sábado, 28 de agosto de 2021

A FESTA NUPCIAL

 

A festa nupcial

(Mt 22, 1-14)

Continuou Jesus a falar-lhes em forma de parábolas,

dizendo: “O reino dos céus é semelhante a um rei que celebrava as núpcias de seu filho. Mandou os seus servos para chamar às núpcias os convidados. Estes, porém, não quiseram vir. Então mandou outros servos com esta ordem: Dizei aos convidados: Eis que tenho pronto o meu banquete; mandei carnear os meus bois e animais cevados; está tudo pronto; vinde às núpcias. Eles, todavia, não ligaram importância, e foram-se embora, um para seu campo, outro para o seu negócio; os restantes prenderam os servos, maltrataram-nos e os mataram.

Indignou-se o rei a esta notícia, mandou os seus exércitos, deu cabo daqueles assassinos e pôs fogo à sua cidade. Em seguida, disse a seus servos: Está pronto o banquete nupcial; mas os convidados não foram dignos dele. Ide, pois, pelas encruzilhadas e convidai às núpcias a quantos encontrardes. Saíram os servos estradas em fora e ajuntaram todos os que encontraram, bons e maus; e encheu-se de convivas a sala do banquete.

Nisto entrou o rei para ver os que estavam à mesa. E deparou-se lhe um homem que não trajava veste nupcial. Amigo – disse-lhe –, como entraste aqui sem ter a veste nupcial? Aquele, porém, ficou calado. Ordenou então o rei aos servos: Atai-o de mãos e pés e lançai-o às trevas de fora; aí haverá choro e ranger de dentes. Porque muitos são os chamados, mas poucos os escolhidos”.

Pelas núpcias humanas se perpetua avida racial terrestre – pelas núpcias divinas se realiza a vida individual celeste “O Reino dos Céus é semelhante a um rei que celebrava as núpcias de seu filho”. Em todas as literaturas, dentro e fora do cristianismo, a experiência mística aparece invariavelmente em roupagens de vivência erótica. Na Bíblia, não é somente no “Cântico dos Cânticos” de Salomão, mas também no Evangelho do Cristo, que mística e erótica figuram uma ao lado da outra. Eros e Logos aparecem sempre de mãos dadas.

Para, de algum modo, compreender tão paradoxal mistério, é necessário que assumamos a perspectiva seguinte:

A Vida é a quintessência do Universo. A Vida é a Divindade, Brahman, Tao,

Iahweh. A Realidade do Universo é Vida.

É da íntima natureza da Vida, una e Única, que ela se manifeste em forma de Vivos; que o eterno Uno se revele sem cessar em Verso temporário, formando o Universo, a Unidade na Diversidade.

O Universo é Vida manifestada em Vivos.

Mas os Vivos, não podendo perpetuar-se individualmente, têm a irresistível

Tendência de se perpetuarem racialmente, na imortalidade da espécie.

A impossibilidade da imortalidade individual é substituída pela possibilidade da imortalização racial.

O instinto sexual – libido, no mundo animal, erótica, no mundo hominal – está a serviço da imortalização da espécie, daí a sua irresistível veemência. É imperativo categórico da Vida que os Vivos se perpetuem.

No mundo hominal superior, a mística realiza no plano individual o que a erótica procura realizar no plano inferior da raça. A mística realiza a imortalidade simultânea do indivíduo, ao passo que a erótica realiza a imortalidade sucessiva da espécie.

Erótica e mística, como se vê, estão a serviço da imortalidade, cada uma na sua esfera.

Por isto, a estranha afinidade entre o imperativo sexual, que visa procrear a imortalidade racial e o imperativo espiritual, que crea a imortalidade individual. O crear supera o procrear.

No plano superior, a tendência erótica decresce na razão direta do crescimento da experiência mística; quando esta atinge o mais alto zênite, aquela baixa ao mais profundo nadir. A imortalidade qualitativa extingue o desejo da imortalização quantitativa.

Os grandes místicos são, geralmente, dotados de uma veemente potencialidade erótica – não no sentido de que, antes de se tornarem místicos, devam ter sido atualmente eróticos, como vemos na vida de Santo Agostinho e de Mahatma Gandhi; mas no sentido de que uma intensa vitalidade, que se revela em potencialidade erótica, pode-se manifestar em potência mística, como no caso de Francisco de Assis, e, sobretudo, de Jesus de Nazaré, nos quais não aparece nenhuma erótica atual, mas a erótica potencial se manifestou diretamente em mística atual. Uma erótica sadia, não eclodida, pode eclodir numa grande mística.

À luz destas premissas é possível compreender, de algum modo, o constante paralelo entre erótica e mística, entre as núpcias humanas e as núpcias divinas.

Mestres hindus de Yôga Tântrica vão ao ponto de recomendar a seus discípulos prática de interromperem o orgasmo sexual da erótica humana no ponto culminante, antes de o consumarem, a fim de entrarem subitamente no entusiasmo espiritual da mística divina. Semelhante prática parece quase um desafio sádico para o homem e a mulher comuns; mas baseia-se na suposição tácita de haver uma afinidade latente entre Eros e Logos. E, na realidade, tanto a erótica como a mística giram em tomo do início de uma vida nova, seja no plano horizontal dos egos humanos interessados em perpetuar a vida racial da humanidade, seja na dimensão vertical do Eu divino responsável pela imortalização da vida individual do homem. Aquela se realiza no infra consciente, está no superconsciente.

No orgasmo erótico ocorre um mergulho momentâneo de duas vidas individuais– homem e mulher – no oceano cósmico da Vida Universal, onde se acende uma terceira vida, a do filho.

No entusiasmo místico há um mergulho-relâmpago de uma vida individual

humana no mar imenso da Vida Universal da Divindade, e neste momento se acende na creatura humana a vida imortal, integrada na Divindade; o filho concebido não é uma entidade alheia separada do místico, mas é ele mesmo numa nova dimensão de existência. Pode-se dizer que, na experiência mística, ocorre uma auto concepção: o homem imortalizável se torna imortalizado; o ponto culminante na vida humana é essa auto concepção, que se consumará na auto parturição, em “dar à luz a si mesmo”, como diz um autor moderno. “Quem não nascer de novo pelo espírito não pode ver o Reino de Deus”.

A erótica, que é a mística da carne, perpetua a imortalidade racial da humanidade.

A mística, que é a erótica do espírito, realiza a imortalidade individual do homem.

Freud escreveu um livro intitulado Eros e Thânatos (Amor e Morte), como que sentindo a afinidade entre Amor e Morte. Se não houvesse a morte dos

Indivíduos, não haveria necessidade para o Eros, destinado a preencher convida nova as lacunas que Thânatos abre nas vidas individuais. Eros equilibra o déficit que Thânatos causa incessantemente.

Mas, quando o Eros do ego culmina no Logos do Eu, não há mais lugar para

Thânatos, porque Logos é Athânatos, imortalidade. Quando a mística atinge o seu zênite, a erótica desce a seu nadir. A mística, em sua plenitude, não é uma erótica sublimada, mas sim uma erótica totalmente superada pela mística.

* * *

“Um rei fez as núpcias para seu filho”...

A Divindade, enviando ao mundo o “Unigênito do Pai”, o “Primogênito de todas as creaturas”, realizou as núpcias místicas do Cristo Cósmico, do Verbo, do Logos, com a natureza humana de Jesus de Nazaré. E o Jesus humano, integrando-se totalmente no Cristo divino, redimiu a sua humanidade individual, divinizando a natureza humana.

Desde então, existe uma humanidade Cristo-redimida – não a humanidade

coletiva do gênero humano, que continua irredenta (feminino de irredento. Não redimido, não resgatado), mas sim, a humanidade individual em Jesus.

Estas núpcias místicas do Cristo Cósmico com a natureza humana de Jesus,

esse conúbio metafísico do Verbo com a carne, pela Encarnação, foram o

prelúdio e o penhor para que a carne se fizesse Verbo, na Ressurreição; e, na ascensão, o Verbo encarnado e a carne verbificada subiram aos céus.

Ora, essa theosis, que aconteceu uma vez, em Jesus, pode acontecer mais

vezes; a humanidade, uma vez Cristo-remida em Jesus, pode ser Cristo-remida em outras creaturas humanas. A cristificação de Jesus é um precedente é uma porta aberta para a cristificação de outras creaturas humanas. Um ser humano disse “Está consumado”, está realizada a tarefa da minha cristificação – e outros homens têm a possibilidade de consumar essa mesma tarefa de cristificação pelas núpcias místicas com o Verbo.

A parábola do pai que fazia as núpcias de seu filho tem uma perspectiva cósmica de infinita profundidade e amplitude

 

FONTE:

Huberto Rodhen

Bíblia de Jerusalém

Nenhum comentário:

Postar um comentário