizam, um para o outro, as tarefas do servo”.
Fílon
defende, sobre este assunto, a seguinte opinião (Apologia, § 14-17) :(§ 14.)
“Por outro lado, prevendo com perspicácia o obstáculo que ameaçaria, seja por
si só, seja de modo mais grave, dissolver os laços da vida comunitária, eles
baniram o casamento, ao mesmo tempo em que prescreveram a prática de uma
perfeita continência. Com efeito, nenhum dos essênios toma esposa, pois a
mulher é egoísta, excessivamente ciumenta, hábil em distorcer os costumes do
marido e em seduzi-lo por sortilégios incessantes”. (§ 15.) “A mulher se
empenha totalmente em usar palavras aduladoras e toda a espécie de máscaras,
como os atores no palco; depois, quando fascinou os olhos e aprisionou as
orelhas – isto é, quando enganou os sentidos que são como subalternos –, ela
desencaminha a inteligência soberana. ” (§ 16.) “Se por outro lado, nascem
filhos, cheia de orgulho e de impudência ela agora afirma com uma audaciosa
arrogância o que antes se contentava em insinuar hipocritamente por meio de
alusões, e, desprovida de vergonha, usa a violência para cometer atos
contrários ao bem da vida comunitária. ” (§ 17.) “O esposo, acorrentado pelos
filtros da mulher, ou então preocupado com os filhos por necessidade natural,
não é mais o mesmo para os outros, mas se torna, contra a sua vontade, um outro
homem, um escravo em lugar de um homem livre”.
A
opinião dos essênios sobre o casamento, na realidade, parecia sofrer algumas
variações de acordo com a época, ou segundo a colônia em questão. Assim, em
outro trecho do mesmo livro (Guerra dos Judeus, §§ 160-161) Josefo
afirma:
(§
160.) “Existe ainda uma outra ordem de essênios que concordam com os demais no
que se refere ao tipo de vida e aos usos e costumes, mas que deles diferem no
tocante à questão do casamento. Eles pensam, com efeito, que as pessoas não
casadas suprimem uma parte muito importante da vida, isto é, a propagação da
espécie, tanto mais que, se todos adotassem a mesma opinião, o gênero humano
desapareceria de modo bastante rápido”. (§ 161.) “Contudo, eles examinam suas
mulheres durante três [meses]: quando forem purificadas por três vezes,
provando assim que podem conceber, eles as desposam. E quando estão grávidas
eles não têm relação com elas, mostrando, dessa maneira, que não se casam
pensando no prazer, mas porque os filhos são necessários. As mulheres banham-se
envolvidas em roupas íntimas, da mesma forma que os homens colocam uma tanga. Esses
são os hábitos dessa ordem”.
Josefo
relata outros aspectos da vida dos essênios após analisar o casamento: (Guerra
dos Judeus, § 122) “Eles são os menosprezadores da riqueza e sua vida
comunitária é admirável: procurar-se-ia em vão, entre eles, alguém que
sobrepujasse os outros pela fortuna. Com efeito, trata-se de uma lei: aqueles
que entram para a seita entregam seus bens à ordem, de tal forma que entre eles
não se vê absolutamente nem a humilhação da pobreza nem o orgulho da riqueza,
já que as posses se encontram reunidas, não existindo para todos senão um único
haver, como ocorre entre irmãos”.
(§
123) “Eles consideram o óleo como uma mancha e, caso alguma pessoa, contra a
vontade, tenha sido untada, ela enxuga seu corpo; com efeito, eles encaram como
um dever manter a pele seca e estar sempre vestidos de branco.
Os
administradores dos fundos comuns são eleitos, e, de modo indistinto, cada um é
designado, em nome de todos, para as diversas funções. ”
(§
124) “Não têm uma cidade única, mas em cada cidade compõem com alguns outros
uma colônia. Além disso, aos membros da seita que chegam de outros lugares está
franqueado tudo o que eles têm entre si, da mesma maneira como ocorrera com
eles, e entram na casa das pessoas que nunca viram como se estivessem entre
amigos íntimos. ”
Da
mesma forma, Fílon declara que “eles habitam numerosas cidades da Judéia e
também diversas aldeolas e agrupamentos com grandes efetivos” (Apologia,
§ 1). Por outro lado, em seu tratado intitulado Quod omnis probus liber sit (§
76), diz: “Eles habitam em espécies de pequenas aldeias, fugindo das cidades
por causa das impiedades que são costumeiras entre seus habitantes; com efeito,
estão bem cientes de que, assim como um ar deletério desenvolve, nesse
contexto, as epidemias, nele a vida social inflige às almas golpes incuráveis”.
(Guerra
dos judeus, § 125) “Essa também é a razão por que eles fazem suas viagens
sem levar absolutamente nada; contudo, andam armados por causa dos salteadores.
”
Nesta
mesma obra, Fílon como que idealiza a filosofia e o modo de vida desse povo, ao
afirmar (Quod omnis probus..., § 78): “Procurar-se-ia em vão entre eles
um fabricante de flechas, de dardos, de espadas, de capacetes, de couraças ou
de escudos, numa palavra, de armas ou de máquinas militares ou de algum
instrumento de guerra, ou até mesmo de objetos pacíficos que pudessem ser
desviados para o mal”.
(Guerra
dos judeus, § 125, final) “Em cada cidade, um questor da ordem,
especialmente encarregado dos hóspedes, é designado como intendente das
vestimentas e do necessário. ” (§ 126,) “Seus trajes e a aparência exterior se
assemelhavam aos das crianças que um pedagogo educa no temor; eles só mudam de
vestes ou de sapato quando estes estão completamente rotos ou desgastados pelo tempo.
” (§ 127,) “Entre eles não se compra nem se vende nada: cada um dá aquilo de
que dispõe a quem disso tem necessidade e recebe deste último, em troca, aquilo
que precisa; e pode mesmo ocorrer que, sem darem nada em troca, recebam
livremente de quem quiserem. ”
O
Dia do Essênio
(Guerra
dos judeus, § 128,) “Sua piedade para com a divindade assume uma forma
particular: antes do nascimento do sol não pronunciam nenhuma palavra profana,
mas recitam algumas orações ancestrais dirigidas a sol, como se lhe suplicassem
que surgisse. ”
(§
129) “Depois dessas orações, os administradores os despedem, para que cada um
se dedique ao ofício que conhece. ”
“Em
seguida, após terem trabalhado, sem interrupção, até a quinta hora (aproximadamente
onze horas da manhã), eles se reúnem novamente no mesmo lugar e, tendo-se
cingido com tangas de linho, banham desse modo o corpo na água fria. Depois
dessa purificação, agrupam-se numa edificação especial onde não é permitido o
acesso a ninguém que não possua a mesma fé; eles próprios não entram no
refeitório senão purificados, tal como num recinto sagrado. ” (§ 130.) “Depois
de estarem tranquilamente sentados, o padeiro serve os pães pela ordem e o
cozinheiro serve a cada um o conteúdo de uma única gamela, com uma só iguaria.
” (§ 131.) “O sacerdote dá início à refeição através de uma oração, e a ninguém
é permitido provar o alimento antes da oração; e depois de terem comido, ele
pronuncia uma nova oração: no começo e no final eles louvam a Deus enquanto
dispensador da vida.
Em
seguida guardam as vestes que haviam colocado para a refeição, dado que são
vestes sagradas, e, se dedicam novamente ao trabalho até a noite. ”
(§
132.) “Então voltam e procedem ao jantar da mesma maneira e os hóspedes que
estiverem de passagem entre eles se assentam à mesa. Nenhum grito nem tumulto
jamais desonram a casa; eles falam uns com os outros na maior ordem. ”
(§
133.) “Para os forasteiros, esse silêncio parece um mistério terrível. A causa
desse silêncio é a sua sobriedade permanente, e o fato de que alimento e bebida
lhes são fornecidos na justa medida para deixá-los saciados, e nada mais. ”
As
Virtudes Essênias
(Guerra
dos judeus, § 134.) “No conjunto, por conseguinte, não há nada que eles
realizem sem a ordem dos administradores; mas as duas coisas que aqui seguem só
dependem deles mesmos: a assistência e a piedade. Com efeito é-lhes permitido –
por parte do próprio chefe – socorrer os que são dignos disso, sempre que estes
o peçam, e dar comida aos indigentes. Mas não têm o direito de fornecer
subvenções aos membros de sua família sem a autorização dos procuradores. ”
(§
135.) “São justos árbitros da cólera, homens que dominam seu arrebatamento,
modelos de lealdade, artesãos da paz. Toda palavra que pronunciam é mais forte
que um juramento, e eles se abstêm de jurar, considerando tal coisa pior que o
perjúrio; pois, dizem eles, aquele em quem não se pode crer sem que tome Deus
como testemunha condena-se por isso mesmo. ”
Josefo
salienta a justiça dos essênios, em suas Antiguidades Judaicas (ibid.,§
20): “Deve-se admirar neles, se os compararmos a todos os outros adeptos da
virtude, a sua prática da justiça, que não deve ter existido, de modo algum, em
nenhum grupo grego nem em nenhum bárbaro, ainda que por pouco tempo, mas que se
encontra entre eles desde uma data remota, sem que houvesse para isto nenhum
impedimento: eles repartem os próprios bens, e o rico não goza mais de sua fortuna
que aquele que não possui absolutamente nada.”
Os
Livros Essênios
(Guerra
dos Judeus, § 136.) “Eles se dedicam com um zelo extraordinário ao estudo
das obras dos antigos [cf. também, a esse respeito, o § 142, citado adiante],
escolhendo sobretudo aqueles que visam à utilidade da alma e do corpo. É aí que
estudam, para curar as doenças, as raízes que protegem contra elas e as
propriedades das pedras.
A
Admissão na Seita:
Estágios
Preparatórios, Juramento Prévio
(Guerra
dos Judeus, § 137.) “Os que desejam entrar para a seita não obtêm o acesso
de forma imediata. O postulante espera durante um ano antes de integrar-se a
ela: é-lhe proposto o mesmo tipo de vida e são-lhe enviadas uma machadinha e a
tanga de que já falei, assim como uma vestimenta branca. ”
(§
138.) “Depois, quando, durante esse período, ele deu provas de sua continência,
aproxima-se mais do tipo de vida e participa dos banhos da purificação de um
grau superior, mas ainda não é admitido na intimidade; com efeito, após ter
mostrado sua constância, ele tem seu caráter examinado por mais dois anos, e
caso pareça digno, é recebido definitivamente na comunidade. ”
(§
139.) “Mas, antes de chegar a refeição comum, ele pronuncia diante de seus
irmãos importantes juramentos. Jura, em primeiro lugar, praticar a devoção para
com a divindade; em seguida, jura observar a justiça em relação aos homens e
não fazer mal a ninguém, nem espontaneamente nem por ordem de outrem; jura
odiar sempre os injustos e combater ao lado dos justos. ” (§ 140.) “Jura mostrar-se
sempre leal para com todos, mas sobretudo para com os que detêm o poder; pois
nunca a autoridade recai sobre um homem sem a vontade de Deus. Jura que, caso
chegue a ocupar um posto de comando, jamais se mostrará insolente no exercício
de seu cargo e não eclipsará seus subordinados em virtude das vestes ou
paramentando-se melhor do que eles. ” (§ 141.) “Jura amar sempre a verdade e
perseguir os mentirosos; jura conservar as mãos limpas de roubo e a alma livre
de ganho iníquo. Jura ainda nada esconder dos membros da seita, assim como nada
revelar senão a estes, mesmo que se use de violência contra ele até a morte. ”
(§ 142.) “Além disso, jura não comunicar a ninguém nenhuma das doutrinas, a não
ser na forma como ele próprio as recebeu, abstendo-se de qualquer [alteração],
e conservar da mesma maneira os livros da seita, assim como os nomes dos anjos.
Esses são os juramentos pelos quais eles se asseguram da fidelidade dos que
entram para a seita. ”
A
Exclusão da Seita, o Poder Judiciário
(Guerra
dos judeus, § 143.) “Os que são surpreendidos em faltas graves são expulsos
da ordem. O indivíduo assim excluído muitas vezes morre vitimado pelo mais
miserável destino; pois, acorrentado por seus juramentos e costumes, não pode
sequer partilhar do alimento dos outros; reduzido a comer ervas, ele perece, o
corpo é debilitado pela fome. ” (§ 144.) “Da mesma forma, a muitos eles
recolheram por piedade, quando de seu último suspiro, considerando suficiente
para a expiação de suas faltas essa tortura que levava à morte. ”
(§145.)
“Em termos de julgamento, eles são bastante precisos e imparciais. Administram
justiça no decorrer de reuniões em que não se reúnem menos de cem, e aquilo que
decidirem é irrevogável. Entre eles, o nome do Legislador é, depois de Deus, um
grande objeto de veneração [mais que de Moisés, poderia realmente tratar-se,
neste caso, do Organizador dessa facção]; e, caso alguém venha a blasfemar
contra o Legislador, é punido com a morte. ”
(§
146.) “Eles consideram um dever a obediência aos mais velhos, assim como à
maioria; quando, por exemplo, estão reunidos em dez, ninguém toma a palavra se
os outros nove a isso se opuserem. ”
Prescrições
Particulares:
Repouso
Sabático, Excreções
(Guerra
dos Judeus, § 147.) “Além disso, eles evitam cuspir perto dos companheiros
ou à direita; é-lhes também proibido, de maneira mais rigorosa que entre todos
os judeus, dedicar-se a seus trabalhos no sétimo dia da semana: não somente
preparam a própria comida na véspera, de forma a não acender o fogo neste dia, como
também não ousam deslocar um objeto nem evacuar. ”
(§
148.) “Nos outros dias cavam um buraco da profundidade de um pé com seu enxadão
– pois é desse tipo de machadinha entregue aos novos adeptos. É aí que eles se
agacham envoltos em seu manto, de modo a não ofender os raios de Deus. ” (§ 149) “Em seguida, empurram para o buraco a
terra que haviam retirado ao cavar. Para essa operação, escolhem os locais mais
ermos. Por mais natural que seja a evacuação dos excrementos, eles costumam
lavar-se depois delas como se estivessem sujos. ”
As
Quatro Classes de Essênios
(Guerra
dos Judeus, § 150.) “Eles se dividem em quatro grupos, de acordo com a
antiguidade de suas práticas: e os mais jovens são de tal modo inferiores aos
mais velhos que estes últimos, caso venham a tocar os primeiros, se lavam como
se tivessem tido contato com um estrangeiro” (cf. os §§ 137-138).
Suas
Crenças Acerca da Alma e do Além
(Guerra
dos Judeus, § 153.) “Sorrindo em meio às dores e zombando dos que lhes
infligiam as torturas, eles entregavam a alma de bom grado, convencidos de que
a recuperariam novamente. ” (§ 154.) “Com efeito trata-se de uma doutrina bem
consolidada entre eles a de que os corpos são passíveis de corrupção e sua
matéria, instável, as almas são imortais e permanecem para sempre; de que,
vindas do éter mais sutil, elas se encontram vinculadas aos corpos que lhes
servem de prisão, atraídas que são, por algum sortilégio físico, para o plano inferior.
” (§ 155,) “Mas quando se libertam dos laços – e, por assim dizer, de uma longa
escravidão –, sentem júbilo e se elevam para o mundo celeste. ”
O
trecho seguinte é um longo texto de características inteiramente helenísticas:
“Assim
como os filhos dos gregos, eles afirmam que às almas boas está reservada a
moradia situada para além do Oceano, um lugar sobre o qual não se abatem nem
chuvas, nem neves, nem calores tórridos, mas que é constantemente refrescado
pelo doce zéfiro que sopra do Oceano; por outro lado as almas más são por eles
relegadas a uma cavidade tenebrosa e agitada pelas tempestades, cheia de
castigos incessantes. ” (§ 156.) “É no quadro do mesmo pensamento, ao que me
parece, que os gregos reservaram para os seus bravos, que denominam ‘heróis’ e
‘semideuses’ as ilhas dos Bem-Aventurados, e para as almas dos perversos o
lugar dos ímpios, no Hades, onde, ainda segundo sua mitologia, algumas
personagens sofrem seu suplício: os Sísifos e os Tântalos, os Lixões e os
Títios. Uma crença desse tipo, em primeiro lugar, supõe que as almas sejam
eternas; além disso, serve para encorajar a virtude e desviar do vício. ” (§
157.) “Com efeito os bons se tornarão melhores durante a sua vida, se tiverem a
esperança de que serão recompensados, mesmo depois de seu final, ao passo que
os maus refrearão seus instintos por medo, caso contem – mesmo no caso de virem
a escapar durante o período da vida – com a possibilidade de sofrerem um
castigo eterno após a sua dissolução. ” (§ 158.) “Esses são, por conseguinte,
os ensinamentos religiosos dos essênios no que diz respeito à alma: trata-se de
uma isca que atiram e a que não resistem os que alguma vez experimentaram a sua
sabedoria. ”
A
crença na ressurreição dos corpos é atribuída aos essênios por Hipólito que, em
Refutations (IX, 27), expõe argumentos que descartam qualquer dúvida.
Analisando as mesmas questões que Josefo e Fílon, faz uma comparação entre as
doutrinas dos gregos e dos essênios sob um prisma apologético amplamente
difundido: “A doutrina da ressurreição está, entre eles, fortemente
estabelecida. Com efeito, eles afirmam que a carne ressuscitará e será imortal,
da mesma maneira que a alma já é imortal; esta última, quando se separa do
corpo, vai repousar, até o julgamento, num lugar agradavelmente arejado e luminoso:
trata-se do lugar que os gregos, que haviam ouvido falar dele, denominaram
Ilhas dos Bem-Aventurados. Mas existem ainda outras doutrinas dos essênios de
que muitos gregos se apropriaram para fazer delas suas próprias doutrinas. ”
O
seu Dom de Previsão
(Guerra
dos Judeus, § 159.) “Existem mesmo entre eles aqueles que se dedicam a
prever o futuro, experimentados que são no estudo dos livros santos, dos
escritos [sagrados] e das sentenças dos profetas; e é raro que lhes ocorra se
enganarem em suas provisões. ”
A
estes extratos da Notícia da Guerra dos Judeus, acrescentaremos
outros ensinamentos importantes e característicos das Antiguidades Judaicas.
Deus
e o Destino
(XVIII,
I, §18) “Com predileção os essênios ensinam que em todas as coisas nos voltemos
para Deus. ”
(Antiguidades,
XIII, V, § 172) “A seita dos essênios afirma que o Destino é senhor de tudo, e
que nada que não esteja em conformidade com a sua decisão chega a ocorrer aos homens.
”
O
Culto
(§
19.) “Eles enviam oferendas ao Templo, mas não realizam sacrifícios em seu
recinto, uma vez que as purificações que costumam praticar são diferentes; essa
é a razão por que, abstendo-se de entrar no recinto comum, realizam seus
sacrifícios entre si. ”
Em
Quod amnis probus (§ 76), Fílon contrapõe-se a Josefo ao espiritualizar
o culto dos essênios: “Eles que não sacrificam animais, mas que julgam mais
adequado tornar verdadeiramente santos os seus pensamentos”.
Importância
Numérica dos Essênios
(§
20.) “São mais de quatro mil homens a se comportarem dessa maneira. ” (Fílon, Quod
amnis probus, §75.) “A Síria Palestina, que ocupa uma parte importante da
populosa nação dos judeus, não é, também ela, estéril em virtude. Alguns deles,
que somam mais de quatro mil, são denominados essênios. ”
Grande
parte dos aspectos abordados nessa descrição apresentada pelas Notícias –
estágios sucessivos para novos membros, hierarquização rigorosa, juramento
específico, forma de vida comunitária e ascética, respeito extremo ao repouso
sabático, preocupação com a pureza e a justiça, lugar reservado aos sacerdotes,
dedicação ao estudo dos livros santos, crença no Destino, conhecimento dos
acontecimentos futuros – coincide muitíssimo com o painel que se pode montar a
partir dos dados contidos nos manuscritos das grutas de Qumran. Naturalmente,
tais comunidades passaram por uma série de transformações num período de dois
séculos, uma vez que nem todas as características de uma comunidade são
constantes e imutáveis.
Sendo assim, em
decorrência de uma descoberta ocorrida completamente por acaso, num ponto
perdido do deserto de Judá, foi possível conhecer com detalhes um povo que
estivera, por muito tempo, cercado de mistério – os essênios. Entre o material
encontrado, a presença de diversas obras pertencentes à literatura judaica
intertestamentária (“Apócrifos”, segundo os católicos, e Pseudo-epígrafes para
os protestantes) configura-se como uma confirmação das teses sobre sua origem essência.
FONTE:
HUBERTO RODHEN
Apologia
dos Judeus e Vida Contemplativa de Fílon, o filósofo judeu de Alexandria,
Guerra dos
Judeus e Antiguidades Judaicas - Flávio
Josefo,
Refutação
de todas as heresias, de Hipólito de
Roma
História
Natural de Plínio, obra concluída
aproximadamente no ano 77 da era cristã.
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