Por
impossibilidade de um consenso quanto a resumo, síntese, ou sinopse o grupo
resolveu transcrever o livro adotado para estudo.
Cabe a cada um
suas próprias conclusões como coube ao grupo de estudos não fazer resumo.
HÁ UM ABISMO
entre o Cristo e o Cristianismo, tão grande quanto o abismo existente entre
Jesus de Nazaré, filho de José e Maria, nascido em Nazaré, na Galileia, e Jesus
Cristo, nascido da Constelação da Virgem, na Cidade do Rei Davi em Belém da
Judéia, segundo o mito hebraico do Messias. Por isso a Civilização Cristã,
nascida em sangue e em sangue alimentada, não possui o Espírito de Jesus, mas o
corpo mitológico do Cristo, morto e exangue. Por isso o Padre Alta estabeleceu,
em Paris, a diferença entre o Cristianismo do Cristo e o dos seus vigários. Não
podemos condenar o processo histórico, que brotou, rude e impulsivo, das
condições humanas de civilizações agrárias e pastoris, mas não é justo que o
conservemos em nosso tempo de abertura para novas dimensões da realidade humana
e da realidade cósmica. O Mahatma Gandhi exclamou, ao ler os Evangelhos:
"Como pôde uma árvore como esta dar os frutos que conhecemos?" Kalil
Gibran Kalil viu Jesus de Nazaré encontrar-se com o Jesus dos Cristãos numa
colina do Líbano, onde conversaram, e Jesus de Nazaré retirar-se murmurando:
"Não podemos nos entender. Melanchton assustou-se com a depuração da
Reforma e perguntou a Lutero: "Se tiras tudo dos Cristãos, o que lhes
pretendes dar?" Lutero respondeu: "Cristo." As atuais Teologias
da Morte de Deus, nascidas da loucura de Nietsche, provam a razão de Lutero. A
Nova Teologia do Padre Teilhard de Chardian oferece-nos os rumos da renovação.
E o Papa João XXIII, um camponês que voltou ao campo, tentou limpar a seara. E
tempo de compreendermos que Jesus de Nazaré não voltou das nuvens de Betânia,
mas em espírito e verdade, para conduzir-nos a toda a Verdade Prometida.
NASCIMENTO DO CRISTIANISMO
Admitimos que a
causa original do nascimento do Cristianismo foi a iniciativa de Jesus Nazareno,
que viveu na Palestina em tempos de Augusto e de Tibério. Os textos não nos
ensinam grande coisa sobre ele, mas pelo menos nos mostram que era um homem
real e não representa um agregado de mitos e símbolos, que figura na linha dos
profetas de Israel, tendo-se dedicado a anunciar a próxima realização das
esperanças do seu povo. Acreditava perceber o raiar do Dia de Javé e sentir os
primeiros frêmitos da palingenesia que os judeus chamavam “O Reino ou Reino de
Deus”.
Ao saber isso,
sabemos também que Jesus não desejava trabalhar por um futuro longínquo, que
ele nem previu nem desejou a Igreja Cristã, que ele não foi um fundador de
religião, nem mesmo um reformador religioso.
HÁ UM ABISMO
entre o Cristo e o Cristianismo, tão grande quanto o abismo existente entre
Jesus de Nazaré, filho de José e Maria, nascido em Nazaré, na Galileia, e Jesus
Cristo, nascido da Constelação da Virgem, na Cidade do Rei Davi em Belém da
Judéia, segundo o mito hebraico do Messias. Por isso a Civilização Cristã,
nascida em sangue e em sangue alimentada, não possui o Espírito de Jesus, mas o
corpo mitológico do Cristo, morto e exangue.
Por isso o Padre
Alta estabeleceu, em Paris, a diferença entre o Cristianismo do Cristo e o dos
seus vigários. Não podemos condenar o processo histórico, que brotou, rude e
impulsivo, das condições humanas de civilizações agrárias e pastoris, mas não é
justo que o conservemos em nosso tempo de abertura para novas dimensões da
realidade humana e da realidade cósmica.
O Mahatma Gandhi
exclamou, ao ler os Evangelhos: "Como pôde uma árvore como esta dar os
frutos que conhecemos?"
Kalil Gibran
Kalil viu Jesus de Nazaré encontrar-se com o Jesus dos Cristãos numa colina do
Líbano, onde conversaram, e Jesus de Nazaré retirar-se murmurando: "Não
podemos nos entender.
Melanchton
assustou-se com a depuração da Reforma e perguntou a Lutero: "Se tiras
tudo dos Cristãos, o que lhes pretendes dar?" Lutero respondeu:
"Cristo." As atuais Teologias da Morte de “Deus (!!!)”, nascidas da
loucura de Nietsche, provam a razão de Lutero.
A Nova Teologia
do Padre Teilhard de Chardian oferece-nos os rumos da renovação. E o Papa João
XXIII, um camponês que voltou ao campo, tentou limpar a seara. E tempo de
compreendermos que Jesus de Nazaré não voltou das nuvens de Betânia, mas em
espírito e verdade, para conduzir-nos a toda a Verdade Prometida.
I - A DESCOBERTA
DO CRISTO
Na Galileia dos Gentios, sob o domínio romano
de Israel, as esperanças judaicas do Messias cumpriram-se de maneira estranha e
decepcionante. Nasceu o menino Jesus em Nazaré, na extrema pobreza da casa de
um carpinteiro, próximo à Decápolis impura, das dez cidades gregas que
maculavam a pureza sagrada da terra que Javé cedera ao seu povo.
Era penoso para
os judeus aceitarem esse desígnio do Senhor, que mais uma vez lhes impunha
terrível humilhação.
José, o
carpinteiro, casara-se com uma jovem de família pobre e obscura, com pretensas
ligações à linhagem de Davi. Jesus devia nascer em Belém de Judá, a Cidade do
Rei cantor, poeta e aventureiro. E devia chamar-se Emmanuel segundo as
profecias.
Javé certamente
castigava os judeus pela infidelidade do seu povo, que deixara a águia romana
pousar no Monte Sião. Toda a heroica tradição de Israel se afogava na traição à
aliança divina da raça pura, do povo eleito, com o poder impuro de César. A
decepção dos judeus aumentava ante a desairosa situação social de José, velho e
alquebrado artesão, casado com uma jovem que já lhe dera vários filhos. Jesus
não gozava sequer das prerrogativas de primogênito. Herodes, o Grande, que se
contentara, no ajuste com os romanos, a dominar apenas a Galileia e além disso
construíra o seu palácio sobre a temível impureza das terras de um cemitério,
tremeu ante esse novo desafio aos brios da raça e condenou os que aceitavam
esse nascimento espúrio como sendo o do Messias de Israel. Era necessário, para
sua própria segurança, desfazer esse engano. O menino intruso devia ser
sacrificado, e para isso bastava recorrer às alegorias bíblicas e espalhar a
lenda da matança dos inocentes.
Nos tempos
mitológicos em que se encontravam era comum tomar-se a Nuvem por Juno. Mas o
menino, que nascera de maneira incomum, filho de família pobre (e por isso
suspeita), cresceu revelando inteligência excepcional que provocava a admiração
do povo. Submetido à sabatina ritual dos rabinos do Templo de Jerusalém, para
receber a bênção da virilidade, assombrara os doutores da Lei com o seu
conhecimento precoce. Mas esse brilho fugaz era insuficiente para lhe garantir
a fama messiânica. Logo mais ele se mostrava integrado na família humilde à
condição inferior e aprendendo com o velho pai a profissão a que se dedicaria.
Não obstante, para prevenção de dificuldades futuras, as raposas herodianas
incumbiram-se de propalar a lenda da violação da honra conjugal de Maria pelo
legionário Pantera. Com esse golpe decisivo, o perigo messiânico ficava
definitivamente anulado. Não seria possível que o povo aceitasse a qualificação
messiânica para um bastardo.
Defendido pela
humilhação da sua posição social e pelas próprias confusões que teciam a seu
respeito, Jesus crescia e se preparava na obscuridade, para o cumprimento da
sua missão. Quando se sentiu integrado na cultura hebraica, senhor das
escrituras e das tradições da raça, iniciou as suas atividades públicas. Sua
própria família então se revoltou contra o perigoso atrevimento daquele jovem
delirante. Sua mãe e seus irmãos, como relatam os Evangelhos, tentaram fazê-lo
voltar para casa e a oficina rústica do pai. Foi então que seu primo, João, o
Batista, que já antecipara o seu trabalho messiânico, preparou-lhe as veredas
da sua semeadura revolucionária. Na própria Galileia, Jesus encontrou os seus
primeiros discípulos. Homens humildes, mas cheios de fé, de esperança,
dispuseram-se a seguí-Io. Era difícil lutar com aqueles voluntários de uma
causa cujo alcance não podiam compreender. Mas eram eles os companheiros e
servidores com que podia contar (preparados sem o saber que foram anteriormente).
Suas atitudes
claras e enérgicas, seus princípios racionais, desprovidos das superstições
rituais da tradição, assustavam e muitas vezes aturdiam aquelas almas sedentas
de luz e de prodígios messiânicos. Sua popularidade cresceu rapidamente no seio
de um povo que sofria com o jugo romano, a infiltração constante e irreprimível
dos costumes pagãos nas classes dominantes, sob a complacência covarde de um
rabinato embriagado pelos interesses imediatistas. Renasceram então as antigas
lendas a seu respeito. Os que o aceitavam, levados pelas aspirações
messiânicas, propalavam estórias absurdas sobre a sua infância e adolescência
obscuras, com o entusiasmo fanático da ignorância do clima mitológico da época.
Os que a ele se opunham, atrelados ao carro dos interesses romanos e dos seus
aliados judeus, ressuscitavam as lendas do seu nascimento vergonhoso e das suas
relações secretas com Satanás e com ordens ocultistas mágicas, como a dos
Essênios (comunidade onde jesus cresceu), geralmente temidas pelas atrocidades
que diziam praticar em seus redutos indevassáveis.
A figura humana
de Jesus de Nazaré, o jovem reformador do Judaísmo, que pregava o amor e a
fraternidade entre os homens, ia rapidamente se transfigurando num mito
contraditório, ora de semblante celeste e atitudes meigas, ora de rosto irado e
chicote em punho. Os discípulos procuravam enquadrá-lo nas profecias bíblicas,
certos da sua condição messiânica. A mentalidade mítica, profundamente diversa
da mentalidade racional que ele encarnava, naquela fase de transição histórica
e cultural, aceitava mais facilmente a profecia como realidade dos próprios
fatos reais.
O sentido de suas
palavras, e até mesmo das expressões alegóricas, de que às vezes se servia,
para se fazer mais compreensível, eram entendidas de maneiras diversas, segundo
a capacidade de compreensão de certos indivíduos ou grupos.
Esse é um
processo de deformação bastante comum nos tempos de ignorância e que hoje se
repete nos meios e regiões ainda não atingidos pelo progresso, ou nos meios
mais cultos de acordo com interesses pessoais. Os fenômenos de fanatismo
religioso e misticismo popular, ainda em nossos dias, revelam a mecânica
emocional dessas estranhas e não raro bárbaras metamorfoses da interpretação
popular de ensinos racionais e de fatos comuns transformados em acontecimentos
misteriosos. Por exemplo: quando Jesus se comparava lucidamente ao cordeiro dos
sacrifícios rituais no Templo, pois sabia que pagaria com sangue a sua audácia,
os ouvintes entendiam que ele afirmava o poder mágico e redentor do seu sangue.
Quando o Batista aludia ao símbolo de pureza da pomba branca, que descia sobre
os que se batizavam, os ouvintes extasiados tinham a visão mental da pomba
pairando sobre a cabeça do Messias. Mais tarde, na elaboração tardia dos textos
evangélicos, em tempos e lugares diferentes, com os dados fornecidos pelas
logias (anotações de apóstolos e discípulos) ou mesmo de informações orais
deturpadas pelo tempo, transfiguradas pelo sentimento de veneração que crescera
através dos anos, os elementos míticos se infiltravam no relato, amoldando a
realidade distante às condições mitológicas da época.
Assim se forjou,
naturalmente, no processo sociocultural submetido às condições da evolução
histórica, a Nova Mitologia do Cristianismo, em que o próprio mito bíblico do
Messias judeu foi coberto pela máscara grega do mito de Cristo. Os discípulos
gregos de Jesus, por força da própria predominância da cultura grega sobre a
hebraica, deram a Jesus um nome grego que ele jamais tivera, e que passaria a
designar no futuro a sua doutrina. A redação dos Evangelhos em grego
sancionaria esse processo, que se firmaria definitivamente na elaboração
posterior da teologia cristã. A assimilação das doutrinas de Platão, por Santo
Agostinho, e de Aristóteles por São Tomás de Aquino, dariam a última demão no
edifício grego do Cristianismo.
O Evangelho de
João, último a ser escrito, adotando de início o mito grego do Verbo, herdado
da cultura egípcia, é uma das provas mais flagrantes dessa helenização do Cristianismo.
Os estudos e as pesquisas de tipo universitário, independentes da Igreja, desde
Renan a Guignebert, paralelamente com as pesquisas e estudos espíritas,
promoveram em nosso tempo, a partir de meados do Século 19, a revisão universal
do Cristianismo, tentada muitos séculos antes pelos Cátaros e exterminada pela
igreja.
Renan e Kardec
iniciaram essa revisão na mesma época, na segunda metade do século passado,
tendo Kardec uma precedência de dez anos e pouco sobre Renan no trato do
assunto. Em "Obras Póstumas", de Kardec, os espíritos avisam este que
o livro de Renan o ajudará na difícil tarefa de restabelecer a verdade sobre o
Cristianismo.
II - A MITOLOGIA CRISTÃ
O mito é um
arquétipo. Não é uma ilusão, uma mentira, mas uma realidade interna da alma,
que se projeta na realidade externa. Nasce das experiências passadas do
espírito e se encarna nas experiências presentes. Sua lei não é a metamorfose,
como quer Untesteiner, mas a fusão. O mito bíblico: "O Espírito de_ Deus
flutuava sobre as águas" oferece-nos uma visão dialética do processo
mítico, segundo a teoria platônica da reminiscência.
A ideia inata de
Deus, no homem, é a do Ser Perfeito de Descartes, que não vem de nenhuma
experiência concreta, mas de uma intuição necessariamente anímica. A alma
intui, pela necessidade de sua própria transcendência, a existência do Ser
Perfeito (por isso mesmo absoluto) e ao encarnar-se na imperfeição humana
procura também encarnar essa ideia na realidade objetiva.
Essa é a lei de
adoração, revelada por Kardec. A existência interna é projetada no exterior e
encarnada, pela imaginação, no objeto pregnante
(Que causa
impressão forte) da visão gestáltica (Teoria que considera os fenômenos psicológicos e biológicos conjuntos que formam unidades autônomas organizadas, com solidariedade interna e leis próprias)
do mundo. Estabelece-se a fusão da ideia com um objeto real: uma rocha, uma
montanha, uma árvore ou bosque, um animal que passa à condição de sagrado, um
homem poderoso.
Numa fase
avançada, a ideia do espírito (percepção da essência humana) substitui os
objetos concretos. Deus então aparece como a projeção do próprio homem na
transcendência, flutuando sobre as águas, elemento gerador de todas as coisas e
seres. A lei do mito se torna clara nesse processo. A ideia íntima e pura de
Deus se funde com o objeto exterior e impuro, imperfeito; que nessa fusão se
torna puro e perfeito. Toda a mecânica do Sagrado se revela nessa metamorfose,
que é consequência e não causa do processo mitológico. A imaginação criou uma
realidade nova no plano do concreto, pela projeção da alma nas coisas. O estudo
do animismo nos povos primitivos e nas crianças mostra-nos como o poder criador
do homem povoou o mundo de mitos que lhe permitiram compreender e estruturar a
realidade exterior para poder dominá-la. Na reciprocidade dialética, esses
mitos acabaram dominando o homem, protegendo, dando-lhe segurança e controlando
o seu comportamento na relação com os objetos e os seres do mundo.
O Materialismo
exclusivista, como o de Feurbach e de Marx e Engels, ficando apenas no plano
fenomênico, só podia interpretar esse processo como simples ideiação, pela qual
o homem criava Deus, projetando-se a si mesmo na figuração de Deus.
Herbert Spencer
foi o primeiro, como acentuou Ernesto Bozzano, a perceber e provar que os mitos
nascem da realidade objetiva, mas não percebeu que tomava os efeitos pela
causa. Por trás dos fatos reais está a mola oculta das causas espirituais. O
homem não criou os deuses ou Deus, mas descobriu em si mesmo o arquétipo do Ser
Perfeito e projetou-o na realidade objetiva por necessidade anímica, lógica e
ontológica. Os mitos se revelam, assim, como uma supra realidade, mais real do
que o real, porque a lei de fusão permite ao homem dar ao real objetivo a
quarta-dimensão da realidade subjetiva. Para o homem dos tempos mitológicos, o
mito aparece como realidade e o real como simples matéria que serve para
moldar-se a realidade do mundo.
Não é de admirar que os homens daqueles tempos dessem
preferência aos mitos, desprezando o histórico. Para
os cristãos da era apostólica, Jesus tinha nascido realmente em Belém de Judá e
não em Nazaré, pois a profecia bíblica assim prescrevia e assim teria de ser.
Toda a mitologia dos Evangelhos está impregnada dessa magia do mito e por isso
nos enternece com a sua beleza e o seu encanto. Kardec foi o primeiro a ter a
coragem de submeter o Evangelho (no sentido global do termo) às divisões necessárias,
para separar do texto, dividido em cinco partes, o ensino moral de Jesus. Esse
ensino é que realmente nos oferece a concepção cristã do mundo e do homem. E
nele Jesus não aparece como um taumaturgo místico ou um semideus, a pessoa de
Deus no mundo ou a encarnação do Verbo, mas como o ser na existência, o homem
no mundo (não do mundo) da expressão kardeciana, o homem que traz consigo a
mais perfeita ideia de Deus e por isso se encarnou, para transferi-la aos
homens como homem. O mito do Cristo e do Verbo surgem como conotações naturais
das mitologias antigas, particularmente a egípcia, a grega e a romana, a
judaica e a cristã, para a elaboração lenta progressiva da Teologia Cristã,
que, devia produzir, como produziu, o espantoso sincretismo religioso que deu
forma ritualística e litúrgica à Igreja Cristã, para que ela pudesse, em nome
dos mitos assimilados, domar o potro selvagem do mundo instalar na Terra o
Reino de Deus. O mito da Trindade, provindo das grandes religiões da Antiguidade
— como vemos na trindade egípcia formada por Osíris, Isis e Hórus — deu-lhe a
possibilidade de incluir o Cristo na Mitologia Cristã como a segunda pessoa de
Deus, de maneira que a Igreja, fundada pelo Cristo segundo a interpretação
católica-romana, podia se apresentar como instituição divina do próprio Deus em
pessoa. O milênio Medieval provou a eficácia desse sofisma. As ordenações da
Igreja revestiram-se de conteúdo divino e os próprios anjos passaram a condição
inferior à dos homens, pois não podiam perdoar pecados, como os sacerdotes
católicos. Daí a rebelião dos anjos contra Deus, dando lugar à inclusão do mito
do Diabo no Cristianismo. A partir do quarto século da Era Cristã, a Igreja
absorveu a estrutura formal da Igreja Judaica, as aras e os sacramentos de
várias religiões pagãs, suas vestes sacerdotais e paramentos para celebrações
rituais, instrumentos sagrados do culto e converteu as imagens dos deuses
gregos e romanos em imagens dos santos e anjos, dando dimensões universais ao
culto local e humilde das assembleias cristãs primitivas. O templo de
Jerusalém, com sua guarda armada e seu mercado de elementos rituais, animais
para os sacrifícios, ervas para a queima em honra a Javé, bancas de cambistas e
assim por diante, teve sua réplica nas instalações suntuosas do Vaticano (um
Estado Teológico) e a cadeira de Moisés foi substituída pela Cátedra de São
Pedro, o rude pescador do lago de Genesaré. O mercado mundial de indulgências
chegou a tal expansão que levou a consciência de Lutero a rebelar-se e promover
o movimento da Reforma, com o objetivo declarado de volta a Cristo. O Cristianismo
do Cristo desapareceu na política da Igreja, só restou o Cristianismo dos seus
vigários, como diria em Paris o Padre Alta, no século passado, nos famosos
sermões que lhe custaram a excomunhão. São Francisco de Assis, um santo que
dispensava a canonização, deu a sua vida para forçar a Igreja retornar a
Cristo. E todas as grandes figuras da Igreja, homens e mulheres, que tiveram
olhos para ver a desfiguração do Cristianismo foram alijadas do seio da Santa
Madre. Apesar de tudo isso, ou talvez por tudo isso, o Cristianismo conseguiu,
como o fermento da parábola, infiltrar-se no mundo e levedar, embora apenas em
parte, a massa do mundo. Os princípios do ensino moral de Jesus, mesmo apresentados
em invólucros adulterados ou na interpretação dogmática dos vigários — a
leitura dos textos evangélicos e bíblicos era privativo dos clérigos e só eles
podiam dizer o que os textos ensinavam — e apesar disso esses textos produziram
transformações fundamentais no plano sociocultural. Mas nem por isso o
Cristianismo conseguiu vencer a asfixia dos poderes combinados do mundo, o
religioso e o político, ambos assentados na sólida base da ignorância
generalizada e acionados pela força convincente do dinheiro. O Templo de
Jerusalém e o Capitólio se fundiram na imagem única do Vaticano, que
restabelecia, no mundo dominado pelos bárbaros, atemorizado ante o poder das
hordas que abateram Roma e Bizâncio, as estruturas políticas e sociais do
Império Romano. Apesar de tudo isso, e talvez por tudo isso, como dissemos
acima, o Cristianismo triunfou, pois, a realidade do mundo não é uma construção
gratuita dos poderes divinos, mas uma construção dolorosa e lenta em que as
mãos dos homens devem sangrar no penoso desenvolvimento do processo histórico.
As transformações possíveis foram feitas, na medida em que os homens do poder e
as massas ignorantes e supersticiosas adquiriam experiências novas e novas
perspectivas culturais. Por isso, o quadro que esquematizamos acima não
representa um ataque à Igreja ou uma crítica ditada por sectarismo ou anticlericalismo
sistemático. A realidade histórica foi essa — e não podia ser outra — dadas as
condições culturais da época. Os homens são o que são, e não o que deviam ser,
em cada fase da evolução terrena, e gozam sempre da jurisdição de si mesmos,
para que possam, no uso de seu livre-arbítrio, desenvolver a consciência de
suas responsabilidades intransferíveis. Os fatos não se desenrolam ao acaso,
mas na sequência orgânica do crescimento, como queria Spencer. Os limites do
poder humano não são arbitrários, nem sujeitos a intervenções abruptas do poder
divino, mas condicionados pelas leis da evolução social, moral e cultural. O
próprio Cristo previra isso e anunciara, como se vê de maneira mais clara no
Evangelho de João, a deformação dos seus ensinos e a necessidade do seu
restabelecimento do futuro. A promessa do Espírito da Verdade, formulada nos
textos evangélicos, na linguagem mística da época, nem por isso deixa de ser
incisiva e racional. O Espírito da Verdade não é uma entidade definida, uma
criatura humana ou espiritual, mas simplesmente a essência do ensino de Jesus,
que se restabeleceria através dos homens que mais rapidamente se aproximassem
da sua verdadeira compreensão. "Eu vos enviarei o Espírito da Verdade —
disse o Mestre — que restabelecerá todas as coisas, ficará eternamente convosco
e vos conduzirá a toda a Verdade". Nessa breve síntese da promessa
registrada nos textos vemos nitidamente que a visão do Mestre abrangia todo o
panorama das transformações históricas de um longo futuro. Reconhecendo, porém,
as condições do processo histórico, não podemos negar a responsabilidade dos
homens que nele atuaram desta ou daquela forma, dirigidos não só pelas leis do processo,
mas também pelas leis de suas próprias consciências. Disto resulta que a
responsabilidade individual, acumulada na estrutura da Igreja — construída,
mantida e dirigida por homens — determina a responsabilidade institucional da
Igreja na deformação quase total do Cristianismo. Isso reconheceu o Papa João
XXIII ao assumir a Cátedra de São Pedro, pedindo desculpas ao mundo pelos erros
cometidos pela Instituição ao longo de quase dois mil anos. A figura comovente
desse Papa
Camponês, de boa
cepa italiana, que no crepúsculo da existência conseguiu lançar o movimento
ecumênico e desencadear as reformas necessárias à adaptação da Igreja aos novos
tempos, simboliza a tomada de consciência do poder eclesiástico pelas
responsabilidades pesadíssimas que assumiu perante o mundo. A Mitologia Cristã sofreu
o impacto dessas mudanças, das quais resultou até mesmo uma espécie de expurgo
no agiológico (Tratado de santos) católico,
segundo o modelo dos expurgos políticos da atualidade. O que expusemos até aqui
parece suficiente para mostrar que ainda não atingimos os lindes da Civilização
Cristã, de que tanto nos blasonamos. O Cristianismo oficial das Igrejas
Cristãs, construído e desenvolvido com elementos estranhos à essência do
Cristianismo, muitos deles francamente contraditórios aos princípios evangélicos,
não é mais do que uma caricatura do Cristianismo pregado por Jesus de Nazaré. A
mais chocante contradição ressalta da transformação da figura humana de Jesus
num mito Greco-hebraico, com todo o forte colorido da tragédia grega e da
crueldade romana, sem faltar as pinceladas do sadismo egípcio (o mito de Osíris)
e do masoquismo judeu no quadro da Paixão. Com essa mistura de cores, o painel
cristão que herdamos em nossa civilização só teria de resultar no masoquismo
eclesiástico dos cilícios, das mortificações, das deformações da personalidade
humana, da supressão dos direitos e deveres genéticos dos clérigos e da
condenação do sexo, deformado em sua significação divina de fonte renovadora da
vida, abastardado pelo conceito de impureza e pecado. A lei bíblica do
"crescei e multiplicai-vos" foi revogada pela imposição do celibato
forçado e antinatural, que acabou na licenciosidade pagã praticada intramuros,
no renascimento inevitável da hipocrisia farisaica veementemente condenada por
Jesus. O complexo místico-sexual foi o produto principal dessa deformação da
condição humana, que gerou por toda parte os dramas e as tragédias da
abstinência forçada, naturalmente revertida em licenciosidade tolerada, como se
pode ver com assombro nas investigações históricas independentes sobre o
problema sexual no meio eclesiástico. Essa batalha inglória começou nos tempos
apostólicos, como se pode ver pelas epístolas de Paulo, particularmente as
dirigidas aos coríntios, nas quais o fervor místico do Apóstolo dos Gentios
deixou gravada a sua indignação contra a libertinagem na Igreja de Corinto. Era
natural que a passagem forçada da libertinagem pagã para o excessivo
puritanismo cristão (já nesse tempo contrário à tolerância de Jesus,
compreensiva e humana, para com as mulheres prevaricadoras. Paulo, de
temperamento fanático e formação judaica, não obstante revelar a mais ampla
compreensão dos ensinos de Jesus, não conseguiu livrar-se do horror judaico ao
sexo. A Igreja teve tempo de sobra, a partir desse engano de Paulo, para reexaminar
a questão e reformulá-la em termos equilibrados. Mas, ao invés disso,
referendou o dogma da castidade para o Ocidente e permitiu, contraditoriamente,
o casamento dos clérigos no Oriente. Dois pesos e duas medidas numa questão
vital para a Igreja e o mundo. A proibição autoritária e absoluta provoca
sempre a insubordinação, a lei absurda traz em si mesma os germes da infração.
O complexo místico-sexual promovido pela Igreja em escala mundial, no plano
melindroso das leis biológicas, desencadeou um dos mais obscuros processos de
manifestações psicopatológicas, em que o êxtase místico se mistura com o êxtase
sensorial, produzindo os mais graves distúrbios com que até hoje se defronta a
Medicina, impotente ante a voragem das múltiplas fascinações dos instintos
reprimidos. O Cristianismo é hoje acusado de responsável pelo falso puritanismo
que dominou as nações cristãs, como no caso da era vitoriana na Inglaterra, e
da consequente explosão da libertinagem moderna, que tem suas raízes amargas na
revolta satânica dos libertinos medievais. A grandeza do Cristianismo naufragou
no mar de lama da falsa moral puritana. A moral endógena do Cristo, que brota
das fontes naturais da pureza espiritual, transfigurou-se às avessas na moral
exógena das exigências institucionais da Igreja, falsamente adotadas pela moral
social, numa tentativa hipócrita de nivelamento dos mais diversos graus da
evolução moral dos homens.
Essa evolução
corresponde A. espiritualização, que é individual, dependendo das condições
pessoais de cada um, das tendências temperamentais que se harmonizam com as
heranças genéticas. As elevadas aspirações da alma se chocam diferentemente, em
cada indivíduo, com as exigências biológicas da espécie. Uns trazem a tendência
mística predominante, outros o impulso vital incoercível. Entre esses extremos
há numerosas situações intermediárias. O nivelamento, contrário às
especificações tipológicas naturais, é simplesmente impossível. Querer inverter
essa estrutura psico-biológica através de votos, juramentos, rituais e outras
medidas exteriores é provocar conflitos imprevisíveis, que pode levar o
indivíduo a desequilíbrios profundos. Jesus jamais condenou alguém a
abstinências forçadas ou a cilícios masoquistas. De onde tirou o Cristianismo
essas medidas irracionais? Da cabeça nebulosa dos teólogos, esses doutores do
absurdo, imaginários pesquisadores de Deus que chegam agora à conclusão,
através da moderna Teologia Radical da Morte de Deus e outras correntes
teológicas paralelas, de que Deus morreu e foi enterrado, como queria o louco
de Nietsche. A Teologia Natural, que nasce da consciência humana em busca de
Deus, é uma atividade filosófica necessária, que Jesus procurou despertar nos
homens. Mas a chamada Teologia Positiva, que fabrica doutores providos de sabedoria
infusa, não passa de quixotada pretensiosa nascida do fígado de Prometeu, devorados
pelos abutres do Cáucaso do Céu não pode ser roubado por ninguém, porque não é
fogo, mas luz difusa que ninguém consegue colher nas mãos em concha ou nas
garras ansiosas de poder e prestígio. A Teologia Cristã nasceu em Éfeso, onde o
Apóstolo João bebeu, já na velhice, alguns elementos da Filosofia judaica de
Filon de Alexandria. Para desenvolvê-la, Agostinho e Aquino tiveram de
abeberar-se em Platão e Aristóteles. Os neoplatônicos, a partir de Plotino,
deram também sua contribuição aos teólogos. Desse sincretismo filosófico, na
mesma pauta do sincretismo mítico e religioso a que já aludimos, saiu a
Doutrina da Igreja. Onde ficou o Cristo? Numa posição intermediária do mito
irracional da Trindade, dando origem a toda a Mitologia Cristã. Transformado em
parte intrínseca de Deus, Jesus de Nazaré perdeu a sua personalidade própria,
ensanduichado entre Deus e o Espírito Santo. O Deus uno de Jesus, o Pai, cuja
concepção simples e clara abalou o mundo antigo e revelou a fraternidade
universal dos povos e das raças, fragmentou-se em três pessoas, o que vale
dizer em três deuses, iniciando a hierarquia da Igreja, que se prolongaria
indefinidamente no tempo. Irracional em sua concepção sincrética e em sua
estrutura, deformadora em sua visão do Cristo como homem e mito, a Trindade
erigiu-se no mais profundo mistério da Teologia Cristã. Não se pode explicá-la.
O Cristo revelador tornou-se agnóstico.
III - A HERANÇA
MÁGICA
A Trindade, como
já vimos, é uma constante nas religiões antigas. Sua relação com a magia dos
números é evidente. Pitágoras considerava o número 1 como o princípio de todas
as coisas. Imóvel no Inefável, o número 1 era preexistente a tudo quanto iria
existir. Súbito, sem que se possa saber como nem porque, o número 1 estremeceu.
Nesse movimento misterioso projetou a sua imagem de um lado, dando origem ao
número 2, e logo a seguir de outro lado formando o número 3. Continuando o
estremecimento, do número 3 saíram os demais, completando a década. O número 10
completou a magia matemática da criação do Universo com todas as coisas e todos
os seres. Restaria saber como surgira no Inefável o hierático número 1, fonte
de toda a realidade, mas isso é um mistério. No Cristianismo o número 3 tomou a
forma antropológica de três pessoas distintas num só Deus verdadeiro. O dogma
foi aprovado no Concílio de Nicéia, no ano 325 depois de Cristo, contra a
doutrina de Ario, que estabelecia a subordinação das pessoas (o filho subordinado
ao pai) sem considerar a terceira pessoa. Como se vê, o prestígio do número 3
prevaleceu. São Tomás definiu a relação das três pessoas distintas em forma de
relações humanas, e identificou-as numa substância única. A trindade matemática
de Pitágoras, à maneira das trindades egípcia e hinduísta, convertia-se num
mito antropológico. Nos últimos tempos da Escolástica, Ockam considerou esse
dogma como inacessível a qualquer forma de entendimento. Essas pesadas cargas
mágicas, expressas em fórmulas que são verdadeiros jogos de palavras,
contaminariam toda a liturgia cristã, na adaptação progressiva de quase todos
os ritos das civilizações agrárias e pastoris. 0 desenvolvimentos da razão na
Idade Média e o consequente aprimoramento da linguagem favoreciam a criação de
novas e mais complexas formas para os ritos antigos e os complementava com
explicações sibilinas, dando ao povo a impressão de ordenações divinas
recebidas pelos teólogos e os servos de Deus, padres, frades e freiras, na
penumbra colorida dos vitrais das naves sagradas ou no silêncio místico dos
mosteiros e das celas dos conventos. Praticamente, podemos dizer que os
humildes servos do Senhor se inflaram de vaidade divina, perdendo-se nas teias
de palavras e raciocínios sofisticados (na verdade sofísticos) sobre questões
que estavam muito além das suas possibilidades de conhecimento. A magia das
palavras socorria a escassez do saber. O mito do Verbo se impunha, e o próprio
Cristo foi transformado em mito que se encarnara para redimir a humanidade pecadora
com o seu sangue derramado no suplício infamante da cruz. A própria cruz os
santificava, como símbolo de redenção, e o martírio do Justo se perpetuava na
idolatria da crucificação. E ai daqueles que se opusessem à fé em Cristo
Crucificado, pois cometeriam o crime sem perdão de querer penetrar os mistérios
sagrados. O problema do sagrado e do profano, que para Jesus não existia, pois
ele violava a santidade do sábado e não teve medo de se hospedar na casa do
publicano Zaqueu, tornou-se uma das questões mais graves do Cristianismo. Ao
invés de se buscar a santidade da alma, buscava-se a santidade das coisas:
crucifixos, medalhas, escapulários, bentinhos, rosários, fitas, velas, véus,
paramentos, cálices de ouro e assim por diante. A simonia (tráfico de coisas sagradas compra e venda) sustentava
e até hoje sustenta os servos de Deus, para que pudessem louvá-lo dia e noite
em suas orações e cânticos, ao som dos órgãos sagrados. O culto exterior
objetivava a fé, que devia ser, como Jesus ensinara, puramente subjetiva. E
como parte importante do culto exterior e da economia da Igreja
multiplicavam-se os sacramentos: o batismo de água e sal, a crisma para
confirmar o batismo, o matrimônio religioso, as bênçãos que servem para todas
as cerimônias religiosas (quanto mais suntuosas, mais eficazes) com a
impregnação invariável da magia em todas elas. Do nascimento à morte o cristão
está sujeito aos poderes mágicos da Igreja. Os óleos da extrema-unção garantem
magicamente a passagem do morto pelas portas do Céu. A água purifica, o óleo
santifica. Pela magia da água livra-se a criança inocente da mancha do pecado
original. Deus se manifesta na hóstia consagrada pelas mãos mortais de um
sacerdote mágico, e não pode desobedecer à evocação sagrada do padre, que nesse
momento é maior do que Deus. Nunca Jesus se atreveu a tanto. Falava a Deus como
o filho ao pai, segundo o esquema de relações de Ario, o renegado. O perdão dos
pecados não era dado por ele, mas pelo Pai. Quando dizia a um sofredor curado
de alguma moléstia: "Perdoados são os teus pecados", referia-as ao
final de uma prova existencial que se esgotara. A inversão de valores e de
posições realizada pelos teólogos só pode justificar-se no processo histórico
pela incompreensão absoluta do sentido espiritual dos ensinos de Jesus. O que
distingue a religião da magia é precisamente a posição do homem em relação aos
poderes divinos. O religioso suplica humildemente a proteção divina, o mágico
entrega-se a práticas de evocação e imantação para submeter a divindade aos
seus caprichos. O religioso adora a Deus, o mágico o utiliza como fonte de
poder ao seu alcance. Todo o ensino do Cristo, por palavras e exemplos, revela
a sua permanente reverência a Deus.
Mas os cristãos
se atrevem a fazer Deus baixar das alturas infinitas por meio de palavras
mágicas e objetos materiais do culto. O Cristianismo continua a ser, na
grandiosidade de suas catedrais, a humílima seita religiosa dos galileus, que
as heranças judaicas e pagãs asfixiaram sob o esplendor fictício e perecível de
seus aparatos materiais. A própria ressurreição do Cristo não foi ainda
compreendida. Acredita-se que ele ressuscitou na carne, apesar da advertência
de Paulo em Coríntios I, segundo a qual enterra-se o corpo material e
ressuscita o espiritual, pois o corpo espiritual é o corpo da ressurreição.
Como se isso não bastasse, inventa-se a ascensão de Maria ao Céu em seu corpo
carnal. O renascimento nas vidas sucessivas, a que Jesus se referiu no caso de
João Batista como reencarnação de Elias, no episódio do cego de nascença que
não pagava pecados dos pais e assim por diante, é condenado pelas igrejas
cristãs como superstição pagã. A mitologia católica e o formalismo protestante
rejeitaram igualmente os pontos principais da verdadeira doutrina cristã
exposta nos Evangelhos. São eles a única fonte real dos ensinos de Jesus. Os
pesquisadores universitários, livres de tendências sectárias, chegaram à mesma
conclusão de Renan: os Evangelhos têm suas raízes no tempo de Jesus, nasceram
do meio de seus familiares e discípulos, da sua intimidade. Foram redigidos com
dados provindos da fase de suas pregações. Renan cita uma comovente anotação de
Pedro que mostra o carinho e a fé com que os apóstolos guardavam de memória os
ensinos do Mestre. Pedro declara que nunca dormia sem antes repetir os ensinos
para que eles não se apagassem da sua memória. A validade dessa documentação é
inegável. Como puderam os teólogos reformular o Cristianismo claro e preciso
que ali se encontra, rejeitando princípios básicos e acrescentando enxertos
espúrios? Onde encontraram autorização válida para introduzir no Cristianismo a
idolatria, as várias formas míticas, a sistemática clerical pagã, os
sacramentos de religiões mágicas primitivas, os rituais suntuosos, as vestes
sacerdotais que nem Jesus nem os apóstolos adotavam, as indulgências e o perdão
dos pecados pela concessão de poderes especiais aos clérigos, a substituição da
Cadeira de Moisés pela Cátedra de Pedro, o dogma da salvação exclusiva pela fé,
com desprezo às obras e assim por diante? O problema da fé é colocado, nos ensinos
de Jesus, em termos explícitos. A fé cristã é direta, dirigida a Deus, que é o
Pai, e não aos dogmas desta ou daquela igreja. A mulher com fluxo de sangue não
precisou inscrever-se em qualquer instituição humana para que a sua fé a
curasse. Bastou-lhe tocar a fímbria das vestes do Mestre, sem sequer lhe pedir
licença, para que fosse curada. No tocante às obras, Paulo deixou claro que a
fé vale pelas obras. Mas os teólogos confundiram as obras cristãs, que eram a
prática da caridade, com as obras da lei do judaísmo, referentes aos
compromissos dos fiéis com a Sinagoga e o Templo de Jerusalém. Nunca se viu um
texto tão pequeno e claro ser tão mal compreendido pelos que o adotaram como
válido, e durante tanto tempo, através de dois milênios. No tocante à caridade,
Jesus deixou claro nos seus ensinos que ela não se reduzia à esmola, como se vê
no episódio do óvulo da viúva. E Paulo formulou a mais perfeita e precisa
definição da caridade como prática do amor ao próximo, num texto insuperável.
As passagens míticas e históricas dos Evangelhos, caracteristicamente fabulosas
e incorretas, refletindo o clima mental dos tempos mitológicos, serviram para a
criação de uma mística avessa ao ensino racional de Jesus. Ninguém se lembrou
de separar o joio do trigo, de corrigir os erros de datas e as descrições de
episódios da vida de Jesus, e nem mesmo de corrigir as parábolas convertidas em
realidades impossíveis, como no caso da figueira seca. É evidente que não queríamos
a correção dos textos, que não deviam ser tocados por ninguém, mas a correção
no emprego dos textos como fontes legítimas para a elaboração da Doutrina
Cristã. Pelo contrário, tudo o que servia para a institucionalização igrejeira
do Cristianismo foi aceito com entusiasmo, como se nenhuma dúvida pairasse
sobre os dados errados. Além disso, as adulterações dos textos por conveniência
sectária continuam a ser feitas ainda hoje, em edições da Bíblia e dos
Evangelhos, sob o pretexto de atualização da linguagem. A nenhuma obra clássica
de literatura se pode aplicar essa forma de adulteração, mas aos textos
fundamentais do Cristianismo tudo se aplica, desde que as modificações
profanadoras correspondam a interesses sectários. A luta de Paulo contra os
apóstolos judaizantes, na preservação dos ensinos renovadores de Jesus, morreu
na era apostólica. Hoje, as Igrejas Cristãs consideram a Bíblia como a palavra
de Deus, mas não temem nem tremem ao autorizar modificações dessa palavra
sagrada a critério puramente humano, desde que interesse aos grupos sectários.
O apego extemporâneo à Bíblia, e a própria inclusão arbitrária dos textos
Evangélicos na Bíblia, quando o próprio Paulo declarou que ela fora suplantada
pelo Novo Testamento, devendo passar à condição de documento histórico, provam
que os judaizantes continuam em ação sem qualquer impedimento. A veneração dos
fiéis pela Palavra de Deus é ambivalente. Eles a preservam na medida em que
possa servir aos interesses de suas igrejas, e a violam e deturpam quando isso
for conveniente à sustentação de suas opiniões grupais. A Palavra de Deus é
absoluta, mas condicionada à palavra dos homens. Dizia-nos um pastor que na sua
igreja a Bíblia era respeitada e cumprida de capa a capa.
Citamos-lhe
algumas ordenações absurdas e ele respondeu tranquilamente: "Na medida do
possível". Reconhecia — e isso num programa de televisão, que usava de
duas medidas, uma no uso externo e outra no uso interno.
O
clima espiritual da magia impregnou o Cristianismo Medieval de tal maneira que
a chamada Feitiçaria Cristã mereceu estudos especiais de sociólogos,
antropólogos, psicólogos e pesquisadores espíritas. O Cel. Albert De Rochas, do
Exército francês, diretor do Instituto Politécnico de Paris, realizou pesquisas
sobre a magia em relação com o hipnotismo, nos fins do século passado, e publicou
seus resultados num livro sobre a Grécia ou Magia Negra, relatando também as
experiências de William Barret, Faradey, Maxwel, Ochorovicz e outros eminentes
cientistas da época. Pesquisando a infiltração da magia na Igreja, a tradição
mágica, diz ele, vinda das mais antigas civilizações, conservou-se entre os
cristãos primitivos e penetrou fundamente no meio eclesiástico. Descreve
numerosos casos de feitiçaria constantes dos arquivos do Vaticano, em que
padres, bispos e cardeais entregaram-se a essa prática para afetar adversários
religiosos ou políticos. Atingir príncipes, reis, rainhas e figuras importantes
da nobreza. Certos clérigos usaram, segundo relatam os processos arquivados, a
chamada magia simpática ou simpatética (complacente, dar o devido valor), o antiquíssimo processo de moldar
imagens de cera, das pessoas visadas, e agir sobre elas à distância, ferindo as
imagens. Deu-se mesmo a mistura do bem e do mal, quando sacerdotes mágicos
aplicavam sacramentos aos bonecos de cera "chamando o Demônio em seu
auxílio pela profanação das espécies sagradas", ou seja, dos materiais
empregados nos sacramentos. Já Tertuliano se referira, no Cristianismo
primitivo, às práticas mágicas entre os cristãos. Os mesmos motivos que levaram
os judeus a adorar o bezerro de ouro enquanto Moisés recebia, no alto do Sinai,
as tábuas da Lei, mantinham ainda os cristãos apegados aos processos mágicos.
Mas que isso se passasse no povo, era natural. Porque se dava o mesmo entre os
clérigos? A pesada carga mágica dos sacramentos adotados das religiões pagãs,
entre os quais o da transubstanciação da hóstia, o da purificação pelo batismo,
o da bênção de imagens e medalhas levava os clérigos a acreditar na eficácia
dos ritos. O homo faber é ainda o tipo mais comum da espécie humana. O homo
sapiens chega a ser considerado pela maioria como ave estranha na paisagem. O
ritual é um fazer, um ato prático que dispensa o conhecer. E como Jesus fazia,
não pelos meios mágicos, mas pelo poder do espírito, pela influência psíquica e
mental, e como esse fazer do Mestre impressionava mais do que o seu ensino, a
Igreja apegou-se à herança mágica e desenvolveu-a no seu culto, revestida
sempre de tonalidades culturais. Essa é, talvez, a razão principal do
desvirtuamento completo do Cristianismo formalista e oficial, hoje felizmente
abalado por salutares crises, ante as exigências de renovação dos novos tempos.
As revisões do Cristianismo impõem-se dentro das próprias igrejas cristãs que o
deformaram. As transformações que subitamente ocorreram nelas, após a Segunda
Guerra Mundial, surpreendendo os crentes que dormiam no seio de Abraão dos
condicionamentos tradicionais, decorrem do fracasso de suas doutrinas híbridas
e confusas ante a derrocada moral da chamada Civilização Cristã, devolvida à
barbárie pelos títeres ridículos e trágicos do nazi-fascismo. A incapacidade
das igrejas falsificadas para enfrentar o avanço das ideias políticas
deformadoras do homem e deter a fúria assassina no mundo teria provado a
falência total do Cristianismo, se elas realmente representassem a doutrina do
Cristo. Seus dirigentes formalmente santificados e seus teólogos embriagados
pela vaidade de um saber ilusório tiveram de recorrer a medidas de emergência,
entre as quais a reforma teológica que gerou a monstruosidade lógica e
ontológica do Cristianismo ateu. Essa proposição aloucada representa um duplo
golpe contra o pensamento e contra o ser humano, violentando o desenvolvimento
filosófico e aviltando o ser. Ao invés de reconhecerem a falência de suas
interpretações do ensino cristão, de suas concepções antiquadas e incongruentes
de Deus, apelaram para a loucura de Nietsche. Ë evidente que chegou a hora em
que a volta a Cristo, como queria Lutero, terá de ser empreendida com rapidez e
coragem. Ou voltamos à simplicidade lógica e à pureza espiritual do
Cristianismo do Cristo ou teremos de voltar selva para recomeçar a experiência
falida de dois mil anos de sofismas, vaidade e ganância desenfreada, de simonia
desenfreada no comercialismo dos valores espirituais. A fascinação da magia
aniquilou as esperanças dos crentes e inutilizou o sacrifício dos mártires. O
ensino do Cristo, transformado em artigo de consumo falsificado, decepcionou os
frequentadores ignorantes, mas espertos do mercado religioso. Essa é a
realidade indisfarçável desta hora do mundo, em que os cogumelos atômicos, de
potencialidade aumentada pela física nuclear, esperam os rebanhos sem pastores
na Porta do Aprisco do Templo de Jerusalém, para o último e definitivo
sacrifício em massa e sem proveito. Os cristãos que hoje rejeitam o Espírito da
Verdade, como rejeitaram os judeus o seu Messias, candidatam-se à diáspora dos
mundos inferiores. Não se trata de uma profecia apocalíptica, mas de uma
previsão racional, evidente por si mesma no panorama da atualidade. Se não
abandonarmos a magia da selva, para reformular nossos conceitos e nossas
posições cristãs, na base exclusiva do ensino espiritual de Jesus de Nazaré,
teremos de fazer o penoso caminho de volta ao marco zero da selva, para a
reeducação em novo ciclo de vidas sucessivas. A magia é o marco do começo, do
início da Civilização. Nosso apego a ela mostra que não estamos aptos a passar
nos exames finais do curso espiritual. Mais de vinte civilizações passaram pela
terra e se transformaram em poeira e ruinas, como ensina
Toynbee. Dessas
minas, segundo Cassirer, pudemos tirar a essência de todas elas e promover o
Renascimento que deu início à civilização atual. Na Idade Média, ensina
Dilthey, elaboramos a consciência moderna, estruturada com as contribuições da Grécia,
de Roma e do Cristo. Aprendemos o necessário para pisar no portal da Era
Cósmica. Mas não fizemos o necessário para nela entrar. Aproveitemos o tempo
que ainda nos resta para nos libertarmos do egoísmo dos primatas e nos
elevarmos à compreensão de nossa própria consciência. Ela é o tribunal de Deus
instalado em nós mesmos. Não existimos para a violência, mas para o amor. O
ensino moral de Jesus, livre dos acréscimos da nossa vaidade, da sabedoria
infusa dos sábios pretensiosos, é o roteiro único, mas seguro de que ainda
dispomos. Para segui-lo nesta hora extrema. Para segui-lo enquanto é tempo,
revisemos a nossa herança cristã à luz da Verdade.
IV - A REVELAÇÃO
Toda a estrutura
do Cristianismo estatal (vaticânico) se apoia no dogma da Revelação. O mesmo
acontece com o Cristianismo da Reforma e o remanescente das chamadas heresias
dos primeiros tempos. Mesmo as seitas cristãs mais recentes, que os
norte-americanos exportam num fluxo constante, e as Igrejas Católicas
nacionais, rebeladas contra a Santa Madre geralmente aceitam esse dogma. Kardec
aceitou no Espiritismo, dando-lhe uma nova interpretação, puramente racional e
dotada de conotação científica. Assim, devemos tratar da Revelação como um
sustentáculo geral das estruturas cristãs mais diversas. Até mesmo no
Islamismo, o filho árabe e enjeitado do Judaísmo, a Revelação permanece como um
fato básico, atribuído ao Anjo Gabriel, que ditou o Alcorão ao Profeta do Islã.
Nesse caso particular, a Revelação Islâmica torna-se comunicação e ordenação, assemelhando-se
ao caso, também específico, da manifestação de Deus a Moisés no Sinai. Os
estudos religiosos contemporâneos enquadram a Revelação no campo científico dos
fenômenos paranormais. Na Teologia Católica Romana, a Revelação se divide em
dois tempos: a do Antigo Testamento (bíblica) e a do Novo Testamento
(evangélica). A primeira é considerada numa interpretação contraditória, com
uma face de grandeza e profundidade e outra face de miudeza e superficialidade,
em que a manifestação de Deus se esmiúça na área corriqueira dos sonhos ou
oráculos. Nesses dois sentidos, porém, sua natureza é de comunicação direta de
Deus com os seus servos preferidos do povo eleito. É uma Revelação
preferencial, dada por Javé à raça a que ele deve pertencer ou, pelo menos, ter
sido criada pelo seu poder com privilégios específicos e irredutíveis. Deus
absorve em si mesmo o preferencialíssimo dos deuses mitológicos da Grécia de
Roma, e com ele o desprezo, a ira e a indignação contra os povos idólatras. Se
o amor de Deus criou os homens sem distinções preferenciais, a ira de Deus faz
o contrário, e o faz da maneira mais violenta e imprecisa, ordenando os judeus
a dizimarem todos os povos que possam obstar-lhes a conquista a fio de espada
da Terra Prometida. Moisés é o seu filho amado tem o privilégio de falar com
Ele face a face. Javé é irascível e ciumento, ordena matanças arrasadoras e só
respeita a sua própria figura nos seres humanos da sua raça preferida. Apesar
dessa dualidade estranha, a Revelação Bíblica é considerada como um ato de
plena doação. Deus não se limita a falar, a advertir, a ensinar, pois revela-se
na plenitude de si mesmo, na profundidade da sua natureza íntima, liga-se ao
seu povo, "engaja-se", faz-se reconhecer pelo povo eleito na sua
qualidade de Ser Supremo. Essa doação completa de Deus aos homens é
teoricamente universal, mas praticamente se limita ao povo judeu. Os ingênuos
cristãos que, nas várias Igrejas, costumam chamar-se coletivamente de povo de
Deus, estão simplesmente enganados. A Igreja Católica considerou-se a herdeira
absoluta desse privilégio, chegando mesmo a negá-lo aos judeus. Hoje, com a
tentativa do Ecumenismo, há uma aproximação entre as várias igrejas, mas a
distinção permanece rígida. O processo ecumênico se desenvolve sob a regência
da Mater e Mestra, o que provoca rebeldias muitas vezes agressivas no campo da
unificação cristã. Javé é o mesmo, mas como os judeus de hoje não são os mesmos
da Antiguidade, segundo afirmam os teólogos, a sua posição perante Roma é a de
novos goyim(Goy”, significa um povo. Goyim é o
plural -) da Nova Jerusalém. Há puros e impuros, e só estão em estado de
pureza, os que receberam os sacramentos da Igreja e a ela se engajaram. Disso
quase não se fala, pois não é conveniente. Deus também conhece as manhas políticas
dos homens e, como engajou-se a eles, continua a usar os seus processos, como
nos tempos bíblicos. A Revelação do Novo Testamento diverge da antiga em
amplitude e posição. Restringe-se a Jesus Cristo, Filho de Deus, é dada por ele
mesmo. Revelação pessoal de si próprio, na distinta condição de filho. Nessa
interpretação a Igreja contradiz dogma da Trindade, aceitando a doutrina de
Ario, rejeitada naquela. A relação entre pai e filho torna-se evidente e
específica. O objeto único dessa revelação é a pessoa de Jesus Cristo e sua
doutrina. Numa e noutra Jesus aparece como o único mediador entre Deus e os
homens e o único meio de salvação ou redenção. Essa interpretação fecha as
fronteiras da redenção na pessoa única de Jesus, o que determinou o estabelecimento
das alfândegas da fé no processo ecuménico. Todo universalismo da Revelação
Cristã desaparece, com essa volta ao sociocentrismo judaico. Não obstante, o
que mais ressalta dos textos evangélicos é precisamente a ruptura do
sociocentrismo da antiga Israel com a definição nova de Deus oferecida e
pregada por Jesus através de uma única palavra — Pai — que anulou os
divisionismos antigos e estabeleceu a fraternidade universal dos povos. Jesus
de Nazaré, embora designado pelo mito grego do Cristo, não deixa de ser o
Messias judeu, fechado nas estreitas fronteiras da sua própria raça terrena. Ao
invés de aparecer como o reformador religioso que ampliou as dimensões do
Cristianismo, Jesus se converte no ponto-final definitivo do preferencialíssimo
de Javé. A sofisticada tessitura da doutrina sibilina da Igreja reduz a
redenção do mundo à simples redenção de uma seita religiosa. Desde o tempo dos
gregos, os sofistas primaram em confundir as coisas mais claras, o que levou
Sócrates a desligar-se deles para descobrir a verdade do conceito no fundo da
palavra, como a Verdade se esconde no fundo do poço. Colocado em termos
sectários e num plano de misticismo medieval, o problema da Revelação Cristã
tornou-se o espinheiro da parábola em que as sementes germinam, mas não podem
desenvolver os seus poderes latentes. Enleada nas malhas de interpretações
sobrenaturais, absurdas e delirantes, a Revelação impôs-se aos crentes como a
encarnação da Sabedoria Divina. As antigas escrituras judaicas revestiram-se da
infalibilidade que mais tarde seria conferida também ao Papa em seus
pronunciamentos ex-cátedra. O Clero armou-se de poderes absolutos e a renovação
cristã do mundo transformou-se em retrocesso ao tempo das civilizações
teocráticas. As maldições, excomunhões e condenações do Santo Ofício
amedrontaram e acovardaram os meios culturais. A Filosofia tomou-se serva da
Teologia e a piedade cristã chegou ao extremo das torturas em calabouços e
execuções nas fogueiras como atos de caridade em favor dos hereges condenados
ao fogo eterno. O Cristianismo era o próprio anticristo, pois a obra de
redenção virara obra de restrição, o sonho de amor e fraternidade dos
Evangelhos revertera em pesadelo de perseguições, guerras e atrocidades.
Como reconhecer
nas instituições cristãs a promessa do Cristo? Apesar de tudo, as instituições
prevaleceram e a verdade cristã foi asfixiada sob a avalanche de maldições e
condenações cruéis proferidas em nome do Cristianismo. E ainda hoje é esse
Cristianismo institucional que se apresenta como o Cristianismo do Cristo,
herdeiro exclusivo do pensamento do Cristo. A pequena mostra que demos do
processo mágico de metamorfose forçada da Revelação é suficiente para colocar o
problema. Mas a penetração a fundo na história desse processo, com a documentação
necessária à comprovação de suas várias fases, dás incríveis manobras
realizadas nos bastidores da política dós reinos do mundo seria suficiente para
que o Reino do Céu fosse condenado pela justiça perecível e cega da Terra. Isso
revela insensatez humana e a irresponsabilidade a que nos entregamos quando nos
atrevemos a cambiar as estrelas moedas de prata e ouro. Mas o tempo incumbiu-se
de roer as construções humanas, romper os seus revestimentos de púrpura falsa e
desnudar as estruturas internas das grandezas aparentes. O homem sedento de
conhecimentos não se sujeitou à escravidão dos dogmas, acabou rompendo as
barreiras teológicas e desenvolvendo a Ciência e a Filosofia no plano exato das
pesquisas. Os resultados objetivos das pesquisas e das descobertas tornaram
insustentáveis no plano cultural os princípios e conceitos derivados do Mito da
Revelação. A Razão teria de triunfar, como realmente triunfou. O pensamento
racional do Cristo brotou das investigações históricas, retomando o seu lugar
no campo cultural. Entre as numerosas doutrinas que surgiram em oposição ao
dogma da Revelação, postulando os direitos da Razão, o Espiritismo enfrentou
face a face a questão e Kardec a colocou no lugar devido. Revelar não é nada
mais do que mostrar o que estava oculto. Para isso, basta levantar o véu que
encobre os mistérios. Quanto mais densa é a ignorância do Mundo, maior é o
número dos mistérios que aturdem a compreensão humana. Com o avanço dos estudos
e das pesquisas, a Ciência descobria a natureza e as leis dos fenômenos
considerados misteriosos. A investigação do mistério dos milagres, dos
estranhos fenômenos da mediunidade, das manifestações proféticas e oraculares
lançou a luz necessária sobre esses problemas. Uma grande dúvida havia sido
lançada sobre a validade do Cristianismo, cuja razão de ser parecia ligada
exclusivamente à mentalidade mitológica da Antiguidade e ao espírito
supersticioso dos tempos de obscurantismo. Teria realmente existido o Cristo,
esse Jesus de Nazaré que fundara a seita cristã dos galileus? Não se trataria
apenas de um mito? A tragédia da Paixão não seria uma simples transfiguração do
mito de Osíris, esquartejado e ressuscitado? O mito solar das civilizações
agrárias, como queriam os mitólogos, não seria a fonte de que surgira a estranha
estória do Messias judeu, forjada pela imaginação excitada dos pescadores do
Lago de Genesaré? Não existia — dizia-se — nenhuma prova histórica da
existência de Jesus. Renan, ex-seminarista, tomado pelas dúvidas, resolveu
investigar o assunto e conseguiu provar a realidade existencial de Jesus. E
Kardec, debruçado sobre as realidades invisíveis que transpareciam das
manifestações mediúnicas, colheu em suas pesquisas os dados necessários para
reformular a questão em termos mais profundos e desenlear da ganga dos
mistérios teológicos o sentido real da Revelação. Nos próprios textos
evangélicos, examinados à luz da crítica histórica e segundo critérios
psicológicos e antropológicos, encontrou a confirmação de uma nova teoria. Era
fácil, com esses recursos, separar dos textos evangélicos o que pertencia ao
clima mitológico da época da redação dos textos e o que pertencia à realidade
histórica. Ao mesmo tempo, era fácil explicar, na perspectiva de uma visão
antropológica da evolução do homem, o desenvolvimento das manifestações
espirituais no plano mediúnico, desde as selvas até os oráculos do mundo
civilizado e à eclosão da mediunidade positiva nos Estados Unidos e na Europa
do Século XIX. A Revelação surgia do mistério teológico como Vênus do mistério
das águas. A Revelação perdia a sua face de esfinge e aparecia como um fato
natural e contínuo ao longo da História. Colocou então o problema nestes
termos: A Revelação Divina provém de oráculos e profecias, tendo sido aceita na
Antiguidade como ensino superior que devemos encarar com reverência. Se existem
entidades espirituais que podem comunicar-se com os homens, é natural que essas
entidades nos forneçam informações sobre o plano em que vivem, e ensinos de
ordem moral. Um profeta ou vidente pode também revelar-nos as suas intuições ou
visões de uma realidade que escapa aos nossos sentidos. Mas a validade dessas
revelações depende da comprovação que pudermos efetuar através de pesquisas
científicas rigorosamente controladas, segundo um critério lógico rigoroso e uma
metodologia específica de comprovada eficiência. A Revelação humana é feita por
homens que não possuem dons mediúnicos, mas estão preparados para a
investigação científica e a ela se dedicam. Não há mistério divino nesses dois
casos, há leis a serem descobertas e demonstradas. O valor da profecia e da
vidência dependem naturalmente das comprovações objetivas que possam
referendá-las Qualquer Revelação que ultrapasse o nível presente dos
conhecimentos humanos deve ser encarada, quando lógica, apenas como provável.
Só a comprovação futura da realidade revelada pode nos dar a prova da sua
validade, a menos que consigamos, no presente, descobrir meios capazes de nos
permitir a investigação do problema e o reconhecimento científico da sua
realidade. A Revelação Cristã foi de ordem moral e a sua validade se comprovou
na vivência dos seus princípios por homens que não se entregaram a devaneios a
respeito. Coube à Ciência Espírita comprovar a possibilidade dos milagres de
Jesus e dos seus apóstolos, através das pesquisas científicas dos fatos
mediúnicos. E Jesus mesmo foi o primeiro a declarar que os seus feitos, e até
feitos maiores que os dele, podem ser realizados por nós. (Não estamos dando
textos de Kardec, mas fazendo uma síntese de suas explicações a respeito, que é
o que nos dá a medida da sua posição.) Estudando o panorama das Revelações
Divinas no Mundo, Kardec estabeleceu o seguinte critério: as revelações da Antiguidade
foram sempre pessoais e locais, pois as civilizações se desenvolviam ilhadas,
distanciadas umas das outras, sem as facilidades modernas de comunicação. Cada
Revelador falava ao seu povo, mas todas se harmonizavam nos pontos
fundamentais. As revelações de Moisés e de Jesus foram também pessoais e
locais, mas abrindo perspectivas para a universalidade. A de Jesus objetivou
essas perspectivas ao projetar-se do meio judeu, universalizando-se
progressivamente. Essa Revelação mostrou, com isso, representar uma síntese de
todas as Revelações anteriores. A Revelação Espírita não foi pessoal nem local
e representa a continuidade da Revelação Cristã, no esclarecimento de todos os
princípios cristãos e no restabelecimento do ensino real do Cristo. Sua
finalidade não é a implantação de uma nova Religião, mas unificar o
conhecimento, unindo a Ciência, a Filosofia e a Religião num sistema integrado.
O Espiritismo é um auxiliar das Religiões, às quais oferece os recursos
necessários para enfrentarem o Materialismo e se livrarem dos resíduos
supersticiosos do passado. A Ciência Espírita vem contrabalançar o avanço da
Ciência da Matéria, ampliando as dimensões do conhecimento humano. A Filosofia
Espírita é o corpo central da Doutrina e dela resulta a Moral Espírita,
coincidente com a Moral Evangélica pura, liberta de tendências sectárias. A
vida terrena é apenas um estágio do espírito na encarnação, um passo no seu
processo evolutivo. A Revelação Espírita provém de instruções dos Espíritos
Superiores, transmitidas por via mediúnica. Essas instruções não foram dadas
através de nenhum processo místico, mas como consequência das pesquisas
científicas dos fenômenos paranormais. Como dizia Kardec, os fenômenos
investigados não eram mudos, mas falantes, revelando a presença de uma
inteligência, que ele a princípio atribuiu às pessoas presentes e a ele mesmo.
Na continuidade das pesquisas essa inteligência revelou-se autônoma,
estabelecendo-se então um diálogo esclarecedor por meio de tiptologia e depois
de psicografia. Kardec elaborava em segredo os testes de cada experiência. As
respostas não eram aceitas gratuitamente, mas através de discussão com a
inteligência presente, examinadas sob critério lógico, submetidas a confronto
com a cultura da época e a experiências de comprovação. Na "Revista
Espírita" ele divulgava essas experiências e outros pesquisadores, na
França e no mundo, passaram a colaborar com ele. Seu critério científico foi
louvado por Richet, que reconheceu o seu pioneirismo, discordou de suas
conclusões espíritas, mas depois, através de suas famosas experiências
metapsíquicas, comprovou o acerto de Kardec. Apesar de sua elevada posição nas
Ciências, Richet, Prêmio Nobel de Fisiologia em 1913, acabou aceitando as
conclusões de Kardec. Hoje, as pesquisas parapsicológicas e o
avanço geral das
Ciências, particularmente da Física Nuclear, trouxeram novas e decisivas
comprovações ao trabalho de Kardec. Essa, segundo ele mesmo explicou, foi a
primeira Revelação ao mesmo tempo divina e humana, em que as entidades
espirituais e os homens se conjugaram num esforço comum em busca da Verdade. O
resultado foi a elaboração da Ciência Espírita, que por sua vez desencadeou no
mundo as pesquisas psíquicas científicas realizadas em laboratório nos grandes
centros universitários. A essa Revelação sem precedentes é que ainda hoje se
opõem alguns sacerdotes das religiões cristãs, tristemente desprovidos de
capacidade científica, sem os recursos culturais e o preparo científico
necessários, na inglória e inútil defesa de seus dogmas. Não há mais lugar, no
pensamento contemporâneo, para as crenças ingênuas do passado, fundadas em
pressupostos absurdos, alimentadas por esperanças irracionais e aspirações
indefinidas de povos incultos. O Espiritualismo Utópico e o Materialismo
Científico estão inteiramente superados. O primeiro ainda vive graças a
tradições religiosas que rapidamente vão se apagando no suceder das gerações, e
o segundo só subsiste graças às estruturas políticas que o sustentam,
preservando-o através de medidas coercitivas, à semelhança dos métodos medievais
com que a Igreja pretendeu na fase do seu domínio absoluto, impedir o
desenvolvimento científico. Não há Revelação sem Ciência. E não há Ciência sem
espírito livre aberto, entregue à pesquisa com o único objetivo de conhecer a
realidade em suas múltiplas faces. O progresso humano depende do progresso
científico. O conhecimento se forma da conjugação de todos os campos da
Ciência, abrangendo a totalidade do Existente. As várias instâncias da
estrutura bio-psico-somática do homem correspondem aos diversos planos na
Natureza e do Cosmos em que se engasta o nosso planeta. O conhecimento é um
sistema único e integrado. Sua divisão em Ciência, Filosofia, Arte e Religião é
apenas metodológica. Uma religião sem apoio lógico e científico é um conjunto
de lendas ou de cavilações astuciosas. Uma Ciência sem os dados da Religião é
um corpo sem alma. Ciência, Arte e Religião desprovidas de arcabouço filosófico
não são mais do que esboços imprecisos do que pretendem ser. O Cristianismo
surgiu da intervenção de um Gênio, Jesus de Nazaré, na Cultura palavresca e
formalista dos fins do Mundo Antigo, para dar-lhe a possibilidade da integração
cultural. O dogma da Revelação frustrou esse desígnio, opondo a infalibilidade
da suposta palavra de Deus a todas as formas de progresso que contrariassem
esse mito. Mas agora, nesta fase de acelerado avanço do Conhecimento além dos
próprios limites do Sistema Planetário e do Sistema Solar, impõe-se a volta ao
Pensamento do Cristo com todos os recursos novos que conquistamos. A revisão
histórica e estrutural do Cristianismo é uma exigência vital da Nova Era — a
Era Espacial ou Cósmica — que se abre para a Terra. Quando Kardec lançou, no
século passado, a teoria da pluralidade dos mundos habitados, a que o astrônomo
Camille Flamarion deu o apoio de uma obra especial a respeito, os escribas do
século tentaram ridicularizar a ambos. Não obstante, Jesus já havia anunciado a
existência de muitas moradas na Casa do Pai. O mesmo fizeram no tocante ao períspirito
ou corpo espiritual. Hoje ninguém de bom senso se atreve a ridicularizar as
conquistas da Astronáutica ou a descoberta científica, pelos físicos e biólogos
soviéticos, na famosa Universidade de Kirov (materialista) do corpo-bioplásmico
do homem. É' hora de revisão, e revisão profunda, corajosa, para repormos o
Cristianismo no seu justo lugar.
V - O CULTO
CRISTÃO
Há uma diferença
fundamental entre o culto das antigas religiões agrárias e pastoris e o culto
cristão. Todo o ritual do culto daquelas religiões nasceu dos ritmos da
Natureza, enquanto os rituais do culto cristão tiveram de ser derivados
daqueles e não raro inventado. Disso resulta um problema de legitimidade que
tem provocado incessantes disputas e violentas condenações. A revolta luterana,
que desencadeou a Reforma, foi um dos momentos mais críticos dessa busca da
legitimidade e provocou o movimento da Contra-Reforma. Lutero preconizou a
volta a Cristo, com a extinção de todos os acessórios adotados pela Igreja
através de mais de um milênio de invenções bastardas. Porque o Cristianismo
havia sido precisamente uma reforma do Judaísmo, visando à depuração do culto
judaico, que atingira, na fase dominante do Farisaísmo, a mais espantosa
saturação de normas e formas para a relação do homem com Deus. Jesus, nascido
judeu, formado na educação judaica das sinagogas, condicionado pela tradição
bíblica, mostrou-se desde o início do seu ministério espiritual um
revolucionário e um crítico rigoroso das exterioridades rituais e comerciáveis
do Templo de Jerusalém. Não se submeteu a nenhuma ordenação oficial, preferindo
agir como um rabino popular independente, violando as leis do rabinato e
condenando-as francamente. Não instituiu fórmulas novas e nem fundou qualquer
igreja. Assim, os cristãos formalistas, apegados ao passado, viram-se em
dificuldades para restabelecer um culto cristão, tendo de apelar para a
adaptação de certas expressões evangélicas aos seus objetivos. Centralizou-se o
culto na pessoa de Jesus Cristo como único salvador da humanidade, único
intercessor do homem junto a Deus, fundamentando-se a fé na expressão alegórica
do Batista, que chamou Jesus de Cordeiro de Deus. O culto cristão ligou-se
assim aos cultos agrários e pastoris, revelando suas raízes na alegoria do
Cordeiro. Mas esta alegoria não se refere aos cultos ancestrais, e sim aos
sacrifícios de animais no Templo de Jerusalém. Jesus seria o cordeiro ritual
que o próprio enviara à Terra para ser sacrificado em seu louvor, a fim de que
o sangue do sacrifício lavasse os pecados da humanidade. Há tanta incongruência
nesse mito que fundamenta o culto cristão, quanto nos demais que se desenvolvem
posteriormente. Até mesmo dos ritos fálicos dos tempos mais remotos foi tirado
o modelo do hissope para a aspersão da água benta, uma prática mágica de
fecundação da terra para a semeadura, segundo o processo da fecundação animal e
humana. Jesus combateu a magia e os mitos, mas o Cristianismo se organizou na
sistemática mitológica e acabou transformando o próprio Mestre em mito. O rito
do batismo era uma prática muito difundida na Palestina, segundo mostra
Guignebert, e provinha das religiões ancestrais dos cananeus. João Batista nada
mais fazia do que usar essa prática para ajudar as criaturas a se modificarem,
certas de que a água do Jordão não lhes lavara apenas o corpo, mas também a
alma. Por isso os batizados com água eram aplicados a pessoas adultas, que deviam
compreender a necessidade de iniciar uma vida nova para agradar a Deus. Esse
ato folclórico, simples e puro, foi transformado no culto cristão num processo
mágico de purificação espiritual, destinado a lavar a mancha do pecado original
de Adão e Eva da almazinha inocente das crianças recém-nascidas. Mas que pecado
era esse? O da desobediência, que a serpente transmitira a Eva e esta a Adão.
No entanto, a desobediência da criança, como a dos animais, não pode apagar-se
com palavras, água e sal, porque é uma consequência natural do desenvolvimento
dos instintos vitais que levam os animais e o homem à busca de satisfação de
suas necessidades orgânicas. Talvez por isso inventou-se também o rito da
crisma como confirmação do batismo, que por si só se mostrava impotente contra
o pecado original. O padre batiza, o bispo, seu superior hierárquico, dá o
sacramento da crisma. E apesar de todo o aparato do culto exterior e de toda a
sofística da justificação teológica, a criança não cede nada em sua
desobediência salutar e necessária. Não só as formas sacramentais se revelam
vazias, mas também os supostos poderes da hierarquia sacerdotal. Além disso, as
igrejas se esqueceram das palavras seguintes do Batista, que restringem o
batismo da água ao seu ministério individual, anunciando que o Cristo batizaria
no fogo e no espírito. E se esqueceram também do episódio do Apóstolo Pedro no
porto de Jope, quando verificou, na casa do centurião romano Cornélios, que o
batismo do espírito não dependia de nenhum rito sacerdotal. A Missa, como
assinala Blavatsky, é a antiga ceia das ordens ocultas dos Mistérios
mitológicos, das cerimônias maçônicas, transformadas numa encenação mágica do
Cristianismo. As procissões sagradas do Corpo de Deus derivam de adaptações
egípcias do Culto de Osíris, esquartejado e depois ressuscitado. As procissões
comuns dos santos em andores floridos imitaram as procissões romanas dos
deuses-lares, dos manes, antepassados das grandes famílias romanas cultuados
pelos descendentes. A extrema-unção é a revivescência das unções piedosas dos
cadáveres com óleos rituais, que no Egito chegou ao extremo da mumificação, num
apego desesperado e anticristão ao corpo carnal. O latim, língua do
Império dos
Césares, mantinha o prestígio dos ritos e do sacerdócio, pois a linguagem
misteriosa, que ninguém mais compreendia, resguardava o poder secreto de um
mundo morto, mas fabuloso. O pensamento mágico, natural nas populações bárbaras
que derrubaram o Império das Messalinas. E o pensamento racional do Cristo, que
tudo explicava e esclarecia, era deformado pelas interpretações teológicas que
alimentadas pela fascinação do desconhecido e particularmente do sobrenatural:
As vestes sacerdotais, pesadas e solenes, herdadas de cultos orientais que
invadiram a Europa, e a coroa recortada no couro cabeludo dos padres,
representando o disco solar das religiões pagãs, guardava o poder das clareiras
abertas no mistério das florestas profundas e escuras. A imaginação mítica da
população bárbara embriagava-se com esses ingênuos artifícios que, na verdade,
constituíam a mais atrevida e completa deformação da mensagem cristã. Hoje,
quem assiste a uma missa na linguagem atual de qualquer nação moderna sente
logo a sensação de uma representação teatral ingênua, desprovida de toda a
grandeza imaginária do passado. Um teatrólogo moderno poderia elaborar um texto melhor para a recitação
ingênua dos párocos, que não obstante se julgam dotados do poder de
evocar a Deus em carne e sangue, na pessoa do Cristo, e fazê-lo encarnar na
hóstia, sem que Ele, Deus, possa recusar-se a isso. Não queremos ridicularizar
a crença simples do povo, que ainda hoje carrega as suas pesadas cargas de
superstição e magia, mas apenas mostrar, com estes dados recolhidos da pesquisa
histórica mundial, em plano universitário, que o chamado Cristianismo oficial
necessita de uma revisão imediata para poder entrosar-se na cultura
contemporânea. Todo esse gigantesco fabulário que fez de Jesus de Nazaré um
mito absurdo, alimentando ainda hoje as mais sangrentas lutas religiosas no
mundo, tem de ser desmontado para que o Cristo reapareça na sua realidade
humana e racional, retomando o seu lugar entre os homens. A mensagem cristã, na
sua pureza primitiva, tem um poder muito maior que o de todo esse amontoado de
coisas heterogêneas e encenações antiquadas. Sua finalidade não é fascinar os
homens e dominá-los pela paixão do mistério, mas esclarecê-los e transformá-los
pela visão real do mundo e da vida. No momento em que a Ciência penetra na
intimidade da matéria, revelando os segredos da sua estrutura, e rompe os
limites do pequenino e pobre planeta que habitamos, para mostrar-nos a grandeza
do Cosmos e a possibilidade humana de devassá-lo e conquistá-lo, o apego das
populações civilizadas a esse amontoado de superstições e crendices só pode
favorecer, como está favorecendo, o desenvolvimento da descrença e do
materialismo em todo o mundo. O tabú do sagrado, elaborado e entretecido em
filigranas mentais, gerando uma terminologia fantasiosa, em que as palavras
perdem o sentido da comunicação para se tornarem perigosas formas de vetores
psicoemocionais, sufocando a razão e impedindo o entendimento, não pode
subsistir sem graves ameaças numa hora de acelerado desenvolvimento cultural.
Nossa submissão a essa herança mágica equivale a um suicídio coletivo, que já
nos ameaça com os fantásticos arsenais de armas atômicas. Não se trata de
ameaça divina, mas humana. De castigo do Céu, mas de traição terrena. De
respeito ao passado, mas de acomodação egoísta no presente. Porque o passado
real foi desfigurado e aviltado nas aras da ignorância e dos interesses
imediatistas. O passado real está na Verdade Cristã. O culto exterior do
Cristianismo Oficial contrasta flagrantemente com o culto interior do Cristo e
do Cristianismo apostólico. Jesus condenou os fariseus que se vestiam de
roupagem pomposa e se punham a orar nas esquinas de Jerusalém para serem vistos
e admirados. Desrespeitou as regras de pureza que ordenavam lavar as mãos para
sentar-se à mesa, sem prescrever a pureza do coração. Permitiu que os
discípulos famintos apanhassem espigas de trigo no campo, em pleno sábado, para
se alimentarem. Fez curas no sábado e lembrou que o mais zeloso judeu não
deixaria de salvar sua ovelha caída num buraco no dia de sábado. E por fim
perguntou se o sábado havia sido feito para o homem ou o homem para o sábado.
Sua posição contra os mitos, os dogmas, os ritos, as prescrições formais e todo
o formalismo está bem definido nos textos evangélicos, ressaltando como água
pura entre os elementos impuros da influência mitológica sobre os redatores
tardios dos textos. Na parábola do trigo e do joio revelou sua plena
consciência de que o seu ensino seria deturpado e precisaria mais tarde ser
restabelecido em espírito e verdade. Mas o comodismo, o egoísmo, o interesse inferior
pelas coisas terrenas, a preguiça mental, a covardia — todas essas antivirtudes
da espécie consolidaram no tempo as posições vantajosas do anti-Cristo, dando a
este o domínio do mundo. Ainda recentemente o Papa atual, na investidura
sagrada da sua santidade oficial e da sua infalibilidade abismal, declarou:
"Quem não acredita no Diabo não é cristão". O que se sabia até agora
é que não é cristão quem não acredita no Cristo. Essa espécie de qualificação
da fé às avessas exemplifica bem a inversão da mentalidade cristã através da
sedimentação do formalismo em quase dois mil anos de apego ao culto exterior. 8
um processo de alienação em que os cristãos se entregaram à matéria, às coisas
e aos objetos. Em conseqüência, o Cristianismo também se fez objeto, e o que é
pior, objeto de especulações em todos os campos da mundanidade. As formas se
esvaziaram. Quando hoje se fala no Reino de Deus entende-se Reino da Terra.
Quando se fala no Cristo, pensa-se num mito. A fé projetou-se nas coisas,
segundo as leis do animismo primitivo dos selvagens e das crianças. O culto
cristão não é de entidades espirituais,
mas de ídolos
materiais carregados se supostos poderes transferidos a imagens e símbolos.
Esse processo de transferência anímica esvaziou também os crentes,
transformando a fé antiga em crença supersticiosa na trepidação dos tempos
novos em que a máquina (também coisa, objeto) sobrepõe-se ao homem. A prova
maior desse esvaziamento, em que o pneuma, ou espírito evolou-se da criatura
está na desumanidade contemporânea, em que se luta pelas coisas aniquilando o
homem. O valor humano desaparece tragado pelo valor excessivo das coisas. A
revisão do Cristianismo é hoje uma exigência da própria sobrevivência humana.
Embriagado pelas conquistas materiais, o homem se deixa arrastar pelas coisas,
coisificando-se a si mesmo. As idéias materialistas o levam a considerar a
existência terrena como um jogo de forças cegas em que só vale o mais forte. E
como a força também não está mais no homem, transferiu-se para as máquinas e
seus combustíveis, para as armas e seus explosivos, o próprio homem se
transfere, já não apenas animicamente, mas de corpo inteiro, para o mundo das
máquinas. Mecaniza-se. A visão cristã do mundo mudou-se em visão diabólica.
Transformando Jesus de Nazaré em mito, o homem se transformou em robô. A
ingenuidade da pragmática norte-americana ainda envia cosmonautas à Lua. Os
soviéticos, apegados à praxis marxista, preferem enviar tratores de controle
remoto, que lhe trazem as pedras lunares com menos complicações e menos perigo.
O espírito de aventura dos norteamericanos não resiste ao desafio do Cosmos. O
espírito prático dos russos, num processo de industrialização mais recente, não
resiste ao fascínio da mecânica. Mas se os americanos continuam apegados às
suas seitas cristãs e os russos ao materialismo marxista, no fundo se encontram
e se conjugam na mesma alienação do homem à máquina. Tagore assinalou a
transformação da antropofagia selvagem à civilizada, mostrando que os homens
atuais se entredevoram na selva selvaggia dos lucros e dos juros. Crianças
esquálidas, nos arredores de metrópoles suntuosas, tiveram seu sangue sugado
pelos vampiros insaciáveis do lucro. Os campos de trabalhos forçados da URSS
são máquinas de vampirização montadas pelo Estado. O misticismo russo também se
transferiu para o fanatismo político estatal. Na própria índia mística, os
gurus montaram suas indústrias de espiritualidade enlatada. Santiniketan, a
Universidade espiritual de Tagore, é hoje um centro de política universitária voraz,
como disse o Dr. Barnejee. A política espiritual de Gandhi, o Mahatma cedeu
lugar à política da violência, dirigida por uma mulher. O processo de inversão
dos polos projeta-se em todo o mundo. A China entregou-se ao materialismo e à
massificação cultural, eliminando os últimos resquícios das tradições
espirituais. Na Africa negra tudo foi mais fácil. Bastou o afastamento dos
brancos para que os negros revelassem o que aprenderam com eles para
multiplicar sua auto-destruição. E Israel, que rejeitou o Cristo desde o
princípio, conseguiu reorganizar-se na base das tradições da raça, mas agora em
ritmo de 007, violando todos os princípios do Direito Internacional para
mostrar a dureza interior dos sabras, esses frutos do cactus do deserto,
prontos a revelar suas habilidades mecânicas. A coincidência de todas essas
modificações no mundo é significativa, como se diz na linguagem
parapsicológica. O panorama mundial reflete a inversão de valores produzida
pela deformação milenar do culto cristão. Porque a verdade é que o Cristianismo
envolveu todo o mundo, pelo seu poder de expansão e contaminação, no fluxo de
transformações deflagrado pelas palavras do Cristo. O mundo cristão
desequilibrado, com sua polaridade invertida, desequilibrou todo o planeta. Ou
reequilibramos esse mundo, restabelecendo a verdade cristã, ou pereceremos com
ele.
VI - O OLIMPO
CRISTÃO
Os deuses de
batina formaram seu Olimpo no Monte Vaticano, uma das sete famosas colinas de
Roma. A milotogia cristã teve essa vantagem sobre as pagãs. Constituiu-se de
dois cenáculos divinos, de duas linhagens distintas de deuses. A primeira
lembra os deuses gregos do intermúndio, mas também com grande superioridade
sobre eles. Essa linhagem metafísica provém do próprio Deus Supremo, Criador e
Senhor Absoluto do Universo, de toda a Criação. Do Deus Único e Supremo
descendem as duas pessoas da Trindade que se submetem ao Pai. Como já vimos, a
Trindade é uma Família Divina, à qual só falta a Mãe, e isso por um motivo
muito lógico. Se Deus, o Pai, vivia solitário no Infinito quando resolveu criar
a Terra, e sendo onipotente criou todos os seres que deviam habitála, não
precisou de esposa para constituir sua família. Dizem os críticos que essa
falta da mulher na Trindade levaria a Igreja, mais tarde, à Mariolatria, ou
seja, à colocação da humilde judia Maria de Nazaré, mãe de Jesus, na posição da
Deusa faltante, concedendo-lhe o direito de ascender ao Céu, como o seu filho,
com o próprio corpo carnal. Direito que ela, não deve ter usado com satisfação,
pois um corpo de carne e osso no Céu deve ser muito incômodo para quem o levou
até lá, ao invés de deixá-lo dissolver-se normalmente na Terra. Maria de
Nazaré, cuja missão terrena foi sublime, é um espírito de tamanha elevação que
certamente não tomou conhecimento desse privilégio estranho. Seu corpo
espiritual, radiante de luz divina, era o único que naturalmente lhe
interessava, e com ele vivera na Terra, pois o corpo carnal só existe e só
funciona graças àquele, como ainda recentemente provaram os físicos e biólogos
soviéticos da Universidade de Kirov, nas suas famosas pesquisas sobre o corpo
bioplásmico do homem. Os teólogos certamente se apoiam na tese do Apóstolo
Paulo para dar uma explicação possível a esse quiproquó. Paulo entendia que o
corpo material pode ser transformado, embora afirmasse que o corpo espiritual é
o corpo da ressurreição. Seja como for, o fato é que, com a ascensão de Maria,
a Família Divina cresceu de mais uma pessoa, a mãe que faltava. Por sinal que
ainda recentemente um guru indiano sustentou a tese de que a ascensão de Maria
representou uma correção da Trindade Cristã. Após as pessoas da Trindade, a que
Maria necessariamente se juntou, temos as cortes celestes, como a das Dez Mil
Virgens, a hierarquia dos Anjos e Tronos, e os acréscimos dos Santos, como os
apóstolos e os evangelistas e mais os bem-aventurados os santos canonizados que
a Igreja periodicamente reconhece e remete ao Céu. O número de Papas, Cardeais
e Bispos é naturalmente grande, de maneira que a solidão pitagórica do Deus Único
há muito já foi quebrada. O dogma da Criação tem dado muito trabalho aos
teólogos no mundo moderno e contemporâneo, mormente depois das pesquisas
astronáuticas, que revelaram a ínfima posição da Terra no Cosmos e até mesmo em
nosso minúsculo sistema solar, e mais ainda em nossa galáxia. Ou os cronistas
bíblicos se enganaram ou Deus não criou somente a Terra. A teoria da
pluralidade dos mundos habitados tomou vulto nos últimos tempos, e vários
teólogos têm quebrado a cabeça para resolver o problema de uma possível
descoberta, nos próximos anos, de outro planeta habitado. Como estender a
posteriori a origem divina do homem terreno aos homens de outros mundos? Como
estender-lhes também a salvação em Cristo? Um dos expedientes mais eficazes é o
da união, não apenas formal, dos Evangelhos à velha Bíblia judaica, pois Jesus
se referiu às muitas moradas da Casa do Pai. Mas acontece que, apesar da
confusão já feita, popularmente, entre Bíblia e Evangelho, há o fato histórico
irredutível da grande distância temporal entre esses dois livros, e mais, o
fato também histórico e irredutível de que o Evangelho englobando todos os seus
tomos, não apenas complementa, mas principalmente reforma a Bíblia. Dessa
maneira, o erro do cronista bíblico é simplesmente incorrigível, em todos os
sentidos da palavra. Talvez fosse melhor a promoção de um documento papalino
explicando que o cronista bíblico se esqueceu de dizer que Deus criou a Terra
como experiência inicial, para depois se entregar à criação do Universo. O
documento poderia estender também os benefícios do sacrifício terreno do Cristo
a todos os povos do Cosmos. Isso permitiria ainda a própria extensão da Igreja
a outros mundos. Quanto ao Olimpo do Vaticano, onde os deuses de batina já
estão abandonando o uniforme divino e pretendem também constituir suas famílias
em futuro próximo, temos de reconhecer que se tornou, através dos tempos, uma
instituição respeitável. A Corte Vaticânica, à semelhança, da Corte Olímpica da
Grécia antiga, é constituída de figuras perecíveis, que transitam por ali
deixando suas marcas nos registros internos e na tradição. E comovente a
crônica milenar das vidas que por ali passaram, muitas vezes na renúncia e na
obscuridade, formando-se grupos afins de almas dedicadas ao trabalho e ao
estudo. A vida doméstica dos deuses de batina envolvem a mesma ternura e
respeito de uma vida familiar terrena. Quem lê, por exemplo, a vida do eminente
Papa João XXIII, escrita por Leone Agisa, encontra ali passagens de profunda
humildade e não menos profunda humanidade. Os deuses de batina revelam-se tão
ligados aos hábitos comuns da espécie, tão presos aos deveres e às
obrigações da
família vaticânica, que só mesmo a batina e as prerrogativas eclesiásticas as
tornam diferentes das pessoas comuns. O Cardeal Fossati, que incumbiu-se de
prefaciar o livro, refere-se ao biografado da seguinte forma: "... o
amabilíssimo Sumo Pontífice João XXIII, a quem me ligaram no passado vinculos
de companheirismo pessoal e amizade, como confrades no Sacerdócio e no Episcopado,
e hoje me ligam sentimentos de filial afeição, respeito e profunda devoção para
com o Vigário de Jesus Cristo e Pai comum de nossas almas". Nesta simples
referência transparece todo o clima de familiaridade e afeição que se
estabelece através dos anos entre os companheiros de um mesmo labor. A
convivência humana é sempre a mesma, chegando mesmo a refletir-se nas lendas
olímpicas dos gregos e dos romanos. A vida no Vaticano, num mosteiro ou num
convento não escapa às normas da espécie, o que prova que os deuses de batina
do Olimpo cristão, apesar de todas as suas vestes pomposas, da sédia gestatória
dos Papas e das complicadas funções do Estado Teocrático, não perde o seu
conteúdo e o seu sabor humano. Isso nos obriga ao respeito para com essas
instituições que, embora acumulem erros e até mesmo crimes seculares e
milenares, têm a sua reserva de dignidade humana, preservadas através de
exigências inalienáveis da consciência. Quando criticamos os enganos, as
contradições e os absurdos da Igreja, e particularmente a desfiguração completa
do Cristo e do Cristianismo, cumprindo o nosso dever de consciência, nem por
isso deixamos de reconhecer os méritos dos que, engajados ao sistema e crentes
da sua validade, viveram a sua vocação com o desejo real de servir a Cristo e
aos homens. O Olimpo cristão do Vaticano é uma instituição humana como qualquer
outra. Sua história se compõe de sombra e luz, como toda a História. As figuras
humanas que por ele passaram, sem perder a sua humanidade apesar das pompas e
grandezas fictícias que o caracterizam, cumprindo seus deveres com abnegação e
dignidade, merecem o respeito e admiração de todos os espíritos justos. Mas nem
por isso a instituição em si se livra dos seus erros e desmandos, dos seus
abusos no campo da simonia e de suas pretensões quanto ao sobrenatural. Por
isso, ao tratar da revisão do Cristianismo, não podemos deixar à margem da
apreciação geral essa instituição que atingiu o ápice na deformação da Verdade
Cristã. O Cristianismo jamais comportaria uma espécie de Olimpo intermediário,
colocado entre o humano e o divino, como uma espécie de Tribunal de Deus
incumbido pelos homens, através de decisões conciliares, de julgar e punir
homens e nações, comunidades e instituições em todo o mundo. A própria
infabilidade papal, embora restrita aos pronunciamentos do Sumo Pontífice
ex-cátedra, é a marca da arrogância anti-cristã do Vaticano. Não seria possível
uma revisão real do Cristianismo sem a eliminação dessa instituição que
centraliza os erros acumulados nos milênios do anti-Cristo. De onde surgiu a
suposição de que Jesus de Nazaré era uma pessoa da Trindade? Simplesmente de
interpretações errôneas e orgulhosas de homens que a si mesmos se investiam de
poderes para tanto. Os únicos documentos válidos do ensino de Jesus são os
Evangelhos. O primeiro deles, que os alemães chamaram de Ur-Marcus, o arcaico
Evangelho de Marcos, que desapareceu totalmente, deve ter transferido o que de
melhor possuía, segundo os pesquisadores, aos Evangelhos atuais, ou seja, hoje
conhecidos. As anotações dos discípulos e suas memórias não escritas
embaralharam-se na redação dos Evangelhos Sinópticos. Há disparidades e pontos
obscuros nesses três Evangelhos. O chamado Evangelho Teológico de João, que foi
o último a ser elaborado, mostra-se desde o início do texto influenciado pela
Filosofia greco-judáica de Alexandria. Não existem, portanto, documentos
válidos para que se possam fundar sobre eles interpretações e decisões de
tamanha gravidade histórica, e mais ainda, religiosa. As decisões conciliares são
tomadas por grupos sectários e interessados na sustentação de princípios que
escapam inteiramente à capacidade humana. As lutas e os protestos levantados em
todo o mundo em todos os tempos contra os abusos dessas decisões foram
sufocados pela violência. Tertuliano chegou ao cúmulo de usar a figura jurídica
do usucapião para dar à Igreja o direito exclusivo sobre os Evangelhos. Não
obstante, as antigas heresias conseguiram sobreviver e estão presentes no mundo
atual, exigindo ainda o reconhecimento dos seus direitos esbugalhados pela
força. O próprio Tertuliano pagou caro a sua audácia, caindo em heresia. Como
aceitarmos a legitimidade do chamado Cristianismo oficial, que na verdade se
oficializou a si mesmo, apoiando-se nos poderes seculares de reis e imperadores
ambiciosos e ignorantes? Teríamos então de renunciar ao Cristianismo, de usar a
pedra de Pedro (revelação do Cristo ou a própria pessoa do Apóstolo) para pô-la
sobre a questão e esquecê-la daqui por diante? Não, porque a revisão é
possível. As pesquisas históricas e o exame objetivo dos textos mostraram
aquilo que Kardec considerou o maior de todos os milagres dos Evangelhos: o
ensino moral do Cristo não se perdeu nem se embaralhou, permaneceu intacto
através dos milênios e o Espiritismo conseguiu restabelecê-los na sua pureza
primitiva. É certo que muitos elementos desse ensino devem ter desaparecido.
Mas se o que dele sobrou é suficiente para nos mostrar um pensamento claro e
seguro, que por sinal funcionou no processo histórico como a porção de fermento
da parábola numa medida de farinha, e isso é quanto basta. Se está salva a
essência do ensino moral do Cristo, está salvo o Cristianismo. E se dele
precisamos, pois que se mostrou capaz de
transformar o
mundo, é nosso dever imediato lutar para que ele seja recolocado no seu devido
lugar, na sua posição exata, não como seita enriquecida e dominadora, mas como
idéia dinâmica, força genética restaurada em seu poder legítimo, para
ajudar-nos a reconstruir o mundo e a reabrir aos homens o caminho do Reino. A
questão não é especificamente religiosa, é sobretudo cultural. A chamada
Civilização Cristã realmente existe, embora não seja cristã. Nos dois planos
culturais que se refere Kerchensteiner, o objetivo e o subjetivo, o
Cristianismo projetou a sua alma. O Olimpo Cristão do Vaticano é um monumento
da influência cristã na cultura objetiva. A influência cristã no romantismo,
que Victor Hugo acentuou no prefácio de "Cromwell", e a própria de
Hugo são exemplos da influência na cultura subjetiva. Mas as transformações
produzidas pelo Cristianismo foram prejudicadas pela reação do materialismo, do
positivismo e do pragmatismo contra os absurdos teológicos, a alienação mística
dos religiosos e sobretudo pelo desenvolvimento científico. A mentalidade nova
que surgia após Renascimento, rejeitava a dogmática contraditória e sofística
da Igreja, a pretensão política dos clérigos, o mercantilismo paroquial, a fome
de poder temporal do Vaticano. A arrogância teológica estabeleceu a separação
decisiva entre Cultura Científica e Cultura Religiosa. A Igreja se ilhou em sua
sabedoria imutável e o processo cultural passou a considerá-la como pedra de
tropeço que devia ser evitada a todo custo. O Olimpo cristão se tornou mais
Olimpo do que nunca. Os deuses de batina fortificaram-se em seu reduto,
confiantes na supremacia intelectual de que haviam gozado no passado. E o
Cristianismo voltou aos tempos da Roma antiga, quando era considerado como
religião dos escravos, simples movimento supersticioso sem nenhum conteúdo
verdadeiro. As tendências sociais da Igreja na atualidade, com seus padres
operários, suas ordens esquerdistas e o pronunciamento de altas figuras do
Clero em favor das reivindicações da pobreza chegaram tarde e não inspiram
confiança. O homem atual está preparado para uma Filosofia cristã realista. As
decepções sofridas com as duas guerras mundiais, a explosão das bombas
atômicas, os conflitos raciais e o retôrno dos regimes de exceção em todo o
mundo, aniquilaram as esperanças de uma era de equilíbrio e de paz. Uma
doutrina simples e clara, desembaraçada dos prejuízos milenares de um
teologismo caduco, poderá restabelecer o prestígio cristão. A volta das novas
gerações para Cristo, evidente em seus protestos contra a loucura do século, em
seus movimentos de rebeldia e até mesmo em sua fuga desesperada para os
tóxicos, o desenvolvimento de novo interesse pelas pesquisas históricas do
Cristianismo em plano universitário são sinais de que o mundo desperta para a
necessidade de buscar a essência do movimento cristão. Ao mesmo tempo, e o que
parece mais significativo, é o psychic boom provocado pelas experiências
parapsicológicas e pelo avanço das pesquisas físicas e biológicas no tocante
aos problemas da vida e da morte. A ressurreição e a reencarnação deixaram de
ser objetos exclusivos dos debates religiosos, entraram no centro do movimento
científico. Uma Psicologia da Morte surge nos Estados Unidos em plano
experimental e ganha os centros universitários da Europa. As fábulas do
Cristianismo são confirmadas, como no caso do corpo bioplásmico e dos fenômenos
sobre comunicações mediúnicas, pelas investigações científicas, tanto no mundo
capitalista como no mundo comunista. A Astronáutica alarga os horizontes do
Cosmos e a Física descobre a antimatéria, provando a existência dos mundos
interpenetrados, que tiram o mito do outro mundo do plano imaginário e o
integram na realidade acessível à investigação. Este é o momento exato em que
as proposições cristãs-evangélicas sobre esses problemas precisam ser
apresentadas de maneira positiva. Ao contrário disso, padres e frades católicos
passaram a utilizar as novas conquistas científicas, revelando lamentável
despreparo e incompetência, para defenderem as posições da Igreja. Chegam ao
cúmulo de apresentar-se ao público em auditórios de sociedades científicas ou
ante as câmaras de televisão, fazendo exibição de mágicas teatrais. Vários
deles abrem clínicas psicológicas ou se entregam ao comércio de cursos de uma
parapsicologia confusa, tipicamente sectária. O Olimpo cristão parece aprovar
essas aventuras perigosas, pois a hierarquia eclesiástica aprova essa
charlatanice desmoralizadora do próprio Cristianismo. A incompetência desses
deuses olímpicos decorre dos fatores já examinados da cisão entre cultura
científica e cultura religiosa. Homens que envelheceram nos estudos teológicos,
entregues a especulações falaciosas, não revelam nenhuma capacidade para a
investigação científica. Não sabem o que seja critério científico e usam uma
linguagem vulgar eivada de explicações que podiam ser dadas por um trabalhador
braçal. Não obstante, arrogam-se títulos que não possuem, mostram-se incapazes
de definições precisas e apegam-se a detalhes sem importância, não raro
inventando soluções que não existem para problemas ainda em suspenso no campo da
pesquisa. A arrogância clerical leva-os a fazer afirmações temerárias como
estas: a Parapsicologia prova a onipotência de Deus, a telergia vai buscar as
agulhas que enfia no médium (antropomorfismo infantil), uma gota de lágrima num
litro de água produz o mais poderoso antibiótico que se conhece, a mente é
física e possui forças físicas, os fenômenos físicos ocorrem a cinqüenta metros
de distância do médium (afirmação inteiramente gratuita) e assim por diante,
numa verdadeira enxurrada de heresias científicas do mais baixo nível.
De onde vieram
esses hereges da Ciência? Do Olimpo cristão, certamente. São os deuses de
batina, que para mais confundir o público se apresentam sem batinas. Esse é o
mais novo produto da ciência infusa do Cristianismo oficial. Os sacerdotes
sinceros e sérios, que ainda existem, são os primeiros a se envergonharem com
essa exibição permanente da ignorância do clero. Por que motivo as autoridades
eclesiásticas não tomam medidas contra essa calamidade? Não percebem a
inconveniência dessas farsas perigosas para a própria Igreja? Ou há mesmo uma
intenção de desmoralizar os avanços científicos? Nesse caso, a intenção estaria
ameaçando a própria Igreja, pois eles fazem questão de se dizerem clérigos e
além do mais figuras importantes do Clero. A deformação do Cristianismo revela
suas conseqüências mais desastrosas nesse charlatanismo vulgar e irresponsável.
Teria o Cristianismo oficial atingido o último degrau da deformação do homem?
Quando os representantes de uma doutrina fortemente institucionalizada descem a
esse plano, não se precisa de outras provas da falência da instituição.
Qualquer colégio secundário puniria os alunos que fizessem essas coisas em nome
do colégio, a menos que seus diretores fossem descuida
VII - CRISTO E O
MUNDO
Jesus de Nazaré
chegou ao mundo em silêncio e humildade. Na casinha pobre de José e Maria, em
Nazaré, nasceu mais uma criança, como tantas outras nasciam na mesma hora em
toda a Palestina. Ouviu-se o choro da criança e os pais se encheram de alegre
emoção. Naquele tempo a Terra ainda estava pouco povoada. Havia muito espaço e
pouca gente. 0 nascimento de uma criança era uma bênção para o casal, por mais
filhos que já tivesse. As necessidades mesológicas agem sabre os homens
determinando o aflorar de anseios adequados. 0 culto fálico na remota Suméria
não decorria de exagerado erotismo, mas da necessidade de povoar as imensas
extensões vazias de território. Em Israel, o casal sem filhos era considerado
em desgraça, ou seja, privado da graça de Deus. Para as famílias pobres, os
filhos não eram carga, mas descarga. Desde pequenos ajudavam a manter a casa,
engajavamse no serviço. 0 nascimento de Jesus foi alegre e festivo para os pais
e parentes próximos. A família aumentava e adquiria mais importância na vida social.
A espera do Messias era uma preocupação constante, pois Israel necessitava de
um novo Davi, que crescesse na graça e na fortaleza de Iavé, para expulsar
Edom, o poder impuro dos romanos. Quando uma criança estava para nascer, numa
família ligada à descendência de Davi, a expectativa crescia e as profecias
surgiam de todas as formas. Muitas profecias foram feitas sem dar resultados.
Mas a que se referira a Jesus deu certo: nasceu um menino e não uma menina.
Esse menino podia ser o Messias. Não obstante, não houve sinais no céu nem na
terra, os anjos não voaram sobre a casa dos pais e a neve só se tornou mais
brilhante para os que estavam alegres. Apesar disso a expectativa continuou.
Jesus cresceu na solicitação das esperanças da raça. Para forçar essa
esperança, segundo o princípio mágico da influência da vontade humana sobre os
deuses, todos viam no recém-nascido o futuro Messias. Só o tempo faria que essa
esperança se apagasse, até que outro nascimento se desse em condições
possíveis. Quando o menino começou a brincar naturalmente com os outros da sua
idade, sem que nada demais acontecesse, todos se desinteressaram dele. Daí o
silêncio que se fez a seu respeito, até o momento que, sendo levado ao templo,
para a bênção da virilidade, respondeu com inteligência incomum à sabatina
ritual dos rabinos. Então a esperança renasceu ao seu redor. Talvez fosse ele!
As pessoas não iam além disso. Tinham medo de proferir a palavra Messias. Mas
depois do sucesso no templo, Jesus voltou a trabalhar com o pai na carpintaria
e os rumores cessaram de novo. Os anos correram com as tropelias e as fases de
prolongada rotina. Jesus tornou-se um jovem inteligente e ativo, sonhador, mas
nem por isso revelando sinais messiânicos. Por isso, quando resolveu iniciar o
seu ministério, aquilo para que havia nascido, sua mãe e seus irmãos se
assustaram. O velho José já havia morrido, pois não voltou a aparecer nos
relatos. A inteligência e o senso de responsabilidade do rapaz o indicavam como
o sucessor de José. Mas Jesus começou a falar de outro pai, com o qual tinha
compromissos maiores: o Pai do Céu. Pensaram que ele estava enlouquecendo. Por
isso, Maria e os demais filhos foram buscá-lo e ele se recusou a atendê-los.
Estavam perdidas todas as esperanças. Como tantos alucinados daquele tempo, o
jovem Jesus se transformava num rabino popular, sem ligações com o Templo, sem
nenhuma forma de poder ou recursos em dinheiro que o pudesse levar ao sucesso.
Maria sofria em silêncio as suas angústias. Esperava muito daquele filho, e
agora o via atirado às feras herodianas e ao poder romano. Pressentia a
tragédia, mas esperava no poder de Iavé. Quem sabe se aquilo não passaria logo
e Jesus voltaria aos trabalhos da carpintaria. Como acontecia com todos os que
sonhavam com a expulsão dos romanos ou apenas queriam defender a pureza de
Israel, ameaçada pelos goyim e pelos traidores da nação, Jesus conseguiu
adeptos que acreditavam nos seus poderes secretos. Entre esses, ele escolheu os
que julgou mais capazes de enfrentar a temerária empreitada. E foi então, só
então, que as lendas da sua infância mágica, do seu nascimento miraculoso, da
sua adolescência de sábio precoce, da sua consciência de ser um novo Davi, Rei
dos Judeus e Senhor da Terra Prometida, começaram a formar-se e espalhar-se
entre o povo. Era necessário que ele nascesse em Belém de Judá, na cidade de
Davi, segundo as predições bíblicas. A imaginação popular aproveitou o
recenseamento de Quirino, que só ocorrera dez anos depois do seu nascimento,
para fazer que José e Maria fossem a Belém e o menino nascesse no lugar devido.
Era fácil imaginar que naquela noite de inverno o céu estava mais rutilante,
que os anjos baixaram no horizonte para cantar louvores ao Messias, que os
animais se juntassem em torno do recém-nascido para aquecêlo com o seu bafo,
que os pastores se ajoelhassem comovidos nos campos gelados e que os Reis Magos
de reinos distantes e misteriosos descobrissem no céu a Estrela de Davi e se
apressassem a levar ao Messias os seus presentes simbólicos. A mentalidade
mitológica tem o poder do vegetal: suga da realidade os elementos necessários à
elaboração da seiva e com esta produz flores e frutos. O mito nasce da água ou
da terra, mas projeta-se
nas estrelas. Por
isso diziam os romanos prudentes que não se devia tomar a nuvem por Juno, a
deusa que podia surgir no céu a qualquer momento. Parece-nos incrível que os
homens daquele tempo se deixassem levar por tantas fantasias. Mas acaso os
homens de hoje, na era da Razão, ainda não são capazes de criar e alimentar
mitos? Também o nascimento de Buda foi cercado de fatos maravilhosos, de
incríveis milagres. Mas só depois que ele já havia crescido, casado e
abandonado sua mulher no palácio real para se entregar à busca da Verdade. Este
quadro do nascimento e desenvolvimento de Jesus, inteiramente despido dos
acessórios mitológicos, pode parecer frio e vulgar, sem dados positivos que
possam comprová-lo. Por outro lado, a tradição mitológica, arraigada no
espírito popular e alimentada pelas festas e cerimônias religiosas, fará que muitas
pessoas rejeitem indignadas essa simplicidade. Mas, como lembra Guignebert, os
que pensam que o Cristianismo nasceu e se desenvolveu de maneira diferente das
demais religiões, estão seguramente enganados. As leis que regem os processos
sociais são tão seguras e permanentes como as que regem, segundo queria
Spencer, os nossos processos fisiológicos. No desenvolvimento das instituições
religiosas temos sempre de considerar a presença de dois fatos básicos: a
realidade histórica e a elaboração mítica dessa realidade. Não se trata de um
processo exclusivo das religiões. Em todos os fatos sociais a imaginação se
infiltra, produzindo e desenvolvendo o mito, em maior ou menor escala. No caso
das religiões todas as escalas se rompem, pois a imaginação é estimulada
fortemente pela paixão. As pesquisas históricas sobre as origens do
Cristianismo, passadas pelo rigor do crivo metodológico, em mais de um século
de trabalho, por uma equipe de especialistas universitário, não deixam a menor
dúvida sobre as fantasias piedosas tecidas em torno do nascimento e da vida de
Jesus. Não se trata mais de qualquer dúvida sobre a sua existência histórica,
mas não resta também nenhuma possibilidade de se admitir como reais as lendas
criadas a seu respeito. Os documentos, os costumes, as tradições do povo,
muitas delas conservadas até hoje no meio judaico, constituem o acervo de
provas que permitem a reconstrução dos fatos em sua simplicidade verdadeira,
pois só a realidade é simples no plano histórico, negando a complexidade imaginosa
dos mitos. Quem não dispõe de mentalidade positiva, preferindo embalar-se nos
sonhos, deve ficar com a visão mitológica de seu agrado, mas convém ao menos
compreender que fez uma escolha temerária, pois a fantasia se desfaz
inexoravelmente no tempo. O Cristianismo, que pelo poder do seu conteúdo moral
e espiritual, já podia nos ter dado um mundo melhor, foi frustrado na sua
intenção pelo apego dos homens ao maravilhoso, ao fantástico, e pela
indiferença preguiçosa dos comodistas, que só pensaram em se acomodar e tirar
proveito das situações criadas. Jesus não foi um alucinado, como o diagnosticou
Binét Sanglé, nem um Deus, como querem ainda hoje os religiosos ingênuos, mas
um homem, encarnação de um espírito superior, que se encarnou num momento
decisivo da evolução humana, a fim de dar a sua contribuição para o progresso
da Terra. Ele mesmo insistiu sempre em sua condição humana, chegando mesmo a
comparar-se com os demais e a afirmar que qualquer um poderia fazer o que ele
fazia. Por isso foi preso e morto pelos dominadores da época, que se sentiam
ameaçados pela verdade que ele ensinava. E depois de morto, segundo os
processos de execução do tempo, renasceu em espírito como todos nós renascemos
após a morte. Esta redução fenomenológica da figura sagrada do Cristo pode
parecer exagerada. Algo diferente devia caracterizá-lo, para que ele pudesse
impor-se como se impôs num meio discutidor como o judaico. Claro que existia,
mas não no sentido sobrenatural. Jesus se impunha pela superioridade moral e
intelectual, pela sua presença irradiante de amor e simpatia para com todos,
pelo seu espírito compreensivo, pela sua personalidade espiritual transbordante
de bondade. Mas também pela sua firmeza e energia, pela coragem de enfrentar
todas as situações, por mais difíceis que fossem, pela sua franqueza na repulsa
ao mal e a sua posição definida em todas as questões. Dispunha de dons
espirituais que lhe permitiam curar, prever o futuro, libertar as vítimas de
obsessões, como fazem hoje os médiuns suficientemente moralizados. Todo esse
conjunto de qualidades superiores está hoje provado pelas pesquisas
psicológicas e parapsicológicas. Mas o que mais impressionava ao povo e às
autoridades do tempo era a sua disposição para o sacrifício, a ausência de medo
diante do perigo. Pode-se alegar, contra isso, o seu pedido no Horto para que o
cálice da amargura fosse passado além. Mas esse episódio é também marcado pela
presença de elementos míticos e aparece interpretado de maneiras diversas pelos
exegetas. O seu brado final na cruz: "Meu Deus, porque me
desamparastes?" revela a sua condição humana na hora da agonia, quando as
forças do corpo falecem e o espírito fraqueja. Ele se mantinha nessa condição,
negando-se a diferenciar-se dos outros, da espécie humana a que se ligara. Ainda
nesse episódio os elementos míticos, como o rasgar do véu do Templo, o
escurecer do céu, o tremor da terra e assim por diante. É principalmente nesses
momentos agudos da sua vida e da sua paixão que o colorido emocional do mito se
manifesta, tirando-lhe a naturalidade e a grandeza. Sim, a grandeza, porque
esta não está no mito, mas no homem.
As relações de
Jesus com Deus, o Pai, se passam na intimidade de sua alma e não dos rituais do
Templo ou de fórmulas exclusivas. Ensina aos discípulos a se dirigirem a Deus
com a sua mesma simplicidade e naturalidade, com as expressões simples e
humanas do Pai Nosso. Não usa vestes sacramentais, usando apenas a túnica e as
sandálias. Não fala ao homem corpóreo, mas à alma do homem, tocando-lhe os
sente-mentos mais profundos. Chama-se ao mesmo tempo Filho de Deus e Filho do
Homem, pois essa é a condição humana de todos nós. Não se coloca de
intermediário único do homem com Deus — elemento mítico que a Igreja acentua
como ponto central da Revelação nos Evangelhos sinópticos — pois ensina os
homens a se dirigirem diretamente a Deus. E quando exclama que ele é o caminho,
a verdade e a vida, é para afastar os homens dos caminhos traiçoeiros da
hipocrisia farisaica, e indicar-lhes o caminho seguro dos seus ensinos
renovadores. Havia uma oposição clara entre ele (que não ensinava o que era
dele, mas o que recebera do Pai) e os fariseus, que ensinavam o que não haviam
entendido. Era preciso mostrar claramente que os ensinos do Templo estavam
superados e deviam ser substituídos pela Boa Nova que ele trouxera à Terra. Sua
posição era declaradamente reformista. A velha religião judaica havia perdido o
seu conteúdo espiritual. Transformara-se numa instituição política e comercial.
Os fariseus dominavam Israel, ligados aos romanos invasores. O culto externo se
refinara e multiplicara as suas exigências para os fiéis, obrigando-os a
pesados sacrifícios, tanto para o cumprimento das obrigações rituais, quanto
para a onerosa contribuição em dinheiro que, pelas mais variadas formas, deviam
pagar aos cofres do Templo, além dos tributos cobrados rigorosamente pelas
autoridades romanas. Como Jesus, enfrentou o problema da dominação estrangeira?
O episódio da moeda parece colocá-lo numa posição neutra até mesmo
comprometedora: "Dai a César o que é de César e a Deus o que é de
Deus". Uma fórmula tipicamente oriental, acomodatícia e protelatória. Mas
a situação estava demasiadamente tensa e perigosa. Os rebeldes judeus eram
poucos e não dispunham de armas nem de técnica para enfrentar as guarnições
romanas fortemente armadas e treinadas. A revolta de Judas Galonita havia sido
profundamente desastrosa. Os rebeldes que não morreram na luta foram
crucificados ao longo das estradas principais e ali deixados expostos para
escarmento do povo. Naquele momento, os que se recusavam a pagar o tributo eram
castigados ou mortos pelos romanos, com auxílio das próprias autoridades
judaicas aliadas aos invasores. Era sabido que Jesus se voltara contra o Templo
e os rebeldes procuravam o seu apoio. Se ele tomasse uma atitude política
favorável aos rebeldes, a sua fama messiânica precipitaria mais um massacre
romano sem nenhum proveito, servindo apenas para cobrir Israel de mais sangue e
maior desespero. A sua própria autoridade moral desapareceria, pois esperavam dele
a libertação de Israel pelo mágico poder messiânico. Seu anseio de libertação
não era patriótico, era humano e universalista. Sua resposta segura e sensata
liquidou a questão e lhe permitiu a continuidade da sua obra redentora. Se
Jesus fosse o louco da diagnose tardia de Biné Sanglé, em seu livro La Folie de
Jesus (A Loucura de Jesus) teria naquele momento precipitado uma das sangrentas
tragédias coletivas da História, sem nenhum resultado benéfico. O episódio da
moeda romana esclarece a posição de Jesus diante do mundo. Ele enfrentava os
problemas do mundo como um homem do seu tempo, mas dotado de visão mais
profunda e mais ampla que os demais. Era um judeu integrado na raça, engajado
na luta pelos direitos do povo, contra o sacerdócio traidor e os potentados
traidores, mas não limitava a sua visão à Judéia, abrangia nela todos os povos
e todas as raças da Terra. Seu objetivo era a libertação do Homem, não dos
homens desta ou daquela nação, desta ou daquela raça. Por isso falava às almas
encarnadas, despertando-as na carne, e não às encarnações de almas que em geral
se perdiam na atração dos interesses imediatistas da vida material. Difícil
posição, que exige um equilíbrio perfeito do espírito, um senso agudo da
realidade imediata em sua relação dinâmica, não raro contraditória, com a
realidade absoluta. No episódio da moeda, Jesus agiu com decisão instantânea,
numa intuição total das implicações do problema que lhe propunham. Sua resposta
foi um golpe de asa, ligando o Céu e a Terra, o problema humano ao problema
espiritual, para lhe dar a única solução possível. Até hoje a maioria não
percebe a grandeza daquela resposta, que fez silenciar a malícia dos
interpelantes. Vêem nela somente o que nela não existiu: a manobra astuciosa
para safar-se de uma dificuldade. E isso nos dá a medida da nossa evolução
terrena. O episódio da mulher adúltera que ia ser lapidada nos mostra outro
ângulo da posição de Jesus diante do mundo. Jesus não discute com os guardiães
pretensiosos da moral social. Não perde tempo em argumentar com aqueles
fanáticos palra-dores, viciados em sofismas e jogos de palavras. Permite a
lapidação da infeliz. mas com uma condição: "Quem estiver sem pecado,
atire a primeira pedra". Não se dirigiu à mente daqueles homens ligados
aos problemas mundanos. Propôs-lhes uma questão de consciência, falou-lhes às
consciência e portanto à alma de cada um. E com isso bloqueou o fluxo da
loucura coletiva, do sadismo e da brutalidade prestes a explodir. Os braços
desceram, as mãos se abriram e as pedras caíram no alvo natural: o chão. Dizem
que hoje o efeito seria o contrário, pela
inconsciência
dominante. Mas naquele tempo a situação consciencial não era melhor. O que hoje
falta é quem saiba falar às almas e não aos homens. Então Jesus se dirige à
mulher: "Ninguém te condenou, eu também não te condeno. Vai, e não peques
mais". Ninguém nos diz o que aconteceu após isso. Mas é evidente que Jesus
preparara as condições necessárias, com todo o impacto daquele momento, para
falar também à alma emocionada da pobre mulher. O problema sexual, por sua
própria gravidade, fundado nas bases da vida e envolto nas mais profundas
aspirações da alma, tornou-se para o homem comum o campo preferido dos seus
desabafos contra a pressão social e do livre exercício da sua prepotência.
Mata-se na defesa da honra ou por amor com a maior facilidade. Porque todos
justificam esses crimes, pois todos têm a sua culpa no cartório e desejam
descarregá-la no próximo. A mulher lapidada seria a vítima das culpas
recalcadas dos lapidadores. Jesus fez o contrário: tocou nas culpas de cada um
e desarmou-os a todos, porque todos sentiram que eram irmãos e comparsas
daquela pecadora que desejavam massacrar ao invés de ajuidar. Sua posição nesse
caso confirma-se na atenção a Madalena, aceitando a sua unção (que os judeus
considerava impura) e integrando-a no seu grupo de auxiliares. E foi ainda mais
longe, aparecendo a ela em primeiro lugar após a ressurreição. Como se
confirmava espiritualmente o acerto de sua posição terrena em face do problema,
para que não restassem dúvidas entre os discípulos. Que terrível contraste nos
oferece o Cristianismo Oficial, em relação ao Cristo, nesse problema. A
sexualidade (não apenas o sexo) é considerada fonte de pecado e todas as suas
exigências devem ser sufocadas pelos cristãos. Essas exigências não se referem
apenas ao ato sexual (do qual nascemos) mas ao simples desejo que abre portas
ao Diabo e ao próprio sentimento de amor que atrai as criaturas e lhes desperta
o anseio de unidade afetiva, de fusão de almas para a realização recíproca dos
objetivos da vida. O celibato sacerdotal, a clausura das freiras, os cilícios
aviltantes, a deformação das adolescentes nos conventos através de instrumentos
medievais para impedir o desenvolvimento normal dos seios, a obrigação de
tomarem banho com roupas, sem se desnudarem, para que não se perturbem com a
própria nudez e o Diabo não as tente ao vê-Ias nuas, são apenas alguns dos
frutos bastardos dessa contradição ao Cristo. E tudo isso em nome do Cristo e
da sua Doutrina redentora. O Cristianismo, que veio dar ao homem vida em
abundância, transforma-se em repressor brutal e ignorante das manifestações da
vida. O Cristo, que falava de beleza e da perfeição, passou a patrocinar os
processos da deformação humana, no corpo e no espírito. Os chineses diminuíam
os pés das mulheres para embelezá-las, os cristãos deformam os seios das
adolescentes, atrofiando-os com a tortura de instrumentos medievais,
deformando-lhes a mente com o temor constante do Diabo, enfeiando-as. O
Cristianismo do Cristo era um defensor da mulher, exaltava-lhe a beleza e a
ternura, estimulava a sua pureza espiritual, integrava-a nos próprios trabalhos
messiânicos, perdoava-lhe os erros e louvava a sua capacidade de amar. Madalena
foi perdoada porque muito amara. O Cristianismo Oficial vestiu s mulheres de
pesadas vestes negras, tirou-lhes o viço e a beleza, condenou os impulsos
amorosos, fanou-as nos recessos dos conventos e muitas vezes as transformou em
criaturas hipócritas e rancorosas. Muitas freiras voltaram da morte para gemer
junto ao leito das companheiras e contar-lhes os segredos do Purgatório, onde
julgavam estar, submetidas às torturas da consciência culpada. É o que se vê,
por exemplo, no livro O Manuscrito do Purgatório, publicado na Espanha com
todas as licenças eclesiásticas e traduzido e publicado no Brasil, por Edições
Paulinas, de Petrópolis, na tradução do Padre Júlio Maria, também com todas as
licenças das autoridades eclesiásticas brasileiras. O caso de Zaqueu revela-nos
outro ângulo da posição do Cristo diante do mundo. O pequenino e detestado
publicano, ladrão contumaz, sobe numa árvore para ver Jesus passar na rua, no
meio da multidão. Jesus poderia ter passado indiferente, como se não visse o
publicano. Mas, ao invés disso, pára sob a árvore e permite que o leve à sua
casa, pois quer hospedar-se com ele. Quantos murmúrios teriam havido, quantos
mexericos na multidão, quantos olhos arregalados de espanto. O Messias
hospedar-se na casa de um publicano, talvez do pior deles! Zaqueu se comove com
aquela honra inesperada. Promete devolver à pobreza a metade da fortuna
acumulada com os seus roubos. Zaqueu se convertia, não a esta ou àquela
religião, mas ao bem, à dignidade humana. Quem conheceria a mecânica social que
através de pressões sucessivas, teria levado Zaqueu ao caminho do roubo? Jesus
não o condenou, premiou-o. Mas esse prêmio tocou a consciência do publicano e
ele se afastou do erro. O que interessava a Jesus não era a condenação, mas a
salvação. A culpa de Zaqueu não era só dele, era também e principalmente da
sociedade hipócrita e gananciosa em que vivia, daqueles que o forçaram a roubar
para não perecer sem pelo menos a defesa do dinheiro, daqueles que o isolaram
no aviltamento de si mesmo, que lhe negaram até mesmo a convivência do seu povo
e o impediram de recorrer ao socorro e ao amparo da sua própria religião. Jesus
não se interessava pela opinião dos Doutores do Templo, cujas mãos não estavam
manchadas apenas pelos atos de rapina, mas também pela traição ao povo, à
nação, às leis de pureza que fingiam sustentar. No caso da mulher samaritana e
do bom samaritano, essa posição de Jesus se confirma na rejeição do sectarismo,
do orgulho religioso,
da pretensão
hipócrita de pureza. Não se precisa aprofundar mais na relação dos fatos
significativos da vida de Jesus. Bastam esses fatos para vermos que o chamado
Cristianismo Oficial, como disse Stanley Jones, está mais distante do Cristo do
que o chamado Cristianismo marginal dos nossos dias. A marginalidade, no caso,
é determinada pelos que se apossaram indevidamente das fontes do ensino do
Cristo e sobre elas construiram edifícios que, como os cenotáfios dos profetas,
grandiosos por fora mas vazios por dentro, pois nem sequer os restos mortais do
homenageado se encontram no silêncio abismal do seu interior. Jesus de Nazaré
não é filho unigênito nem primogênito de Deus, cuja paternidade não decorre de
gerações biológicas. É um filho de Deus como todos nós, com a diferença apenas
do seu grau de evolução, que é muito mais do que podemos supor. Espírito que
evoluiu em mundos anteriores à Terra, subindo ao plano das constelações dos
mundos superiores, voltou aos planos inferiores por um impulso de amor, para
nos dar na Terra a possibilidade de avançarmos também, como ele, na direção das
estrelas. Por amor entregou-se ao sacrifício de mergulhar na carne, sofrendo
todas as conseqüências dessa decisão consciente, a fim de nos arrancar do
tremedal das idéias rasteiras e do círculo vicioso das encarnações repetitivas.
Sua glória não é a de haver morrido na cruz, entre o bom e o mau ladrão que
representam a nossa humanidade, mas a de haver ressuscitado para nos provar que
todos ressuscitaremos.
VIII - A
DESFIGURAÇÃO DO CRISTO
A Transfiguração
no Tabor, a Ressurreição, o momento que acompanhou os discípulos no caminho do
Emaús e a sua ascensão em Betânia, são episódios que causaram entusiasmo entre
os mitólogos, naturalmente interessados em provar que Jesus de Nazaré era
simplesmente um mito. A sensação de realidade que possuímos da nossa própria
integridade física, o hábito de nos apoiarmos na realidade perceptível como
garantia da veracidade da nossa própria existência e a ilusão da constância de
nossa forma física, levam-nos a considerar o que se apresenta como instável e
mutante na condição de simples ilusão. A fantasia, o sonho, o mito, nada mais
são do que elementos imaginários que se inserem fugazmente no duro mundo
concreto da existência. Não obstante, sabemos que a existência, segundo a
definição das Filosofias Existenciais da atualidade, é puramente subjetiva. Nós
mesmos, nesse caso, somos irrealidades ideais que nos inserimos furtivamente na
realidade objetiva. As metamorfoses de Jesus não diferem daquelas porque
passamos em nossa própria vida. Na Ressurreição, Madalena não reconhece de
imediato a presença de Jesus e o confunde com o jardineiro. Tomé recusa-se a
aceitar a veracidade das manifestações do Senhor no Cenáculo das reuniões
apostólicas e só se convence ao tocar as chagas da crucificação. Os discípulos
de Emaús só reconhecem o Mestre, que para eles estava morto, no ato de partir o
pão, quando ele se identifica pelos gestos e a atitude. O mesmo acontecerá com
os discípulos a caminho da Galiléia. Mas a ascensão em Betânia mostra-se tão
carregada de elementos míticos, que só hoje pode ser encarada como parcialmente
verídica, graças ao conceito de paranormalidade e às novas leis descobertas no
campo da fenomenologia de ordem física. Sem o conceito atual do
corpo-bioplásmico, que confirma a tese cristã do corpo espiritual e a
descoberta espírita do perispírito, no século passado, não poderiamos admitir o
episódio da ascensão em termos de realidade visível. Também no episódio do
Tabor, com a presença de Elias e Moisés ao lado de Jesus, tudo não passaria de
uma alucinação mística de natureza estritamente simbólica. Mas as pesquisas
metapsíquicas e parapsicológicas do nosso tempo revalidam a realidade do
episódio, sem com isso negar a presença, no mesmo, de elementos míticos
decorrentes de funções dos arquétipos do inconsciente. Ao lado desses episódios,
que têm hoje o apoio das novas descobertas científicas, aparecem outros que se
caracterizam como inapelavelmente mitológicos. Guignebert, que considera o
episódio da Paixão como tipicamente histórico, bem enquadrado na realidade do
tempo, repele a interpretação do mesmo pelos gnósticos-docetas, no primeiro
século. Segundo estes, a estranha figura de Simão Cireneu, que chega do campo e
ajuda Jesus a carregar a cruz até o Calvário toma as feições e o aspecto geral
de Jesus, enquanto este se revestia de todo o aspecto do camponês piedoso.
Dessa maneira, chegando ao Monte das Oliveiras, os soldados incumbidos da
execução crucificaram o Cireneu em lugar de Jesus, que tranqüilamente deixou a
sua imagem na cruz e se retirou para surpreender os seus após-tolos e
discípulos com a sua pretensa ressurreição. Os docetas sustentavam que Jesus
não tinha realidade física, que o seu corpo era apenas aparente. Sua posição
contrariava as teses da encarnação do Cristo, apresentando-o como uma espécie
de deus mitológico, sob a influência das idéias helenísticas. O Docetismo
exerceu grande influência em Alexandria, propagando-se a Éfeso, onde o Apóstolo
João instalara a sua Escola Cristã. João refutou a tese doceta como herética,
pois além de não corresponder à realidade histórica, transformava o Cristo num
falsário. Renan conta um curioso episódio em que João se dirige com seus
discípulos ao balneário público de Êfeso, e ali chegando volta com os
discípulos, dizendo-lhes: "O balneário vai cair, pois lá se encontra Cerinto,
o maior dos mentirosos". Cerinto era um dos introdutores do Docetismo em
Êfeso. Essa teoria absurda reapareceu na França, através de uma obra confusa e
carregada de pesado misticismo ridicularizante. Um advogado de Bordeaux, Jean
Baptiste Roustaing, elaborou essa obra através de comunicações mediúnicas
atribuídas a Moisés, João Batista, os Apóstolos e os Evangelistas. Um grupo
místico do Rio de Janeiro adotou com entusiasmo essa obra, conseguindo
apossar-se da Federação Espírita Brasileira, e até hoje a propaga e sustenta,
contra a maioria das instituições espíritas do Brasil e do mundo. É
inacreditável o fanatismo dos roustainguistas, o que se justifica pela sua
mentalidade anti-racional, apegada aos resíduos do passado mágico e mitológico,
portanto contrária à posição racional do Cristianismo e do Espiritismo. Esses
defensores do absurdo chegam ao cúmulo de citar a obra mistificadora, Os Quatro
Evangelhos, como uma das dez obras mais importantes da literatura mundial, e
Roustaing, como uma das dez maiores figuras da Humanidade. Kardec condenou essa
obra, o que provocou um revide de Roustaing. Ao episódio do Tabor, cujo relato
evangélico apresenta todas as condições de um fenômeno paranormal, inclusive
com atitude dos apóstolos, que sugere a doação de energias ectoplásmicas para a
aparição de Elias
e Moisés, a fábula dos docetas (como o Apóstolo Paulo a classificou)
apresenta-se como uma das mais estranhas desfigurações do Cristo. Essas
desfigurações forneceram elementos ricos e valiosos aos mitólogos para negarem
a existência real e histórica de Jesus de Nazaré, como o fizeram Artur Drews e
Georges Brandis, entre outros. Nas reuniões dos cristãos primitivos, logo após
a morte de Jesus, o chamado culto pneumático era constantemente tumultuado
pelas manifestações de espíritos turbulentos e grosseiros, que diziam pesados
palavrões contra o Messias. O Apóstolo Paulo nos oferece o modelo de um culto
pneumático no capítulo intitulado Sobre os Dons Espirituais, em sua I Epístola
aos Coríntios. O nome do culto era derivado da palavra grega pneuma, que
significa espírito e sopro. Paulo aconselha ordem rigorosa no culto, falando
cada profeta por sua vez e permanecendo os outros em oração, precisamente para
evitar a interferência de manifestações agressivas. O profeta era o que hoje
chamamos médiuns, os intermediários entre os espíritos e os homens. Como haviam
muitas comunicações em línguas estranhas, como as ocorridas no Pentecoste,
Paulo recomenda que ninguém aceitasse comunicações em língua que ninguém da
mesa conhecesse, pois, sem poder traduzílas, a manifestação não serviria para
ninguém. Esses cuidados permanecem no Espiritismo, e muitas sessões mediúnicas
seguem a orientação paulina. Não obstante, a situação hoje é diferente, pois a
mediunidade, profundamente estudada e pesquisada, em todo o mundo, pode agora
ser melhor controlada. As sessões mais proveitosas e produtivas são aquelas em
que há maior liberdade, proporcionando o diálogo entre espíritos comunicantes,
para maior elucidação dos problemas em causa. Vários doutrinadores entram em
ação, de maneira que os médiuns presentes são melhor aproveitados. Ainda hoje
aparecem, em menor número e com menos violência, espíritos agressivos que
repelem o Cristo. Esse fato é importante porque mostra a continuidade do culto
pneumático e a insistência dos espíritos inferiores na desfiguração do Cristo,
que chegam a chamar ainda de embusteiro. São esses os espíritos da mentira, em
oposição aos espíritos da Verdade, que procuram esclarecer e orientar as
entidades malfeitoras. O interesse em desfigurar o Cristo vem dos planos
inferiores do mundo espiritual e se manifestam de várias formas: pelas
comunicações mediúnicas inferiores, pelas intuições dadas a adeptos do
Cristianismo e do Espiritismo para introduzirem teorias e práticas ridicularizantes
no meio doutrinário, sempre atribuindo a Jesus posições, palavras e atitudes
que o coloquem em situação crítica pelas pessoas de bom senso. Para isso, as
entidades mistificadoras se aproveitam da ignorância e da vaidade de criaturas
desprevenidas, da auto-suficiência de criaturas autoritárias e arrogantes, que
facilmente se deixam levar por elogios e posições lisonjeiras que podem
exaltá-las na instituição a que pertencem. A gigantesca luta empreendida pelo
Apóstolo Paulo, após a sua conversão, para preservar a pureza dos ensinos de
Jesus e da sua excelsa figura, em meio aos próprios apóstolos do Mestre, revela
de maneira eloqüente, a dificuldade dos homens para compreenderem a Verdade
Cristã. Os apóstolos judaizantes, como ele os chamou, e entre os quais se
encontrava o próprio Simão Pedro, pode nos dar a idéia do que realmente se
passa nesse caso, para não cairmos também em interpretações místicas de uma
situação natural, proveniente da falibilidade humana. Não se trata de nenhum
mistério, de uma potência satânica a espreitar-nos nas trevas, de um Reino do
Diabo a combater o Reino de Deus, de uma figura assustadora do Anti-Cristo a
lutar contra o Cristo. O próprio episódio evangélico da tentação de Jesus no
deserto, pelo Diabo em pessoa, revela-nos o seu sentido alegórico no fato
incontestável de que a tentação era provocada em Jesus por insinuações
lisonjeiras. A condição humana de que ele se investira, para viver entre os
homens e falar-lhes como homem, o sujeitava naturalmente à fascinação das
ilusões terrenas. Jesus meditava sobre a missão difícil que ia realizar, cheia
de perigos evidentes, e na meditação se infiltravam naturalmente as opções da
fuga. Em todas as grandes religiões encontramos figuras diversas dessa luta, em
que o espírito superior enfrenta as solicitações do plano inferior e precisa
vencê-las para não fracassar nas batalhas que vai travar. Na História de Buda,
surge a alegoria das tentações no momento em que ele se senta sob a árvore da
meditação. No Islamismo temos o exemplo do que pode acontecer ao espírito que
se deixa vencer. A guerra incruenta do espírito para ajudar o homem a
elevar-se, transforma-se no domínio absoluto da espada e do alfange,
desencadeando a terrível guerra do Islã, em que o Cristianismo, de cujas entranhas
nasceu o Islamismo, se converte no inimigo a ser derrotado pela força das
armas. Cada forma de vida tem as suas leis, constitui-se de um vasto e profundo
sistema de ações e reações, causas e efeitos que formam a teia de aranha em que
a própria aranha se enrosca para poder viver. Essa teia pode ser definida como
um campo estruturado de forças a que o espírito se imanta e ali permanece
subjugado pelas forças gravitacionais do campo. A lei de inércia, que mantém a
estabilidade das coisas e dos seres, no processo de conservação, tange na pedra
que repousa no chão, quanto no espírito que repousa em seu próprio modo de ser.
Essa lei não é má nem diabólica, é natural e faz parte do processo evolutivo.
Mas a mente humana, com sua tendência antropomórfica, reveste os seus efeitos
de características humanas. O mito do Diabo não é mais do que uma forma do
antropomorfismo
que se infiltra em todas as nossas fases de transição para planos superiores do
espírito. Por isso, Jesus preceituou: "Vigiai e orai". A vigilância
se exerce primeiro em nós mesmos, em nosso íntimo, e a seguir na relação
social. Depois do episódio da estrada de Damasco, Paulo recolheuse à meditação
no deserto para reestruturar a sua situação espiritual, profundamente abalada
pelo terremoto psíquico e emocional do encontro com Cristo. Só então poderia
voltar à ação, às atividades do seu apostolado, que o Cristo transformara de
judeu a cristão. Muitas vezes sentiria ainda os impulsos anteriores influindo
na sua nova conduta. Muito teria de lutar para não cair de novo no campo
estruturado e sempre ativo dos seus condicionamentos. É que enfrentou fracassos
não há dúvidas pois ele mesmo clamou. "Miserável homem sou, que não faço o
bem que quero, mas o mal que não quero!" Tinha um espinho na carne,
segundo declarava, e um espinho inquietante que os outros viam e comentavam.
Mas a sua intenção firme de vencer, a sua convicção da realidade espiritual do
Cristo e a sua vontade em permanente tensão o levariam à vitória sobre o Diabo,
sobre as forças retrógradas em atividade no seu íntimo. Venceu galhardamente no
tocante a si mesmo, na batalha interna. Mas no campo das atividades externas,
não conseguiu livrar-se de condicionamentos judaicos enraizados, que o levaram
a tomar uma posição negativa no tocante às mulheres (sempre mantidas na área da
submissão escravagista) e no tocante à Doutrina cristã, que enredou na
sistemática da Igreja, tendo mesmo fundado a Igreja Cristã independente em
Antióquia, com sua incipiente hierarquia sacerdotal. Não conseguiu perceber o
sentido profundo da renovação cristã, o significado interior da liberdade em
Cristo, e nem foi ele — nem Jesus, nem Pedro — o fundador da religião que
deformaria totalmente o Cristianismo do Cristo. Claro que a instrução de Paulo
não era essa. Ele sonhava com um Cristianismo puro, severo, bem estruturado,
com a disciplina judaica do Tempo, sustentando a Verdade cristã num mundo
indisciplinado que devia organizar-se na ordem da moral cristã. Seu erro foi
justamente esse. Jesus de Nazaré nunca mostrara interesse pela pompa e a
disciplina fria do Templo. Como afirma Guignebert, ele não queria fundar
nenhuma religião e nenhuma Igreja. Jesus falava às almas, não aos robôs das
instituições sociais. Não pretendia organizar exércitos poderosos para Iavé,
que já perdera os seus para o furioso Júpiter Capitolino. Não queria tropas ao
seu serviço, mas rebanhos pastando nos campos ao alvorecer. Queria a terra
florida com a germinação das suas palavras. O Cristianismo não surgia como
religião formal, mas como a pura essência da Verdade. Um movimento de almas,
não de corpos materiais animalizados e atrelados ao carro dos poderosos. Paulo,
que se formara na disciplina farisaica, não podia compreender esse anarquismo
do espírito, que antes lhe parecia vagabundagem, indisciplina, sonho
irrealizável de um poeta inspirado nas utopias platônicas. Não lhe passaria
pela mente dizer isso de Cristo. Assim, Cristo só poderia desejar a
estruturação de uma Igreja forte e poderosa, insuflada pelo sopro do espírito
messiânico. A fracassada tentativa dos Apóstolos, com o velho Pedro à frente,
de organizar a comunidade descrita no Livro de Atos, comprovada isso de maneira
absoluta. Paulo quis e fundou a Igreja em Antióquia, mas os romanos deram a
cadeira que lhe pertencia ao velho Pedro. Era muito importante, naquele tempo,
falar em Cristo Crucificado, porque essa imagem chocante mostrava Jesus como
vítima da maldade humana, particularmente dos poderosos da Terra. A simples
menção desse nome, despertava a lembrança do conluio judeu-romano para esmagar
as esperanças de Israel. Hoje essa expressão soa falsa, pois o Cristo
desfigurado aparece também como Rei, como um mito grego, como uma divindade da
magia primitiva, que sacerdotes paramentados podem obrigar a se transubstanciar
nas espécies materiais de uma forma sacramental. Hoje, além disso, o Cristo
Crucificado aparece como instrumento dócil de demagogia política, símbolo de
perseguições religiosas, de fogueiras assassinas, de guerras violentas, de
mentiras interesseiras pregadas ao povo através de dois milênios de incessante
deformação de sua figura humana e de sua doutrina de justiça e amor. Hoje só
existe um símbolo para o Cristo: o da Ressurreição. Provada cientificamente a
existência do corpo espiritual, provada a continuidade da vida triunfante após
a morte, provada a herança de Deus na imensidade do Cosmos povoado de mundos,
provada a ineficácia das instituições religiosas e seus métodos para levar os
homens a Deus, pois que a maioria se afastou de Deus e o considera como
superstição estúpida, só a figura do Cristo Ressuscitado, triunfando sobre a
veleidade dos poderes terrenos e confirmando em si mesmo a verdade dos seus
ensinos, poderá libertar as consciências do apêgo às coisas perecíveis,
dando-lhes a confiança no poder superior do- espírito. Se somos espíritos e não
apenas um corpo material, e se temos a certeza de que o Cristo continua vivo e
a nos inspirar em nossas lutas no caminho do bem, por que cultivarmos a morte e
até mesmo as imagens de um cadáver que não foi encontrado no túmulo? A
desfiguração do Cristo atingiu o máximo nessas imagens frias que dormem o ano
inteiro nas
criptas das
Igrejas, à espera do seu enterro anual, com luto, chôro e velas acesas. O
sadismo humano se revela num automatismo conscencial que o perpetua nas
gerações sucessivas. Chegou o momento de compreendermos que o Cristo está
diante de nós, na plenitude de sua vida e seu poder, procurando despertar-nos
do pesadelo da morte.
IX - OS
MANDATÁRIOS DE DEUS
Suprimido o culto
pneumático do Cristianismo primitivo, quando as entidades espirituais se
comunicavam com os após-tolos e discípulos de Jesus através da mediunidade,
interrompeu-se o intercâmbio cristão entre os espíritos e os homens. Jesus
terminara sua missão e retornara ao mundo espiritual. A Casa do Caminho, em
Jerusalém, que era ao mesmo tempo um centro de devoção religiosa de assistência
aos pobres, modificara-se sob a influência de Tiago, que se apegava
fanaticamente aos princípios judaicos. Expandia-se o movimento cristão pelo
mundo como a rede da parábola, colhendo em suas malhas peixes de todas as
procedências. Com isso, práticas judaicas e pagãs infiltravam-se no meio
cristão, desfigurando-o. O culto cristão se enriquecia com falsas pedrarias e se
empobrecia espiritualmente. Os fenômenos mediúnicos eram asfixiados pelo afluxo
de elementos que se deixavam fascinar por teorias e práticas de revivecência
mágica. No quarto século, as antigas igrejas cristãs já adotavam as aras pagãs
em forma de altares em que os ídolos surgiam, adaptados pelos cristãos
desviados do Cristo. Argumentava-se: "Se os sacerdotes dos deuses falsos
dispunham de templos suntuosos e vestiam roupagens e paramentos de explendente
riqueza, como admitir-se que o culto do Deus verdadeiro continuasse obscuro e
pobre? A tentação da riqueza, do esplendor fictício, das investiduras divinas,
da hierarquia sacerdotal liquidava as últimas esperanças da sobrevivência da
humildade primitiva. As ligações políticas lançaram a última pá de terra nas
esperanças mortas. O Cristianismo fora absorvido pelo mundanismo. Criou-se
então uma situação difícil para os cristãos. O judaismo apoiava-se na tradição
das manifestações mediúnicas de Iavé, que validavam as investiduras dos
mandatários de Deus. As Igrejas pagãs estavam em relação direta com os seus
deuses, através dos oráculos e das pitonisas. Mas a Igreja cristã perdera o fio
de Ariadne das comunicações espirituais e caíra nas garras do Minotauro. Quem
poderia validar as investiduras divinas? Criaram-se então os concílios, em que
se pressupunha a inspiração de Deus para as conclusões de intermináveis
debates. Não obstante, era evidente a presença de mandatários da política
mundana forçando a vitória dos seus pontos de vista, das decisões de interesse dos
mandatários políticos. Essa situação se definia com a crescente multiplicação
de compromissos mútuos, que tanto interessavam aos Reinos da Terra como ao
Reino do Céu. Mas era evidente que o Reino de Deus, anunciado por Jesus,
desaparecia do horizonte terreno. Essa curiosa situação só poderia resultar na
estrutura política, religiosa e social dos três Estados que a Revolução
francesa teria de abalar logo mais, instituindo o terror como resposta
histórica à Inquisição e levando Robespierre à Catedral de Notre Dame, para ali
assistir à entronização da bailarina Candeille, no altar de Nossa Senhora. A
Religião da Razão, fundada por Chaumette, não precisava de validade divina para
as suas investiduras, que se fariam em nome da Razão. Depois disso, viria Augusto
Comte com a, Religião da Humanidade. Os homens destronavam Deus e esqueciam o
Messias judeu que tivera a fraqueza de entregar-se aos romanos para ser
crucificado. Mas antes que isso se tornasse uma realidade, os mandatários de
Deus, no Cristianismo entranhado na carne do mundo, já teriam conseguido uma
fórmula mágica de legitimidade das ordenações da Igreja, através das
procurações simbólicas que vinham do Apóstolo Pedro até os Bispos de Roma. Deus
não falava mais diretamente aos seus servos, pois lhe haviam cassado a palavra
na boca dos profetas, nem falaria de maneira indireta, através de seus
mensageiros, os anjos, segundo a expressão de Paulo, porque o culto pneumático
fora proibido e convertido em manifestações secretas, privativas das cúpulas
hierárquicas. Essa situação histórica, que permanece até hoje, mantém o chamado
Cristianismo oficial na condição de estranha e única religião do mundo, que não
dispõe de meios espirituais para validar os seus mandatos divinos. Cortada a
ligação natural com o Céu, consideradas as manifestações espirituais como
diabólicas, condenados os que a recebem ou nelas crêem, o Cristianismo se
tornou autosuficiente, como árvore transplantada definitivamente para a Terra,
onde mergulhou as suas raízes, antes divinas, mas agora humanas e terrenas.
Todos os processos de avaliação da legitimidade de um milagre, de uma profecia,
de uma manifestação pneumática, decorrem e dependem de sistemas puramente
humanos, em que Deus é submetido ao julgamento dos homens investidos de prerrogativas
terrenas. Duas são as linhas da autoridade cristã: a infalibilidade e
intangibilidade das Escrituras Judáicas (embora essas escrituras sofram
constantes modificações feitas pelos homens) e o critério das cúpulas
hierárquicas da Igreja. Fora disso, podem os anjos tocar as suas velhas
trombetas, que não serão ouvidos nem emocionarão ninguém. Esse o resultado
estranhíssimo dos excessivos
convencionalismos
do Cristo oficial, que acabaram transferindo para a alçada exclusiva dos
homens, as antigas prerrogativas de Deus. E tão naturalmente se fez tudo isso,
ao longo dos milênios, no jogo das convenções conciliares, que ninguém percebe
a difícil situação moral e espiritual dos mandatários de Deus na Terra, na
verdade desprovidos de qualquer legitimidade divina dos seus mandatos. Os
Gnósticos, que enfrentaram o avanço dos cristãos, apoiados pelo Imperador
Constantino, de Roma, diziam-se herdeiros de uma revelação antiga, que se
conservara na sucessão dos mandatos. Pretendiam a universalidade, como os
cristãos, mas não dispuseram de um apoio político e militar suficiente, sendo
condenados como hereges. Os cristãos realizaram sua institucionalização sob a
proteção romana toda poderosa. Tinham o mandato de César, mas faltava-lhes o de
Deus. Todas as seitas cristãs que discordavam da posição dos protegidos de Roma
eram declaradas hereges e muitas vezes exterminadas. A mesma aliança
anteriormente efetuada entre romanos e judeus, em Jerusalém, efetuava-se então
entre romanos e cristãos, com propósito mais vasto, que era o domínio do mundo.
Por mais que desejemos dourar essa situação, alegando a necessidade de expansão
do Cristianismo para salvação da Humanidade, a verdade dos fatos históricos nos
mostra que o objetivo principal, e que realmente se realizou, pelo menos em
parte, era o domínio político e militar dos povos sob o prestígio da Igreja
cristã apoiada pelo Império. Era natural que isso acontecesse, num tempo em que
o poder político e militar se fundiam com o poder espiritual. Ambos se
misturavam na imaginação do povo e era fácil mostrar de que lado estava Deus,
pois o Todo Poderoso não podia ser jamais derrotado. As vitórias de Constantino
eram a prova inegável e indiscutível de que Deus o apoiava. E quando a própria
Igreja esmagava uma seita considerada herege, era claro que Deus estava com ela
e não com os derrotados. A ignorância generalizada invertia a posição dos
valores morais e espirituais, estimulando a criação do poder unificado que por
sua vez unificaria o mundo em Cristo, para a salvação de todos. Compreende-se
bem essa situação decorrente das antigas heranças mágicas, mitológicas e
teológicas de todos os povos envolvidos. O que não se compreende é a falta, até
hoje, de estudos mais aprofundados e independentes para a investigação de todo
esse processo, no qual a seita miserável dos galileus tornou-se a parceira do
Império que a combatia, para conquista do mundo. Não se trata de encarar o
problema em sentido místico-religioso, pois então a explicação logo aparece
como sendo apenas a vontade de Deus. Apenas, sim, porque essa vontade soberana
anula todas as demais. O que nos falta é a análise racional e rigorosa das
constantes e variantes desse gigantesco processo de totalitarismo
político-religioso que por pouco não congelou para sempre, na dogmática fria da
Igreja, toda a evolução cultural da Humanidade. Voltando ao problema específico
da legitimidade dos mandatos divinos do mundo cristão, tentemos esclarecer os
motivos diversos, além dos já alegados, pelos quais essa legitimidade realmente
não existe: 1.° — Jesus não fundou nenhuma religião nem instituiu nenhuma
igreja, segundo sustentam os grandes pesquisadores da História Cristã, desde
Renan até Guignebert. Não instituiu nenhum sacramento nem procedeu a nenhuma
espécie de ordenação sacerdotal. Afastado de todas as instituições religiosas
dos judeus, não se subordinou a nenhuma delas e criou apenas um movimento livre
e aberto de preparação do homem para um mundo de paz e concórdia, justiça e
amor. Nesse movimento eram admitidos publicanos e samaritanos, ladrões e
cortesãs, os puros e os impuros de Israel, o que escandalizava os judeus
ortodoxos e os levou a rejeitálo.
2.° — As palavras
de Jesus a Pedro, chamando-o de pedra e dizendo que sobre essa pedra
construiria a sua Igreja, são contestadas no próprio meio cristão. As Igrejas
Protestantes defendem a tese de que a pedra não era Pedro, mas a revelação que
ele fizera de que Jesus era o Cristo. E Pedro, na verdade, não fundou nenhuma
Igreja. Participou do movimento cristão, revelando não o compreender suficientemente,
como vemos por suas atitudes relatadas no Livro de Atos e nas epístolas de
Paulo. Este, sim, Paulo de Tarso, aglutinando as chamadas Igrejas dos Gentíos e
ligando-as à Casa do Caminho, de Jerusalém, fundou a Igreja Cristã, desligando
para isso a de Antióquia da Sinagoga local e dando-lhe a independência
necessária à sua completa institucionalização. Mas Paulo não se colocou na
posição de chefe da Igreja, nem procedeu a ordenações sacerdotais, recusando-se
mesmo a batizar, pois segundo afirmou, só batizara uma vez e não mais voltara a
.fazê-lo, porque a sua missão não era batizar, mas pregar o Evangelho. Apesar
de sua formação faraisaica, Paulo de Tarso compreendeu a orientação de Jesus e
não pretendeu criar uma Igreja Cristã nos moldes judáicos. Cortou o processo
das ordenações, depois de haver circuncidado Apolo, o que passou a considerar
como um dos seus erros. A possível transmissão da ordenação de Paulo pelo
próprio Cristo não se efetivou, mesmo porque Paulo não se considerou ordenado,
mas somente esclarecido pelos ensinos do Cristo.
3° — Pedro,
apontado como o primeiro Papa, nunca exerceu essa função em Roma, e em parte
alguma. Até mesmo o fato de haver estado em Roma, é hoje posto em dúvida pelos
pesquisadores universitários, não havendo nenhuma prova válida da sua presença
em Roma ou do seu suposto Papado. Por outro lado, não consta que Pedro se tenha
arrogado, em algum momento de seu apostolado, o direito de fazer ordenações
sacerdotais em seu nome ou em nome do Cristo. 4.° — O episódio do Pentecoste,
considerado como ordenação divina do próprio Céu, dando aos apóstolos o direito
de transmití-la às gerações seguintes, não foi de ordenação sacerdotal, mas de
confirmação da validade do culto pneumático, que a Igreja mais tarde extinguiu.
As línguas de fogo sobre os após-tolos, fazendo-os falar línguas estranhas, era
uma manifestação espiritual que confirmava simples-mente a capacidade dos
mesmos para receber e divulgar mensagens espirituais. O Rev. Harold Nilson,
tradutor da Bíblia para o irlandês, em seu livro "O Espiritismo e a
Igreja", descreve uma sessão espírita em que esse fato se reproduziu,
tendo o Bispo que o acompanhava, seu superior em Belfast, declarado que só
naquele momento compreendera a realidade e o significado das línguas de fogo.
Estava diante do fenômeno de xenoglossia, da mediunidade de línguas.
Ocorrências desse e de outros fenômenos eram comuns na fase de divulgação do
Evangelho, para confirmação objetiva dos princípios pregados.
Essa colocação aparentemente impiedosa da situação
do Cristianismo Oficial, nada tem a ver com sentimentos religiosos. Um bom
católico, de olhos piedosamente fechados para todas essas incongruências e
outras muitas que seria longo enumerar, não perde o tempo que dedica à fé e à
prática do bem, no campo da sua religião. As religiões são caminhos de elevação
espiritual, meios de transcendência. Os que crêem numa religião e a seguem com
devoção verdadeira, nada tem a ver com os erros ou enganos de sua formação no
passado. Fazemos esta análise por tratar-se de um problema de maiores
dimensões: um problema cultural que exige maior atenção nesta fase de transição
da nossa civilização, para uma civilização realmente cristã. O Cristianismo não
é uma religião, é uma Doutrina do Conhecimento, que fornece elementos para
muitas religiões. A finalidade do Cristianismo não é a salvação da alma após a
morte, mas a sua salvação aqui mesmo na Terra. Uma Civilização Cristã de
verdade é um arquétipo que temos de atingir através de completa reformulação de
nossos precários conceitos sobre Deus, a Vida, o Homem e a grandeza infinita do
Cosmos. As religiões nascidas do Cristianismo, ainda não se fizeram dignas da
fonte que as gerou. Para que se elevem até a pureza da fonte, é necessário que
o próprio conceito do Cristo e do Cristianismo sejam reformulados. Mas como
reformulá-los se não procurarmos colocá-los em termos racionais, através da
critica histórica e da revisão lógica e ontológica dos seus princípios, da sua
moral, da sua substância e da sua estrutura? O Cristianismo é um dos grandes
momentos de síntese da evolução terrena. Ele nos oferece o passado e suas
experiências, o presente e sua realidade imediata, o futuro e suas
possibilidades visíveis. Por tudo isso, revisar o Cristianismo é imperativo
deste século, deste momento angustiante que estamos vivendo na Terra. Temos de
penetrar no âmago da problemática cristã dos nossos dias, a partir de suas
origens longínquas. Porque o Cristianismo é a única saída de que dispomos para
o impasse negativo e ameaçador em que caímos, por nossa incúria. As próprias
Igrejas sentem a necessidade de renovar-se. Mas jamais o farão com a devida
eficiência, se não se desapegarem dos prejuízos tradicionais em que se
acomodaram, se não tiverem a coragem de voltar sobre os próprios passos, reformulando-se
a si mesmas à luz da realidade histórica e da consciência das responsabilidades
futuras, que são intransferíveis.
X - A EXISTÊNCIA
DE JESUS
As controvérsias
sobre a existência de Jesus, há muito já passaram de moda. Na verdade, não eram
mais do que uma espécie de exercício intelectual, surgido de especulações que
tinham por principal finalidade, espicaçar o Clero Católico, Fazia parte dos
jogos elegantes de após Renascimento, quando os intelectuais europeus tiravam a
sua desforra das atrocidades medievais. Não havendo provas documentais do
nascimento de Jesus, nem referências ao fato nas obras de escritores e
historiadores antigos, o tema se apresentava como excelente meio de desafiar a
impotência da Igreja, num assunto de importância fundamental para ela. O avanço
cultural dos séculos posteriores à queda da bastilha milenar e desumana da
dogmática medieval, particularmente os séculos XVII, XVIII e XIX, com o
predomínio das Ciências sobre o autoritarismo sagrado da Escolástica, dava aos
intelectuais, a oportunidade de colocar os clérigos e seus assessores leigos
mais ilustres, entre a cruz e a caldeirinha, como eles haviam feito com todos
os que, na Idade Média, se atreviam a pensar. Era realmente uma desforra em
grande estilo, vê-los em apuros para sustentar o que não podiam provar. Os
estudos psicológicos e as interpretações mitológicas, encurralavam os herdeiros
da dogmática arbitrária, deixando-os furiosos ante as afirmações eruditas de
que Jesus não passava de um mito, perfeitamente explicável, que somente os
beócios podiam aceitar como realidade. Passado esse tempo de desforra, por
sinal muito justa, começaram a surgir pesquisas mais sérias, que nem por isso
escaparam aos anátemas e agressões violentas da Igreja. Renan, que teve o desplante
de provar a existência histórica de Jesus, sem reconhecer-lhe a divindade
atribuída pelos teólogos, só não foi queimado em praça pública, como John Huss
e Jerônimo de Praga, porque o poder diabólico dos inquisidores se esgotara.
Kardec, que não chegara aos excessos de Renan, mas se atrevera a contestar o
nascimento virginal de Jesus, e a provar que ele tivera irmãos e irmãs, segundo
os próprios textos evangélicos, foi queimado ritualmente em Barcelona, não em
pessoa, porque estava na França, mas em efígie, se assim podemos dizer, com a
incineração pomposa de seus livros em praça pública. Na verdade, a existência
real de Jesus se provava pelo testemunho de seus apóstolos e discípulos, por
documentos do próprio meio em que ele vivera, como as logia, anotações
originais de trechos de seus ensinos, pelas memorizações de Pedro, Tiago e
outros apóstolos, pelo primitivo Evangelho de Marcos, que serviu de modelo ao
trabalho posterior do João Marcos romano, pelos documentos epistolares de Paulo
de Tarso, pelos testemunhos de sua própria mãe, Maria de Nazaré, que acompanhou
João Evangelista a Éfeso, após a crucificação, e pelo próprio testemunho de
João, que viveu até mais de oitenta anos e celebrizou-se em Éfeso, por seus
interesse pela Filosofia de Alexandria e pela sua escola cristã. Mas os
intelectuais de após Renascimento davam todo esse imenso conjunto de provas
como insuficiente, e exigiam provas impossíveis, aturdindo e desesperando os
clérigos e seus amigos, de formação cultural eclesiástica. As pessoas que ainda
hoje falam na falta de provas, da existência real de Jesus, ignoram o que se
fez a partir dos trabalhos coincidentemente conjugados e em planos diferentes
de pesquisa e estudo, realizados por Renan e Kardec. As teorias mitológicas de
Drews e Barnés, bem como a psicológica de Biné Sanglé, mergulhando na
psiquiatria para provar a loucura de Jesus, apesar de seus enfoques errôneos,
deram também sua contribuição à prova da existência real. Os mitólogos ajudaram
a esclarecer os problemas míticos, particular-mente dos Evangelhos de Mateus e
Lucas, e Sanglé demarcou com maior precisão a genealogia de Jesus, na procura
das linhas de hereditariedade genética da suposta loucura do jovem visionário a
que Renan se referira. A prova da superação desse problema em nosso tempo nos é
dada pelo próprio trabalho de Guignebert, que começa sua obra monumental
"Jesus", tratando da infância e da educação do menino. A seguir,
enfrenta o problema da primogenitura de Jesus, demonstrando que essa questão
foi levantada simplesmente para justificar o dogma da virgindade de Maria, pois
na realidade ele não era o mais velho dos irmãos, como se deduz dos próprios
Evangelhos e das pesquisas históricas. A família de José e Maria não era
pequena. Marcos fala dos irmãos e das irmãs de Jesus, "com a maior
naturalidade do mundo", segundo observa Guignebert, o que é incontestável.
Segundo Marcos, esses irmãos e irmãs de Jesus, como seu pai e sua mãe, eram
bastante populares, todos os conheciam. A primogenitura de Jesus é assim contestada
nos próprios Evangelhos. A Igreja foi muito mais longe e considerou Jesus como
unigênito de Deus, o que contraria o princípio central do Cristianismo, sobre o
qual repousa toda a dinâmica universal do Cristianismo, contida na afirmação da
paternidade comum do Deus Único, para todos os homens. Se Jesus era unigênito,
nós todos estamos órfãos ou somos bastardos, e o princípio da fraternidade de
todas as criaturas humanas, sob a paternidade
universal de
Deus, transforma-se numa fábula. Os Evangelhos de Mateus e Lucas, são os únicos
a tratarem do nascimento virginal e miraculoso de Jesus. Marcos silência e
João, empolgado por seu misticismo e excitado pelas visões néo-platônicas de
Alexandria, recorre ao mito da encarnação do Verbo, para transformar o
nascimento natural do Mestre nas nuvens de impenetrável mistério. Paulo, cujas
epístolas são anteriores à redação dos Quatro Evangelhos e equivalem a um
Quinto Evangelho, nem se refere ao assunto, que certamente ainda não havia sido
levantado. Paulo foi o último dos apóstolos, como ele mesmo dizia, que chegara
tarde, "como um abortivo", após a morte de Jesus. Mas tornou-se o
primeiro no zelo pela doutrina e pela luta contra as desfigurações mitológicas
da figura humana do Mestre. Confirmou assim, a afirmação de Jesus, de que os
últimos seriam os primeiros. As referências aos irmãos e às irmãs de Jesus,
aparecem em vários trechos dos Evangelhos Sinóticos, sempre no sentido de
tratar-se de irmãos consangüíneos. E, como acentua Guignebert, se houvesse
qualquer possibilidade de engano a respeito, os próprios redatores se
incumbiriam de deixar clara a questão. Contrastam agressivamente com a
naturalidade dessas referências, às tentativas posteriores de se considerar os
irmãos e as irmãs de Jesus como seus primos. É essa uma tentativa de arranjar
as coisas, dentro da dogmática da Igreja, sobre o nascimento virginal. A
teimosia da Igreja, em sustentar os aspectos mitológicos do nascimento e da
vida de Jesus, mesmo contra a evidência dos textos, caracteriza uma posição
mitológica bastante explicável: o Cristianismo nascia no momento de transição
entre o mundo do Mito e o mundo da Razão. Os apóstolos e depois os primeiros
conversos eram, todos eles, homens formados na cultura mitológica. Viam o mundo
e os fatos do mundo, através das lentes mágicas do maravilhoso. Por outro lado,
o Cristianismo teria de dominar o mundo para resgatar o homem do pecado, e sem
o concurso do mito não seria aceito pelos povos de então, inclusive os judeus,
ávidos de prodígios, milagres e manifestações de poderes sobrenaturais. Jesus
mesmo, não se limitou a ensinar oralmente, teve de recorrer a demonstrações de
poder divino, para conquistar a confiança e a admiração do povo. Não era uma
questão de proselitismo puro e simples, mas uma exigência da mentalidade
dominante. Por isso, ele insistiu na afirmação de que os seus prodígios
poderiam ser feitos, e até prodígios maiores, pelos que o seguiam, o que se
confirmava nas atividades curadoras de seus apóstolos e discípulos. A prova de
que ele se submetia a essa condição da época, com plena consciência do que
fazia, está na sua própria advertência de que o seu ensino seria deformado e
teria de ser restabelecido no futuro, quando o homem se emancipasse do
maravilhoso para aceitar a verdade natural do mundo e descobrir as suas leis
através dos progressos inevitáveis da razão-científica. Tudo aquilo, portanto,
que levou os mitólogos a confundir a existência real de Jesus com a ficção
mitológica, nada mais era que a exigência da comunicação com o povo, dentro de
um condicionamento milenar da mentalidade humana, que só o desenvolvimento da
razão-lógica poderia romper no futuro. Temos um exemplo esclarecedor desse
problema na História do Brasil, com a luta dos jesuítas pela conversão dos
índios ao Cristianismo. É inacreditável, como homens de cultura e experiência,
não tivessem compreendido a existência de uma grave dificuldade, que não
conseguiram superar: a dos desníveis culturais. O livro do Padre Manuel da
Nóbrega, Diálogo da Conversão do Gentío, é uma confissão angustiante da
incapacidade dos jesuítas para a realização da catequese ambicionada. Os
índios, que aceitavam os padres e se tornavam seus amigos e colaboradores,
parecendo muitos deles perfeitamente integrados na fé, de repente manifestavam
a sua absoluta incompreensão dos ensinos recebidos. Nóbrega chega a propor, com
aprovação de Anchieta, providências enérgicas, com medidas violentas, para que
aquelas almas selvagens pudessem ser levadas a Cristo de maneira decisiva. Mas
essas mesmas medidas não surtiram efeito, antes complicaram a situação e
aumentaram as lutas e o desespero dos padres. O mesmo fato se repetiria no caso
dos escravos negros trazidos da África, para suprirem com seus braços, as
deficiências do braço indígena, nos trabalhos da terra. Nesse caso, a situação
devia ser melhor, pois as populações africanas já haviam sofrido o impacto de
duas culturas superiores: a da Religião Muçulmana e a da Religião Católica
Romana. Mesmo assim, a catequese negra não deu os resultados esperados. Os
negros acabaram assimilando rituais e imagens do Catolicismo, de mistura com os
elementos islâmicos já absorvidos na África, e transformaram as imagens da
idolatria cristã, em representações dos deuses africanos. Ainda hoje temos, em
todo o Brasil, e num crescimento que revela o fracasso absoluto da conversão,
milhares de terreiros da Umbanda, Quimbanda, Aruanda, Candomblé e outras
variantes, em que as práticas das religiões primitivas da África se
desenvolvem, no processo sociologicamente bem pesquisado e estudado pelos nossos
sociólogos e pelos estrangeiros, com o nome genérico de Sincretismo Religioso
Afro-Brasileiro. Práticas indígenas também ainda subsistem, como a da Poracê,
dança indígena ritual de algumas das nossas tribos. Esse fenômeno
sócio-cultural, bastante complexo, Jesus enfrentou no seu tempo, com plena
consciência do problema. O que estranha é o fato de a própria Igreja Católica,
após as dificuldades da sua organização e as experiências que teve de enfrentar
em todo o mundo na divulgação de sua doutrina, não haver percebido que chegava
a hora, como
realmente chegou,
de uma revisão de sua posição histórica e doutrinal, ante a acelerada evolução
cultural da Humanidade. Mas também esse problema é fácil de compreender-se. O
dogma da Revelação Divina, que implica a imutabilidade dos princípios revelados
por Deus, e portanto, a impossibilidade de modificar o que é eterno e veio do
Eterno, conferindo-lhe um excesso de autoridade estática, anquilosou-a no
tempo. De outro lado, os efeitos secundários da imobilidade surgiram na criação
das rotinas administrativas, no acúmulo dos bens materiais, no enriquecimento
constante do comércio ritual e na estatização da Igreja, com seus inevitáveis
compromissos políticos. Não é fácil modificar-se a estrutura de um Estado, com
suas infinitas ramificações de atividades, e mais difícil ainda, modificar as
suas bases ideológicas para uma adaptação às novas condições do mundo. Quando
os interesses da Terra se superpõem aos do Céu, transformando os santos em
investidores de capital e administradores de empresas lucrativas, as estrelas
parecem bem menos importantes que as moedas. Seja como for, a revisão do
Cristianismo terá de ser feita. Nós, os cristãos, devemos por as cartas na
mesa, no jogo mais limpo da História. E não serão as cartas do baralho comum,
mas Zener ou Psi, que não se destinam a dar lucros materiais e sim a prospectar
o passado cristão para restabelecer, na grandeza desfigurada do Cristianismo, a
verdadeira grandeza espiritual do Cristo, como homem e como espírito, sem a fantasia
romana de Deus ou Semi-Deus, ou mesmo de apenas um terço de Deus. Sem
restabelecer a legitimidade do Cristo, não reergueremos o homem da queda
terrível que sofreu, não no Éden judáico, mas nas bolsas de valores perecíveis
do mundo. A existência de Jesus na História e na realidade presente da Terra —
onde continua a orientar as consciências capazes de compreender os seus ensinos
e de rejeitar os vendilhões e os cambistas do Templo — é a única verdade
teológica ao alcance dos teólogos modernos. Se esses teólogos, que se atrevem a
proclamar a morte de Deus, ao invés de reconhecer a morte das mistificações
teológicas, não forem capazes de colocar o problema da revisão do Cristianismo
em suas agendas falaciosas, as pedras clamarão em defesa da verdade crucificada.
Jesus de Nazaré não existiu apenas no passado, existe agora mesmo, é um
existente que se ombreia conosco nas ruas e nas praças, nos locais de trabalho
e nos locais de sofrimento. Não está mais pregado na cruz romana pela impiedade
judaica. O conceito filosófico de existência, em nossos dias, não é o da vida
comum dos homens, que só cuidam de sustentar o corpo. A existência, dizem os
filósofos, é subjetividade pura nos rumos da transcendência. Jesus de Nazaré se
fez subjetividade na consciência do mundo. Seus ensinos balizam a elevação da
Terra em direção aos mundos superiores. Mas para que sejamos dignos disso,
temos de restabelecer a verdade sobre Jesus e a legitimidade do Cristianismo.
Nenhum outro caminho existe para o mundo, nesta encruzilhada decisiva da
História. Só dois caminhos se cruzam neste momento, na carne angustiada da
Terra: o da mentira, em que estamos, e o da Verdade, traçado pelo Cristo. Não
estamos jogando com palavras, mas procurando colocar o problema existencial de
Jesus, numa perspectiva mais ampla e mais real. O conceito de existência como
subjetividade, estabelece a separação entre vida e existência. A vida é o clã
vital de Bergson, uma energia estruturadora que penetra a matéria para
fecundá-la e dinamizá-la. A existência brota da vida como a fonte brota da
terra. A existência é consciência e sobretudo consciência de si mesma e
consciência de existir para. Existir simplesmente, no conceito comum, é apenas
viver, como vive o vegetal ou o animal. O homem não vive, existe. Não é um
vivente, mas um existente. O vivente vive a vida insuflada na matéria, todo o
seu dinamismo se reduz às funções orgânicas, em permanente dependência do meio
exterior. O existente existe em si mesmo, independente do meio exterior, que
domina pelo poder de sua subjetividade criadora, transformando-o e
transformando-se a si mesmo, na busca da transcendência, que o atrai pela visão
interior dos arquétipos da espécie e pela percepção da infinitude cósmica. O
corpo material do homem tem os seus limites no nascimento e na morte, mas a
estrutura psíquica da sua objetividade não tem limites conhecidos. Da mesma
maneira, a influência da subjetividade sobre o meio, através de suas formas ou
forças mentais, afetivas, volitivas e pre-ou-retro-cognitivas, tem alcance e
duração desconhecidas. A subjetividade, portanto, que é a própria existência e
se define na realidade ôntica como personalidade, o modo de ser e de agir do
Ser, não tem limites traçados para o seu existir. Jesus de Nazaré, como homem,
existente, marcado por uma historicidade ilimitada, continua atuando no mundo,
como Platão, Kant, Marx e outros. Não se trata, pois, de um problema místico ou
sobrenatural, mas de uma realidade visível e palpável agora mesmo. O que
distingue Jesus dos demais existentes citados é a globalidade da sua projeção
existencial, que abrange numa síntese ideal toda grandeza existencial e todas
as suas exigências. Por isso, o caminho que ele nos oferece nesta encruzilhada,
é o único a atender a todas as exigências dos anseios humanos nesta hora de
transição. E também por isso o Cristianismo, em sua essência de pura
consciência crística, tem de ser retirado do seu invólucro deformante e
recolocado nos termos exatos de sua formulação pelo Cristo. Em cada consciência
humana há hoje reflexo da verdade cristã, através do qual o Cristo atua no
mundo. Esse é
o início da
realização do- sonho educacional de René Hubert sobre a Solidariedade de
Consciências. Mas nunca ele pode realizar-se nas condições atuais do
Cristianismo oficializado pelo Imperador Focas, cujo decreto continua em vigor
por toda a Terra. A volta ao Cristo, como queria Lutero, nos daria a volta do
Cristo, com que sonham os cristãos há dais milênios. O Cristo não desceria das
nuvens, como sonham os místicos, mas o sentimos de súbito ao nosso lado, como
companheiro e amigo, um homem entre os homens, sofrido como os homens e
obstinado na conquista do Reino de Deus. A existência real e atuante do Cristo
em nós mesmos; em nossa subjetividade existencial e em nossa objetividade vivencial,
anula historicamente os dois mil anos de vitória do mito, destruindo a barreira
de interesses imediatistas que nos separou de Jesus. A palavra Cristo foi
desfechada contra a figura humana de Jesus para esmagá-la. Era a vingança do
mito, que Jesus veio destruir para libertar o homem do seu mundo de mentiras e
superstições. Mas assim como a cruz dos romanos foi transformada por Jesus em
símbolo de sacrifício redentor, a palavra, Cristo, incorporou-se ao nome de
Jesus de Nazaré, como confirmação de seu destino messiânico. Nem a cruz nem a
palavra Cristo, possuem nenhum poder mágico. As práticas temerárias do
exorcismo católico provaram isso de sobra, mostrando a ineficácia desses ardís.
Mas a figura humana de Jesus e a essência indestrutível dos seus ensinos,
modelaram paciente-mente a nova mentalidade que desabrocha na Terra, nesta
antevéspera da Era Cósmica. A Ciência, que é um ato humano de obediência a
Deus, como queria Frances Bacon, modificou totalmente a imagem falsa e
mesquinha do mundo que os teólogos tentaram inutilmente eternizar. Os tabus do
sagrado cairam um a um, na proporção em que os mistérios da ignorância, embora
doirados pelas chamas das fogueiras, da paixão e da arbitrariedade fanática,
foram sendo esclarecidos pela pesquisa científica. A razão humilhada acabou
triunfando sobre o desvario teológico. O racionalismo de Jesus, venceu a
sabedoria infusa dos doutores da lei, pobres seres humanos que se julgavam
intérpretes de Deus. Sem querer, os cientistas, que não batiam no peito, mas
perscrutavam o céu e as entranhas da terra, confirmaram os ensinos evangélicos
— claros e precisos — que os teólogos rejeitaram. A Física provou a existência
do outro mundo (da antimatéria), interpenetrado invisivelmente no mundo
ilusório da matéria densa. A Biofísica provou a existência do corpo espiritual
do homem (bioplásmico) e suas funções de vitalizador, organizador e controlador
do corpo material, bem como a sua natureza de corpo da ressurreição. A
Psicologia mergulhou no inconsciente e descobriu a natureza espiritual do ser
humano. A Parapsicologia confirmou a legitimidade do culto pneumático, das
manifestações mediúnicas, incalculável poder do pensamento, a sobrevivência da
mente após a morte e a realidade da reencarnação, que Jesus objetivou em vários
exemplos do seu tempo. A Astronomia admitiu a existência de outros mundos
povoados no Infinito e a Astronáutica endossou a tese das muitas moradas da
Casa do Pai. A Filosofia reconheceu o sentido transcendente da existência
humana. E todas essas conquistas científicas, mostraram a inépcia dos teólogos
e dos clérigos, que há dois mil anos leram e interpretaram a seu modo, essas
verdades constantes do Evangelho, corrigindo-as de acordo com dogmas
irracionais e condenando à morte os que preferiam a palavra pura de Jesus. Quem
se atreverá, daqui por diante, a contestar a Ciência de Jesus e as Ciências dos
Homens, em nome de posições dogmáticas sectárias? Quem se atreverá a convocar
concílios para desmentir ao mesmo tempo o Cristo e a Ciência? Nunca houve no
mundo maior confusão em torno de palavras e frases do que na chamada Questão
Religiosa. Nunca se viu maior embrulhada, disfarçada em sabedoria profunda, com
resultados tão contrários ao saber. Jesus de Nazaré enfrentou; esse problema,
tentando resolvê-lo por meios racionais. Envolveram-no, com sua doutrina, numa
confusão ainda maior. Pelo pouco do que fizeram, que procuramos examinar
rapidamente neste livro, pode-se avaliar o muito em que tantos homens santos e
sábios, mergulharam através de dois milênios. Mas agora, que as Ciências da
Terra, sem nenhuma intenção, passaram pela peneira do bom senso a teorias do
absurdo e apuraram a verdade possível, não se pode mais continuar com a
política de panos quentes. Tudo, no Cristianismo Oficial, está errado. E apesar
disso, a verdade cristã sobrevive e se confirma, tendo mesmo produzido, à
revelia do oficialismo, grandes transformações no mundo. Que outras, e maiores,
e mais profundas transformações poderão ocorrer, se conseguir-mos retirar todo
o joio da seara, para que o trigo asfixiado se desenvolva como deve? O complexo
religioso é um fenômeno humano, entranhado na carne, no sangue, nos nervos, no
psiquismo e no espírito do homem. Nele se misturam os elementos da magia, do
animismo, do medo, da crendice das superstições, do antropomorfismo, do
sadismo, do masoquismo, do delírio, do amor e do ódio, da esperança e do
desespero, da vida e da morte, de Deus e do Diabo. Uma religião é um
pressuposto global de solução arbitrária para toda essa problemática. Enquanto
a cultura humana engatinhava, as religiões serviram para remediar situações,
embora muitas vezes fizessem o contrário, agravando-as. Hoje, com o avanço
acelerado do Conhecimento, em todas as áreas culturais, nada sobrou para o
tempero das religiões. É necessário, agora, colocar o problema em termos mais
amplos e
arejados. O
sistema sectário, fechado e arrogante, arbitrário, não pode prevalecer num
mundo que se abre para as relações cósmicas. A receita cristã, depurada dos
adendos teológicos, mostra-se adequada a esta hora da evolução terrena, como já
vimos. É tempo de fecharmos as portas das boticas teológicas e ligarmos o
anseio religioso do homem, à sua provada capacidade de pesquisa científica.
Religião sem Ciência, é ignorância pretensiosa. O Conhecimento é uma unidade.
Ciência, Filosofia, Religião, Ética, Estética e assim por diante, tudo quanto
se refere ao aprendizado humano na experiência do mundo, pertence a essa
unidade controladora do Saber. E o contrôle não se faz por meio de revelações
misteriosas, nem de autoridades divinatórias, nem de concílios de supostas
autoridades espirituais, por mais dignas que sejam ou mais tituladas, mas única
e exclusivamente pelos resultados provados de pesquisas especializadas. Só os
critérios de certeza e probabilidade, portanto os critérios metodológicos das
Ciências, podem dar o veredito necessário, provisório ou decisivo. Por isso,
Jesus de Nazaré, que anunciava a Nova Era, não buscou ordenações e sagrações
para iniciar a sua revolução religiosa na Terra. Nem escolheu para seus
assessores, rabinos oficiais, mas homens simples do povo, dotados de coração
puro, para que não se imiscuissem nos problemas fundamentais, limitando-se a
ajudá-lo na pregação e na exemplificação de uns poucos princípios, apenas uns
poucos, nos quais a sua sabedoria se manifestava pelo poder da síntese. Ainda
por isso, ao condenar uma prática religiosa, um excesso de escrúpulo ou de
hipocrisia, nunca deixava, como nos mostram os Evangelhos, de dar a
justificativa lógica da sua atitude, com palavras e exemplos. É claro que não
podemos considerar os Evangelhos como repositórios infalíveis dos seus ensinos.
O que aparece nos Evangelhos é apenas uma parte mínima dos seus ensinos. Mas se
esse mínimo foi suficiente para provocar dois milênios de terremotos culturais,
o que teria acontecido se todo o seu ensino tivesse permanecido? Esse é outro
motivo da presença existencial de Jesus nesta hora do mundo. Essa presença se
impõe progressivamente, na proporção em que os homens se tornam mais capazes de
percebê-la. Dos princípios evangélicos decorrem as ilações lógicas da intuição
genial. Frases confusas dos textos se esclarecem à luz de novas descobertas
científicas. Pouco a pouco, a Verdade se restabelece. A fé não é uma
prerrogativa específica da Religião. Também a Ciência se apoia na fé da Ordem
Universal, e sem essa fé, como ensina White Hed, a Ciência não seria possível.
Sujeitar a fé religiosa ao mesmo critério da fé científica, é reajustar o saber
em seu equilíbrio necessário. Só podemos ter fé no que sabemos, no que
conhecemos. E nada é interdito ao conhecimento humano, no processo infinito da
evolução dos seres. A revisão do Cristianismo se processa sob a égide do
próprio Cristo, através dos homens de boa vontade, assistidos pelos mensageiros
do Mestre. E os mensageiros são anjos, explicou Paulo, enquanto Kardec
esclarece que a angelitude é o plano ôntico imediatamente superior ao plano
humano. Mas em que se baseia para afirmar isso? Nas suas pesquisas de doze anos
seguidos, que deram origem a todas as modalidades de pesquisas paranormais na
Terra. Há mais de cem anos, a pesquisa científica vem sendo aplicada ao
restabelecimento da verdade cristã, e hoje, com mais amplitude, nos principais
centros universitários do mundo. Não há razão para os nossos temores, diante da
inquietação atual. As grandes transformações produzem abalos profundos,
desmontando instituições milenares.
XI - A RAZÃO DO
MITO
Como já vimos, o
mito nasce do real. É uma interpretação figurada e naturalmente antropomórfica,
da percepção do mundo pelo homem. E, portanto, um ensaio da razão na busca da
compreensão, um esforço de racionalização dos dados da percepção. Mas nesse
esforço, se projeta no mito o conteúdo anímico do homem modelando o mito à sua
imagem e semelhança. Por isso, o fascínio do mito sobre os filósofos, em nosso
tempo, como acentua Georges Van Titer, assemelha-se à nostalgia de um paraíso
perdido. Após atingir a frieza racional do materialismo, do positivismo
comteano e do pragmatismo de William James, a Filosofia retorna sedenta à fonte
da mata. Mas não o faz de maneira simplória, e sim de maneira operativa,
procurando descobrir no mito, aspectos do real que escapam à clareza suspeita
da razão. O mesmo aconteceu com a Psicologia, que depois de se livrar da
introspecção filosófica e entregar-se alegremente às pesquisas científicas,
retornou de súbito, às profundezas do inconsciente. No caso do Cristo, o
processo se torna visível. Da realidade humana de Jesus de Nazaré, surge o mito
do Cristo, deste nasce a mitologia cristã e desta retornamos à busca do real,
que uma vez colocado, nos parece frio e desprovido da riqueza emocional do
mito. Não obstante, Jesus de Nazaré não é um objeto frio, mas um ser humano, em
que o calor da imaginação (sempre emotiva), é substituído pelo calor da
natureza humana em sua dramaticidade existencial. Despojando a figura do
Cristo, dos atributos mitológicos tradicionais, parece que o reduzimos a uma
condição de extrema pobreza, sem recursos para o exercício de suas atividades
renovadoras do homem e do mundo. Podemos sentir o efeito dessa nostalgia (de
que fala Van Riter) na obra monumental do padre Tilhard de Chardin, que nos
apresenta uma tentativa genial de conjugação da realidade e mito, numa
estratégia cartesiana para escapar à ira teológica, abrindo caminho através de
uma vereda científica na selva selvaggia dos princípios milenares da Igreja.
Mas a reação oficial contra essa tentativa audaciosa, que só lhe permitiu a
glória póstuma, exemplifica historicamente o poder duradouro do mito, através do
seu prestígio emocional. O homem está ainda imantado à matriz instintiva de que
nasceu, à placenta da espécie, que continua a alimentá-lo de maneira secreta,
materna e embaladora, ante as exigências de uma realidade áspera e brutal, que
a rotina do dia a dia esmaga aos seus olhos. Mas hoje, o avanço das Ciências
compensa a frieza aparente do real com a penetração na carne do mundo, além da
epiderme sensorial. Descobrimos o universo oculto num grão de areia, e somos
alojados do fantástico imaginário para o fantástico real. Embora essa mudança
não pareça acessível a todos, a explosão da comunicação, num mundo de evolução
científica acelerada, amplia rapidamente a propagação da cultura. E se o motivo
da reversão de valores, numa sociedade mundial ainda submetida aos prejuízos da
alienação ao mito. Se o Cristianismo não dispusesse de substância espiritual
para resistir a todas as deformações e profanações que sofreu, nos milênios
decorridos, agora não suportaria a confusão do mundo. Mas a sua função, é
precisamente a de reestruturar esse mundo em que o homem se perdeu, esquecido
da fragilidade humana e dos curtos limites da existência terrena. A razão do
mito não está apenas no ensaio de racionalização do mundo que nele se processa,
mas também e talvez, principalmente, no aumento de poder que ele proporciona ao
homem, despertandolhe a fé nas forças da Natureza. A doença, a velhice e a
morte, que deviam esmagar a criatura humana, impotente ante o fluir do tempo e
a ameaça permanente das convulsões geológicas, das intempéries, do furor do Céu
e das feras da terra, era superada pelo vigor do corpo humano e pelo que se
integrava numa realidade vital sem limites, da qual ele podia assenhorear-se
pela alimentação e através de processos mágicos. O totemismo é a expressão mais
perfeita dessa aliança do homem com os animais, dotados de maior força e
vitalidade. Muito antes da aliança com Iavé, os judeus, como todos os povos da
Antigüidade zoolátrica, já se haviam aliado aos animais poderosos, o que provam
diversas passagens bíblicas em que o próprio Iavé, aparece simbolizado num
touro. A força e a fecundidade desse animal o elegeu, em quase todas as
civilizações agrárias e pastorís, como a representação viva dos seus deuses. O
episódio da adoração do bezerro de ouro, nas fraldas do Sinai, enquanto Moisés
recebia, no alto da montanha, as tábuas da lei, mostra-nos o momento crítico de
transição da Aliança Animal para a Aliança Divina. Abrão, Isac e Jacó, já
haviam firmado a Aliança Sagrada, mas o povo hebreu, ainda confiava mais no
culto egípcio do Boi Ápis, cuja força e virilidade se apresentavam concretas e
vivas, no corpo do animal vigoroso. O Bezerro dos israelitas tinha a vantagem
do vigor juvenil e sua imagem de ouro, excitava a imaginação dos que pretendiam
desfrutar, para sempre, das delícias de Canaã, com leite e mel em seus rios, e
o fascínio do ouro e do poder, nas conquistas a realizar. Moisés teve de
recorrer ao fio da espada, para lembrar aos fascinados, que a juventude e a
força do homem, podiam
apagar-se num
simples golpe de lâmina. E isso, no momento em que recebera o manda-mento
incisivo: "Não matarás". A encarnação é a integração do espírito na
realidade terrena, uma espécie de coisificação, em que a consciência se apega,
envolta no denso véu da matéria. Só pouco a pouco, no desenvolvimento das
condições orgânicas do corpo, o espírito vai conseguindo desenlear-se do véu,
como quem sai de um nevoeiro e começa a perceber os primeiros contornos da
paisagem. Na adolescência, ele se reconhece como criatura humana e se empolga
com o domínio que exerce sobre o corpo material. Mas então, as forças vitais em
desenvolvimento o ligam ao campo magnético da animalidade. As exigências da
espécie o atraem para o centro genético do sexo, provocando os conflitos do
impulso vital com as aspirações da alma, que se manifesta nas inquietações e
angústias da idade. Esse é o momento crucial, em que a personalidade espiritual
se define no rumo da sujeição ao ser do corpo, de que trata Kardec, ou ao ser
espiritual que, no caso, é o espírito condicionado à matéria. Na maioria dos
casos, o condicionamento predomina. A consciência supraliminar, dos estudos de
Frederic Myers, estabelece as conotações necessárias com a realidade terrena e
confere ao homem, o caráter humano normal. A consciência subliminar, que guarda
a reminiscência platônica (as lembranças submersas da vida espiritual)
permanece no inconsciente, à espera das aberturas que deverão surgir, na
mocidade e na maturidade, para o retorno à natureza espiritual. Esse mecanismo
complexo atua das maneiras mais diversas, imantando o homem ao campo
gravitacional das ilusões terrenas, ligando-o às aspirações superiores do
espírito, ou mantendo-o indeciso entre essas duas posições, num plano de
esquizofrenia torturante, que serve de campo para todas as formas de
desequilíbrio psíquico e processos obsessivos. É dessa situação conflitiva que
surgem as estranhas florações do mito, ora gerando o apego exagerado às
condições terrenas, que desvia a atenção da precariedade e fragilidade da
criatura, fascinando-a com a força do touro. A maioria dos seres humanos
permanece imantada a essa ilusão, afastando o mais possível, a idéia da morte
de suas cogitações, não raro até a mais avançada idade. Por isso observou
Heidegar, que geralmente procuramos fugir da morte com a trapaça de certas
expressões como "morre-se", em que a função da partícula reflexiva
"se", é atribuir o fato de morrer aos outros, aos que morrem. A
ilusão da vida é como a ilusão da velocidade numa estrada. Corremos seguros de
que somente os outros morrem, pois estamos apoiados no mito da nossa absoluta
segurança no volante. O encanto do mito, é, portanto, ilusório, decorre da
própria natureza ilusória da matéria, que não é densa, nem impermeável como
supúnhamos, mas transparente e flutuante como um véu de noiva. Por isso, o
poeta bengali Rabindranah Tagore evocava a morte, nos seus poemas, chamando-a
de noiva que iria encontrá-lo para os esponsais do Infinito. Essa imagem
poética de Tagore, como todas as suas imagens, antecipava a realidade científica
dos nossos dias. A Terra hoje se prepara, como as virgens estouvadas da
parábola, para tirai a sua coroa de flores e o seu véu de ísis, nos esponsais
definitivamente marcados com a Era Cósmica. Perderemos certamente as ilusões de
uma vida planetária rotineira, cuja única perspectiva, são os mitos do Céu ou
do Inferno, mas encontraremos o esplendor de uma realidade viva, em que as
constelações e as galáxias se estenderão aos nossos olhos como revelações da
nossa verdadeira natureza de herdeiros de Deus e co-herdeiros de Cristo,
segundo a conhecida expressão do Após. tolo Paulo. No tocante a Jesus de
Nazaré, muitos ficarão decepcionados com a perda das lendas piedosas do
nascimento virginal, dos anjos cantando no horizonte, dos pastores ajoelhados na
neve dos campos, do burrinho humilde bafejando o deus--menino, da estrela
pegureira conduzindo os Reis Magos e assim por diante. Mas em compensação,
perderão também os mitos da atrocidade e da perfídia, como a matança herodiana
dos inocentes em Belém de Judá, a fuga angustiosa para o Egito, o do poder do
Diabo sobre o Cristo. Mas as criaturas, ao compreender os problemas do
espírito, sentirão maior emoção e mais justo encantamento na simplicidade e
pureza do nascimento em Nazaré, na casinha humilde da numerosa família de José
e Maria. Enquanto Jesus nascia na pobreza de um lar de carpinteiro, sob a
espectativa piedosa do Messias anunciado e até hoje esperado, seus irmãos e
irmãs brincavam alegremente ao redor da casa e Maria e José agradeciam a Deus,
a bênção de mais um filho. Há muito mais grandeza espiritual e beleza humana
nesse quadro simples, emocionante, do que em todo o aparato mitológico de uma
encenação celeste, copiada das mitologias da Babilônia, do Egito, da India e da
própria Grécia. A imaginação humana se encanta facilmente e se deixa embalar
através dos séculos e dos milênios, com estórias fantasiosas. A invenção é o
fazer do homem no imaginário e ele se entrega alegremente às ilusões do seu
poder criador, na imitação de Deus, como a criança imita com prazer o pai ou a
mãe. Mas um dia, a criança será adulta e se libertará das suas próprias
ilusões, que lhe eram tão caras. Da mesma maneira, a Humanidade entrega-se às
atividades lúdicas em tempos de espera, mas chegará a hora do seu amadurecimento,
em que ela só se contentará com a realidade. A razão do mito está nas funções
ontogenéticas da espécie. O ser se desenvolve biologicamente, como um organismo
que amadurece, criando condições, nas fases sucessivas da idade, para a
manifestação
dos poderes do
espírito através das funções orgânicas. E assim como existem os fenômenos de
retardamento do processo, nas formas do infantilismo biológico ou psíquico de
certos indivíduos, também existem as formas de infantilismo coletivo, de que se
aproveitam os líderes dos vários setores sociais, para manterem em seu favor os
prejuízos do retardamento de grupos ou de populações inteiras. Mas nem sempre,
essas lideranças agem com premeditação ou de má fé. São levadas por impulsos da
atividade criadora, dirigidos por idéias padrões geradas pela necessidade
exigente de estruturação social. Se alguém se atreve a examinar essas idéias e
combatê-las, mostrando o engano em que se fundam, arrisca-se à condenação das
lideranças. Jesus de Nazaré, via com clareza absoluta, os prejuízos da confusa
e enganosa organização judaica e teve a coragem de denunciá-los. Pagou caro
esse atrevimento, mas rompeu o açude da estagnação cultural do tempo e inundou
o mundo com as suas idéias renovadoras. Perdeu até mesmo a sua condição humana,
transformando-se em novo mito de uma nova mitologia. Mas advertiu que a hora da
verdade, soaria de novo no relógio implacável do tempo. Essa hora soou e as
suas pancadas sonoras nos conclamam à realidade. Seria inútil querermos
disfarçar a gravidade dos problemas que nos desafiam. As leis da evolução
humana, se entrosam naturalmente nas leis gerais do Universo. Os séculos e os
milênios, não são mais do que gotas d'água na clepsidra da evolução. Pingam
lentamente, com a impassibilidade das leis naturais, e o seu ritmo ascendente é
irreversível. As grandes construções fantasiosas da Antiqüidade, que dominaram
por milênios, transformaramse em ruinas, mas das próprias ruinas, como
demonstrou Ernest Cassirer, os novos tempos recolheram o que nelas havia de
válido. O Cristianismo mitológico está começando a pagar o seu tributo, mas
apesar de todos os seus absurdos e contradições, deixará também o saldo
positivo dos que nele lutaram de alma pura, convencidos de batalharem para a
sustentação de uma ordem necessária. Na existência dos homens e de suas
instituições — já que a existência é sempre subjetiva o que vale são as
intenções. Mas os que nada mais fizeram do que acomodar-se nas situações
criadas, repelindo a verdade em nome de interesses imediatistas, é certo que
terão de resgatar o seu débito nos guichês exigentes da consciência. Jesus de
Nazaré, disse certa vez aos fariseus que com ele discutiam: "Até agora,
não sabieis e não tínheis pecados, mas agora dizeis que sabeis e o vosso pecado
subsiste". Esse é um veredito autógeno, pronunciado pelos próprios réus,
que não puderam disfarçar as suas culpas, nem fugir à sua responsabilidade
intransferível. Há uma ordem moral intangível, inscrita na consciência humana.
Aos que negam a existência dessa ordem, não natural como a da Natureza, Bergson
respondeu em definitivo com a sua pesquisa das fontes da Moral e da Religião,
as duas coordenadas intemporais da evolução humana. A Moral é a instauração do
Bem, a Religião é a orientação da transcendência. As instituições morais e
religiosas, nascem das exigências da consciência, precárias ou não, são apenas
instrumentos transitórios da evolução humana.
XII - O MITO DA
RAZÃO
Nossa confiança
na Razão é instintiva, o que a torna suspeita. As categorias da Razão
preexistem na mente. A Razão se desenvolve na experiência, classificando os
dados da percepção. Mas como a percepção é falha, e não raro enganosa, a Razão
também é falha e pode enganar-nos. Esse raciocínio clássico nos leva à busca de
meios anti-racionais de avaliação: a intuição, a vontade, o sentimento, o
inconsciente, gerando teorias e posições filosóficas. Nas Religiões, a Razão é
uma Serva da Fé, como vimos na Escolástica. E a Fé se apresenta como a Razão
Divina àquele que crê. A Fé é um mito confuso e dependente da Razão que a
serve. Aquele que crê, deve ter uma razão para crer. No Cristianismo, em
sentido geral, a crença nasce da aceitação da verdade divina de que Jesus de
Nazaré é o Messias, o Cristo, o Ungido de Deus. Mas a aceitação não é apenas um
ato de vontade, é também e antes da vontade, um ato de discernimento e
compreensão, portanto de razão. O mesmo se dá nos outros planos citados, onde a
procedência da Razão, de uma forma ou de outra, é a condição primeira da
revolta contra a Razão. Como posso discordar disto e aceitar aquilo sem
recorrer ao juízo, que é função racional? Aquele que, para sustentar os seus
princípios religiosos, afirma-se homem de fé, despreza o fundamento da sua
própria fé. Essa contradição é inerente ao existencial, que é intrinsicamente dialético.
Isso levou Kant, a estabelecer os limites da Razão no relativo: Além deste, se
penetramos no absoluto, a Razão não funciona. Mas como conceber o absoluto, sem
o precedente relativo da Razão? Platão, no fim de sua vida, dizia não poder
traduzir em palavras, as suas mais altas intuições. Essa mesma declaração de
impotência, é um ato de Razão e sem a Razão, não poderia ser feita. O Mito da
Razão, como todos os mitos, tem suas raízes no real. Se a maioria dos
pensa-dores acredita na Razão, e nela confia, isso acontece pela simples razão
de que é ela o único instrumento realmente apropriado à investigação do real,
de que dispomos. Assim, o que se convencionou chamar de Mito da Razão, em
reduzidos grupos intelectuais ligados, ao mesmo tempo, ao ceticismo e ao
fideísmo, é uma imagem falsa da Razão, semelhante à deusa simbólica da Religião
de Chaumette, na Revolução Francesa. Os que confiam na Razão, não fazem dela um
mito, pois conhecem o problema das instâncias do processo do conhecimento e das
inter-relações dessas instâncias. Alega-se que a Razão é um processo linear do
conhecimento, e por isso mesmo, primário. Que ela não dispõe de recursos para
uma penetração profunda no real, o que leva o Racionalismo a conclusões
apressadas e superficiais, sobre questões complexas como a do Ateísmo e da H.
Mas essas alegações é que são realmente superficiais, pois a Razão não funciona
isolada, nem poderia assim funcionar, desde que está naturalmente ligada a toda
a estrutura biopsíquica do homem. Situada na mente supraliminar ou mente de
relação, a Razão tem suas raízes na mente subliminar ou inconsciente, de onde
provêm as condições prévias das categorias racionais. Bastaria esse fato, para
provar o absurdo da luta contra a Razão, em nome de poderes mais amplos e profundos
da natureza humana. E evidente, que estamos diante de um dos grandes equívocos
culturais do nosso tempo, que revela lamentável incompreensão da unidade ôntica
do homem. Não é a Razão um departamento estanque da personalidade, mas a cabina
de controle das experiências gerais do Ser (ou onto — do grego) para a sintonia
deste com a realidade exterior. Se do inconsciente afluem elementos para o
consciente, graças à permeabilidade do liminar da consciência, e se a própria
consciência preexiste no ser em desenvolvimento, como elemento inegável de sua
facticidade, é claro que a Razão faz parte de uma unidade ôntica, que envolve
todas as possibilidades do Ser. A Razão, só pode ser superada por si mesma, com
a absorção gradativa das potencialidades ônticas em desenvolvimento, na
sucessão das experiências existenciais. Os instintos, que são as formas
trópicas-embrionárias dos sentimentos, desenvolvendo-se sob a ação de
necessidades vitais do organismo (como as raízes de uma planta avançam por
tropismo, na direção da água do subsolo) na direção da emotividade,
transformam-se em vetores psíquicos do inconsciente que atingem a Razão e nela
se integram. Da mesma maneira, as introjeções detectadas pelo processo
psicanalítico percorrem o caminho contrário, enriquecendo a instância
subliminar com os dados da experiência existencial. As pesquisas metapsíquicas
de Richet e as pesquisas parapsicológicas atuais, confirmam esse processo nos
resultados das experiências telepáticas, onde o pensamento não é o único
elemento transmitido pela mente, pois as sensações, emoções, anseios,
preocupações — e não raro, as circunstâncias em que o agente se encontra e a
sua própria voz — são também transmitidas no complexo de uma comunicação. A
própria palavra telepatia já indica, nos seus componentes, que o fenômeno é de
transmissão global do pathus individual do agente. Por outro lado, é preciso
considerar que a intuição, considerada uma forma de captação global do objeto
pela mente, superior à forma linear da Razão, não é mais do que um desenvolvimento
da própria
Razão, que atinge
a sua plenitude tridimensional do nosso plano existencial, para captar a
totalidade do objeto. A História da Matemática, nos mostra o processo dessa
evolução da Razão no sistema progressivo das tribos selvagens, que contam os
objetos segundo o número de dedos das mãos, avançando depois aos dedos dos pés,
o que revela a estreita ligação do pensamento primitivo aos objetos. Na
proporção em que o pensamento se desprende do concreto, para a abstração dos
conceitos numéricos, a sua capacidade de percepção aumenta. A Gestalt ou
Psicologia da Forma, oferece-nos os dados da percepção global, como um reforço
a esta teoria da globalidade da Razão. Os teólogos que se referem à Mente
Divina desenvolvida pela fé, tentando reduzir a Razão a uma função inferior do
homem, através de sua mente limitada, cometem dois erros graves. Esquecem-se de
que o conceito de divindade, na própria tradição judeu-cristã, aplica-se também
à natureza espiritual do homem, e negam a capacidade do espírito para a
percepção das realidades extra-físicas, o que vale dizer metafísicas. No anseio
de defender os pressupostos irracionais da sua dogmática, negam as palavras de
Jesus aos judeus: "Não está escrito nas vossas Escrituras que vós sois
deuses?" A concepção teológica da Fé, como carisma, graça especial
concedida aos eleitos, contradiz e opõe-se violentamente às conquistas
científicas do nosso tempo, e contraria de maneira flagrante, os princípios
bíblicos e evangélicos que estabelecem a semelhança e a unidade entre o Criador
e a criatura. A tentativa de separar Razão e Fé, só tem um sustentáculo, e esse
mesmo ilógico: a conceituação da Fé como mistério e privilégio, o que viola o
preceito de que Deus não faz acepção de pessoas. A própria Justiça Divina, e
conseqüentemente, a perfeição do Ser Absoluto, são feridas de morte, por esse
golpe de espadachins mal preparados. Quanto aos irracionalistas, ateus ou
céticos, materialistas ou agnósticos, tomam nesta questão uma posição equívoca.
Os que consideram o homem como um epifenômeno, uma casualidade, um produto
ocasional de aglutinações aleatórias de forças e elementos naturais, como podem
querer atribuir-lhe a capacidade divina de avançar além dos recursos da Razão?
A posição dos materialistas, que se orgulham de haverem construído o saber
humano à revelia da Sabedoria Divina, é, pelo menos, conseqüente. Não obstante,
se esquecem de que todo o saber humano decorre de uma fonte para eles
desconhecida. Caindo no dogma da alienação — nova forma do dogma da queda no
Eden — os marxistas negaram o espírito, alienando o seu mais poderoso
instrumento racional: a Dialética. Por preconceito e precipitação, esquecidos
da lição de Descartes, reduziram o processo dialético à intimidade da matéria.
Excluído o princípio espiritual da realidade universal, nadificaram o homem e o
mundo. A realidade dinâmica e transparente tornou-se mecânica e opaca. Daí a
insistência nas referências à opacidade do mundo e à frustração do homem. O
homem sem espírito, lançado ao léo num mundo mecânico de matéria, sem outra
perspectiva que a bôca do túmulo, só poderia cair no desespero e na frustração.
O aviltamento da Razão, nesse estranho processo de um racionalismo
antidialético, reforçou a posição das correntes obscurantistas do religiosismo fanático
e dos grupos isolados de irracionalismo incoerente. Esse é o drama da Razão em
nosso tempo. Essa a razão do Mito da Razão, figura dúplice, que tem um rosto
voltado para o passado sombrio e outro rosto voltado para o futuro vazio. Prêso
nesse dilema desesperante, como um animal encurralado em si mesmo, o animal
humano, cai na atração do mundo submerso do seu inconsciente e reage como um
órfão da Razão. Ao Cristo crucificado, opõe um Cristo que só agora ressuscita,
e por isso mesmo, esquecido do seu passado longínquo, uma espécie de cristo sem
dimensão espiritual, que alegre-mente se entrega ao viver airado do mundo. O
sonho da liberdade humana, apagou-se sob os cogumelos genocidas de Nagasaki e
Hiroshima. O sadismo e o masoquismo conjugados, geraram a última floração de
uma tecnologia requintada: as técnicas do terror e da tortura. As doutrinas da
dignidade humana, não encontram sintonia ou ressonância nas mentes desvairadas
e aterrorizadas, que só podem sintonizar-se com as doutrinas, com as teorias do
fatalismo, do determinismo e do suicídio, na loucura artificial dos tóxicos.
Nem a loucura tem mais o direito de ser natural. Esse quadro aviltante, parece
contrastar com o desenvolvimento cultural acelerado, mas apenas parece. Porque
esse mesmo desenvolvimento tem por finalidade, na determinação das cúpulas
dominantes, a disputa do poder. E este, por sua vez, não tem mais a
legitimidade lírica da vontade popular, mas a imposição brutal e impiedosa, dos
que detêm em suas mãos os raios fulminantes do Júpiter atômico. Os ideais de
igualdade, liberdade e fraternidade morreram no mundo, quando o louco de
Nietzsche encarnou-se em Hitler, esse Quixote às avessas, que tinha por
Dulcinéia, a Medusa da ambição desmedida e por Sancho Pança, a figura pança de
Mussolini. Estas imagens não são literárias, mas históricas, numa tentativa de
interpretar o panorama atual do mundo sem razão, e, portanto, sem sentido em
confronto com um passado de símbolos destruídos. Hoje, os símbolos estão
proibidos. A imaginação, função criadora da Razão, morreu exangue nos últimos
partos da mãe. A inflação das palavras é maior que a das moedas. Todos os
Evangelhos tornaram-se apócrifos. Esse é o salário de
dois milênios de
adulteração sádica e minuciosa, do ensino espiritual de Jesus de Nazaré. Há
homens de gênio, ninguém pode negá-lo, mesmo em meio às loucuras atuais. Os
homens de gênio revolucionam a História. Muitos deles foram considerados como
deuses. Essa é a técnica inconsciente de neutralizá-los, de afastar os pastores
do rebanho. Conferir a alguém a divindade na Terra, é neutralizá-lo. Jesus de
Nazaré não foi um deus, mas um gênio. Sua divindade não estava e não está nos
bálsamos com que o ungiram no mundo, antes e depois da morte. Estava e está, na
grandeza e na profundidade da sua visão do futuro, do seu conhecimento absoluto
da natureza humana. Os gênios, como demonstraram Frederic Myers, Henry
Sidgurick e Edmond Hurneym, em A Personalidade Humana, não são deuses
mitológicos nem deuses-astronautas, mas criaturas humanas que desenvolveram
suas potencialidades em alto grau. São arquétipos reais, modelos vivos do que
todos nós poderemos ser, se orientarmos a nossa conduta pelo padrão flexível
que eles nos oferecem. Mas a nossa miopia espiritual, nos leva a esquematizar
esses padrões luminosos em dogmáticas ossificadas. Não há exemplo maior e mais
chocante dessa esquematização do que o crucifixo. Toda a leveza do espírito,
toda a sutileza dos conceitos, toda a labilidade da Razão, se sedimentam nas
duras e opacas representações materiais. Por isso, os hebreus perceberam que
Deus não podia ser figurado por mãos humanas. Zoroastro indicou o fogo, como
única representação possível da Divindade e até mesmo a deusa Vesta, reduziu o
seu culto a uma chama permanente na ara do templo vazio, onde as vestais
silenciosas velavam pela sua pureza. A alegação de que dessa maneira negamos a
divindade de Jesus, procede do sectarismo arrogante, que se considera infalível
em suas decisões e em seus conceitos. O conceito de divindade não se restringe
a uma fórmula supostamente sagrada. Um espírito que, por sua evolução
espiritual, supera a condição humana, diviniza-se. E como se poderia considerar
Deus a um homem histórico, que se dizia filho de Deus coma todos nós e
acentuava ao mesmo tempo a sua condição de filho do homem? As pesquisas de
Myers, Sidgúrik e Gurney, revelaram a dinâmica divina da intuição genial. A
consciência subliminar, guarda toda a riqueza das experiências e conquistas das
existências anteriores do Ser, no plano espiritual e no plano existencial. É a
consciência destinada a funcionar após a morte. A consciência supraliminar se
forma nas relações de cada existência e se aplica à vida terrena. Mas, como já
vimos, o psiquismo é uno e existe sempre a relação entre as duas consciências.
Basta o cintilar de uma idéia na consciência supraliminar para atrair ao seu
plano o arquétipo oculto nas profundezas da consciência subliminar. A
permeabilidade do limiar da consciência, dessa linha divisória que separa o
passado do momento presente, permite a dinamização da mente atual pelas
riquezas submersas de vivências anteriores. Assim, genialidade e divindade são
fases distintas da evolução humana. O Gênio traz o seu lastro, o Ser Divino é
atualização pura, desprovido de lastros ocultos, não sujeito à mecânica dos
corpos carnais, onde a hierarquia das instâncias psicológicas da personalidade
se alista às condições orgânicas de um processo fragmentário e relativo de
percepção. Jesus de Nazaré, como demonstrou Kardec, só se mostrou como entidade
super-humana após a ressurreição. Mas assim mesmo, fez questão de mostrar que o
seu corpo espiritual correspondia ao nosso, quer ceiando na Estrada de Emaus
com os discípulos que não o haviam reconhecido, quer fazendo Tomé tocar em suas
mãos materiais, as chagas da crucificação, o que levou todos a pensarem que ele
ressuscitara em seu próprio corpo material. Qual a instituição terrena, que
teria saber e autoridade para classificá-lo como uma espécie de instância da
personalidade Divina? De onde veio essa autorização tardia, essa investidura
divina? Na era mitológica em que Jesus nasceu, a crença era imposta pela
tradição e sob as ameaças supersticiosas. Não acreditar nos deuses, era desafiá-los
e ficar sujeito às suas represálias terríveis. Jesus não se utilizou desses
métodos de coação, nem autorizou ninguém a usá-los. Não obstante, as igrejas
que se formaram em seu nome, não conseguiram livrar--se do clima da época. O
credo quia absurdum (Creio, mesmo que absurdo) foi instituído pela Igreja, como
uma forma típica de coação mitológica. E os que não aceitaram a eficácia dessa
fórmula, apelando para os direitos da Razão, foram racional-mente incinerados
em vida, na pressuposição de que obteriam a glória da, vida eterna. A Divindade
de Jesus tornou-se um tabu agressivo origem de perseguições, maldições,
torturas e mortes horripilantes. A Razão, transformada em mito vingativo,
sancionava os decretos desumanos. Jesus ensinou, que pelos frutos se conhece a
árvore. Uma lição simplória, digna de um camponês da era agrária e não de gênio
ou um deus, mesmo mitológico. Não obstante, uma lição apropriada à época e que
até hoje a nossa civilização não aprendeu. Em nosso século, Gandhi, que não era
cristão, depois de ler o Sermão da Montanha, perguntou a um missionário inglês,
na Índia, como se explicava a contradição entre os frutos do Cristianismo em
seu país e a árvore espiritual do Evangelho. A explicação não poderia ser dada
pelo pastor, pois implicaria no aviltamento da Razão, pelas instituições
humanas que se fizeram, por conta própria, herdeiras do Mestre. Não há nenhuma
possibilidade de se reajustar o Cristianismo oficializado pelo Império Romano,
ao Cristianismo espiritual de Jesus. A gigantesca estrutura da Igreja é o
último resíduo do Império dos
Césares. Só nos
resta devolver a César o que é de César e dar a Deus o que é de Deus. A
pré-ciência de Jesus, confirma-se neste momento crítico da evolução terrena. O
Cristianismo marginal, como viu Stanley Jones, é o único que se aproxima do
Cristianismo do Cristo. Mas o que Stanley Jones queria dizer por Cristianismo
marginal? Não seriam as numerosas seitas que enxameiam ao lado das Igrejas
Católicas e Protestantes, pois todas elas estão carregadas de heranças judaicas
e pagãs. Lembrando declaração semelhante do Rev. Haraldur Nilson, tradutor da
Bíblia para o irlandês, em seu livro O Espiritismo e a Igreja, só podemos
aplicar a expressão ao movimento espírita. Porque esse movimento livre não se
converteu em igreja nem instituiu hierarquia clerical ou sacramentos em seu
culto pneumático, dando continuidade natural ao culto apostólico. Além disso, o
movimento espírita é o único a manter os princípios cristãos da reencarnação,
da pluralidade dos mundos habitados, da encarnação natural de Jesus, da fé
racional e assim por diante. Sobretudo, o princípio espírita da caridade, de
amor ao próximo e socorro aos necessitados, sem qualquer discriminação ou
exigência de tipo sectário, é o que mais aproxima esse movimento do
Cristianismo livre e sem compromissos mundanos, ensinado e exemplificado pelo
Cristo. A ausência de resíduos mitológicos e mágicos, idolátricos e
sincréticos, sob a orientação de uma doutrina racional e científica, dão ao
movimento espírita, a posição de único desenvolvimento possível do Cristianismo
primitivo. As objeções até agora levantadas contra essa posição, decorrem de má
fé ou ignorância. A mediunidade não é um resíduo mágico, mas a continuação
esclarecida da tradição profética; o passe é a prática da imposição das mãos
usada pelo Cristo e ensinada por ele aos Apóstolos; a água-fluídica, se funda
na teoria de absorção pela água de vibrações mentais. Todos esses processos,
por sinal, estão hoje confirmados pelas pesquisas parapsicológicas dos fenômenos
paranormais. O problema da existência dos espíritos e sua possibilidade de
influir nas atividades humanas, tão combatido e ridicularizado, também já foi
solucionado positivamente pelas investigações científicas de psi,
particularmente no tocante aos fenômenos teta. O que para a Ciência de ontem
parecia simples alucinação, hoje constitui realidade comprovada em experiências
de laboratório. Só as mentalidades rigidamente fechadas à investigação nesse
campo, e por isso mesmo anticientíficas, dominadas por preconceitos e
idiossincrasias — ou, como quer Remy de Chauvin, alérgicas ao futuro — tomam
atitudes apaixonadas a respeito. Claro que não se pode impedir, no meio
popular, a remanescência de resíduos supersticiosos nas práticas espíritas, mas
isso se deve não só à ignorância do povo, como também, e, principalmente, aos
condicionamentos provindos dos meios religiosos tradicionais. No julgamento
honesto da questão, esses condicionamentos não podem ser esquecidos, tanto mais
que os espíritas conscientes dos princípios de sua doutrina, são os primeiros a
condená-los e denunciá-los, como influências estranhas e prejudiciais. Não é
estranho que o povo, simples e desprovido de recursos culturais, não consiga
entender o sentido de uma doutrina poderosamente racional, cevado que foi, por
milênios, na irracionalidade das bênçãos e maldições em nome de Deus. Mas é
profundamente estranho que homens de cultura, acostumados ao raciocínio lógico
e científico, ciosos de sua cultura universitária, continuem a ruminar incongruências
e a digerir, à força de enzimas artificiais, alimentos deteriorados pelos
séculos. Essas criaturas, dominadas por um infantilismo alimentar, devem sofrer
de insuficiência cerebral episódica, quando se vêem diante de problemas
relacionados com o tabu do Sagrado. Tremem à simples visão de uma opa vermelha
e o terror do pecado traumatiza-lhes a mente. São os principais responsáveis
pelo atraso do povo, ainda apegado a práticas mágicas e supersticiosas, nesta
hora de profunda renovação dos valores culturais. O desconhecimento das
questões religiosas pelo povo é perfeitamente justificável, quando sabemos que
o povo esteve sempre alheio aos estudos especiais e secretos, reservados à
formação do sacerdócio, intermediário exclusivo e divino entre os pobres de
espírito e os magnatas da Sabedoria Absoluta. O povo foi sempre o rebanho,
ameaçado em seus farrapos de ignorância pelos cajados de ouro dos pastores de
Deus. Durante séculos, os homens do povo não tiveram sequer acesso à leitura
dos textos evangélicos. Para evitar as interpretações perigosas, que geravam
heresias capazes de levar multidões ululantes ao fogo eterno do Inferno, os
homens do povo só deviam ouvir as interpretações dos pastores dotados de
sabedoria infusa e do terrível poder das maldições e das excomunhões
irreversíveis. O cheiro de enxofre do Diabo, provocava desmaios nos castelos e
nas choupanas e as pegadas do Caprípede, marcavam os jardins da castelã e os
trilhos do mato, que levavam a serviçal humilde e trêmula, que ia buscar a água
pura da fonte. O terror do Maligno, se emparelhava com o temor de Deus. As
criaturas lançadas na Terra entre essas duas ameaças, igualmente apavorantes,
carregam os seus traumas através das vidas sucessivas. O problema dos
Evangelhos, tornou-se uma fonte inexaurível de lendas absurdas. Até hoje, a
crença geral é a de que os chamados Evangelhos Apócrifos, guardam segredos
sobre a vida de Jesus que nunca serão revelados. Acredita-se que os Evangelhos
Canônicos, os quatro Evangelhos conhecidos, foram selecionados milagrosamente
para serem divulgados. Não obstante, os Evangelhos
Apócrifos nada
mais são do que cópias posteriores, acrescidos de lendas ridículas e sem nenhum
valor histórico. Era tamanha a confusão no seio do povo, que o feitiço muitas
vezes virava contra o feiticeiro. As vésperas da Era Cósmica, quando os homens
já pisaram o chão da Lua, para espanto e pavor de tantas criaturas ingênuas,
não é possível que homens de cultura superior e de inegável capacidade
intelectual, insistam na defesa de um acervo de erros e absurdos
institucionalizados em nome de Deus. As reformas iniciadas no Cristianismo
Oficial assustaram os fiéis, ao mesmo tempo provocaram reações nos, clérigos
leigos do meio universitário. Basta isso, para se poder avaliar a deformação
causada, não apenas no Cristianismo, mas também nas mantes que se entregaram no
passado a essa tarefa inglória. Não se pode querer sanar essa situação
alarmante, através de medidas drásticas. Não se cura em alguns dias, meses ou
anos, um mal de milênios. Mas os homens carregados de responsabilidade
cultural, estão no dever inalienável de rever suas posições e tratar de reparar
os males cometidos. Justifica-se a ignorância do passado, mas não se pode
justificar de maneira alguma a insistência, no presente, na sustentação desse
clima de ignorância em torno de problemas fundamentais para toda a Humanidade.
A inteligência tem os seus deveres a cumprir, especialmente em momentos como
este que estamos vivendo. Cristãos de todas as denominações religiosas, não
encalhados no cais da traição à verdade, estão sendo chamados a realizar, com
urgência, a revisão necessária do Cristianismo, em defesa do Cristo traído e
das multidões enganadas. E, além disso, em defesa e resguardo de suas próprias
posições cristãs, porque as novas gerações que povoarão a Nova Terra e
invadirão o Novo Céu do Apocalipse, não lhes perdoarão o erro fatal, cometido
no passado e sustentado inexplicavelmente no presente. Jesus de Nazaré declarou
certa vez, segundo relatam os Evangelhos, que todo pecado será perdoado ao
homem, menos o pecado contra o espírito. Não importa a interpretação que se
tenha dado a essa advertência, nos tempos de ignorância e terror. O necessário,
agora, é reparar esse pecado capital contra o Espírito do Senhor e do seu
Evangelho. As pesquisas universitárias sobre as Origens do Cristianismo,
realizadas por especialistas de competência e honestidade mundialmente
reconhecidas, reuniram o acervo de provas necessárias à realização do grande
empreendimento. Não são homens comprometidos com nenhuma seita ou religião
cristã e com nenhuma posição anti-religiosa. Seus trabalhos exaustivos, revelam
a mais pura dedicação à verdade histórica. Não é possível desprezá-los sem
graves conseqüências para o Cristianismo, cuja missão maior, corresponde
precisamente a esta hora de transição da apavorante Civilização Tecnológica
para a Civilização do Espírito. As dimensões do mundo se ampliam, ante as novas
e revolucionárias descobertas científicas. Verdades milenarmente ocultas nos
encaram neste momento com olhos espectantes. Não há espectação maior e mais
apavorante do que a das vítimas soterradas no silêncio convencional dos
milênios. Esta é a hora do Juízo Final, de todo um ciclo que os cúmplices e as
testemunhas tenham a coragem de manifestar-se.
XIII - MATÉRIA,
MITO E ANTIMATÉRIA
Na atual
perspectiva científica, o Cristianismo aparece, históricamente, como o
postulado da Ciência. Jesus de Nazaré postulou o conhecimento futuro de toda a
realidade em que vivemos. Ensinou que essa realidade se estrutura em leis
permanentes e invioláveis, que uma vez conhecidas, nos dariam o domínio do
real. Se percebia os primeiros frêmitos da palingenesia, do nascimento de um
novo mundo, como acentuou Guignebert, também anunciou a palingênese natural do
morrer e renascer do homem, a estrutura cósmica das muitas moradas as relações
psicofísicas de alma e corpo, a flexibilidade da matéria considerada como densa
e estática, a possibilidade de ação mental e psíquica sobre o corpo, a
importância dos sentimentos e pensamentos no comportamento individual e social,
o predomínio do espírito sobre o corpo e a existência do corpo espiritual,
provando essa existência no ato da sua própria ressurreição. Sua posição não
foi a de um místico apegado às esperanças do povo, mas a de um sábio que
conhecia as leis da metamorfose universal das coisas e dos seres e nelas
confiava. O seu ato de entrega à crucificação, à destruição da morte, para a
ressurreição posterior, que de fato realizou-se, prova o seu conhecimento
seguro e perfeito das leis psicobiofísicas, da realidade mitolizada pela
ignorância do tempo. Sua previsão quanto à deturpação do seu ensino, e a
necessidade de seu restabelecimento futuro, e sua promessa de enviar no tempo
devido, o socorro espiritual para conduzir os homens a toda a verdade,
demonstrava o seu conhecimento racional e seguro das leis da evolução natural e
cultural. Renan, Guignebert e todos os pesquisadores que se colocaram entre
ambos, em nosso tempo, não compreenderam a amplitude da sua visão científica e
histórica do mundo, porque só em nossos dias, essa visão começaria a ser
compreendida, graças à revolução científica da atualidade. Essa a razão por que
Guignebert, entendeu que ele não se preocupava com o futuro longínquo. Mas foi
fácil a Guignebert compreender que ele não pretendia fundar nenhuma Igreja, e
nem mesmo reformar nenhuma religião, por isso ressaltava da lógica imediata da
sua posição, que confirmava os anseios de transcendência humana, nas aspirações
mal compreendidas e mitolizadas do povo judeu. Só o tempo poderia provar, como
hoje prova, que a visão de Jesus não se restringia àquelas esperanças, mas a
toda a verdade que iria surgir nos séculos posteriores ao seu ensino. A própria
natureza do Mito, que ele combatia, não poderia ser compreendida, sem o prévio
e real conhecimento da natureza da matéria, que só agora se desvenda, pouco a
pouco, aos olhos atônitos dos homens. Porque o Mito, como dissemos, é um
produto do real, quando vislumbrado apenas em sua manifestação superficial. As
afirmações anteriores das grandes correntes espiritualistas, segundo as quais a
matéria era ilusória, só convenciam os homens de tendência mística. Era
necessária a prova científica dessa realidade, para que os homens em geral,
começassem a compreender o sentido dessas afirmações. A matéria, como a viamos
até fins do século passado, era mito e não realidade. O homem real, vivendo seu
corpo material sobre a crosta sólida do planeta, morrendo e desaparecendo numa
cova, nada tinha de real, era apenas uma criação imaginária, elaborada com os
dados falsos dos nossos sentidos de percepção. E foi esse mito, que os
materialistas quiseram transformar na única realidade possível, menosprezando
os que se recusavam a aceitá-lo. O Mito da Matéria, estranha entidade
metafísica que subvertia a realidade, e mostrava-se inteligente, ativo e
dominador, como os mitos da Grécia e de Roma. Repudiando os deuses olímpicos,
que eram figurações antropomórficas dos vários aspectos da Natureza, os
cientistas erigiam a Matéria em Deusa Absoluta. Tudo procedia dela e sem ela
nada existia. Daí a elevação do nosso sensório, à categoria de medida do mundo,
como quisera Protágoras, o sofista. O Espírito foi simplesmente caracterizado,
como um epifenômeno produzido pelos misteriosos e inexplicáveis poderes da
Matéria. Essa inversão total da realidade, é típica do processo mitológico, no
esforço de racionalização do mundo. A Razão, que era também definida como
função cerebral, produzida pelas potências desconhecidas da caixa craneana,
submetia-se à Deusa Matéria, usando os seus instrumentos de medida e pêso, para
classificar o real e rejeitar o imaginário. Basta esse rápido apanhado, para
nos mostrar que são formas de interpretação do mundo. E a validade dessas
interpretações, depende do grau de aproximação ao real que elas revelem. Não
havendo nenhuma possibilidade de avaliação desse grau, no momento em que a
interpretação se impõe coletivamente, seja como Mitologia ou como Ciência, ela
se converte na realidade possível daquele momento histórico. Mas, no futuro,
quando o desenvolvimento da Razão na experiência, revelar as falhas e os
enganos da interpretação, as revisões do conhecimento exigiram a reformulação
da realidade suposta, em termos de atualização cultural. Jesus de Nazaré,
revelou pleno conhecimento desse processo, como se vê na parábola evangélica do
fermento que leveda a massa de farinha. De
maneira mais
positiva, esse conhecimento transparece da promessa de restabelecimento dos
seus ensinos no futuro, quando permitissem o esclarecimento de princípios
incompreendidos ou mal interpretados. A atividade de Jesus foi puramente
didática, e seus objetivos eram puramente éticos. Daí a razão porque
Guignebert, entendeu que ele não pretendia fundar nenhuma religião, nem
reformar o Judaismo. A verdade histórica confirma a primeira assertiva, mas não
a segunda, pois Jesus, operando no meio judaico, teria de reformular, como
realmente o fez, muitos conceitos do Judaismo, destruindo alguns e formulando
outros. Neste sentido ele foi, sem dúvida possível, um reformador do Judaismo.
A História da Igreja Primitiva mostra de sobejo, como se vê no Livro de Atos, a
ação reformadora de Jesus, através dos seus apóstolos e discípulos. E nem podia
ser de outra maneira, pois se Jesus simplesmente endossasse a posição judaica, nada
teria feito de novo, nenhuma aproximação da realidade teria sido feita por ele.
O exame crítico das origens do Cristianismo, prova suficientemente que Jesus
virou o Judaismo pelo avesso, ampliando a Aliança a toda a Humanidade, com as
devidas modificações de dogmas e preceitos. Como sempre acontece, nas fases
críticas da evolução humana, as forças retrógradas, manifestadas em Jerusalém,
encontraram na Europa, o campo propício à organização de sua resistência. Não
se trata de uma premeditação ou providência individual ou de grupos, mas da
ação natural da lei de inércia, do instinto de conservação. A queda de Roma,
com a invasão dos bárbaros, permitiu a ascensão da Igreja e o desenvolvimento
do sistema medieval, em que, por todo um milênio, completou-se a desfiguração
de Jesus e a deturpação do Cristianismo. Wilhelm Dilthey chamou a Idade Média
de caldeirão. Nesse fervente caldeirão de paixões, ambições e loucuras,
forjou-se a consciência do Ocidente, enquanto o Oriente tentava resistir em
Bizâncio. Ainda hoje, encontramos nos intelectuais europeus, constantes
manifestações de uma nostalgia do Milenário, dessa horripilante fase de
estagnação turbulenta, em que o arbítrio e a arrogância do Império morto, se
vestiu de púrpura para tentar deter a rota da História. Todos os formalismos
pretensiosos, todas as disciplinas esmagadoras, todo o prestígio do Sagrado,
ali se mesclaram e se entrechocaram, numa aparência de unidade exterior que
dava segurança aos que pactuavam com a volta a César. Desse chão fecundado pelo
sangue dos inocentes e pelas lágrimas dos impotentes, nasceu a floração bárbara
das torturas e das matanças covardes, que se arrebentariam em frutos de
destruição e morte, nas guerras mundiais do nosso tempo. É dessa amarga raiz
que revelam estranha nostalgia intelectuais europeus, que sentem novamente a
insegurança de suas posições e privilégios, nesta nova fase crítica da vida
planetária. Os ideais gregos de um mundo estético e ético, harmonioso e
perfeito, redespertados na Renascença, abriram as possibilidades de revisão dos
valores antigos, para a reformulação de utopias como a da República de Platão,
ao mesmo tempo que os sonhos do individualismo ateniense e as aspirações
jônicas da busca da verdade, incitavam a Ciência a romper os limites do mecanicismo
autosuficiente. Abriram-se as entranhas misteriosas da matéria e nela se
reencontrou o espírito. Deu-se então, início à revisão total às Ciências, num
salto mortal às profundezas do infinitesimal e, à essência do Ser e à
imensidade do Cosmos. Os mitos morreram e a realidade se desdobrou em
grandezas, até então inimagináveis. Foi esse o maior milagre do Cristo,
produzido pelo poder do seu pensamento e da sua vontade, dois milênios após a
sua derrota aparente nas mãos dos algozes judeus e romanos. As atividades
taumatúrgicas de Jesus, que os teólogos interpretaram como manifestações
divinas e os cientistas contestaram como resíduos de baixa e antiga crendice
popular, nada mais eram do que a parte prática do seu ensino, demonstrações
ilustrativas das potencialidades do espírito. Hoje, todo o acervo tantas vezes
injuriado e caluniado das pesquisas espíritas, bem como das Ciências Psíquicas
que nasceram delas, da Metapsíquica, e as conquistas científicas da
Metapsíquica e da Parapsicologia, filhas confessas do Espiritismo, revelam-nos
o sentido didático dos milagres de Jesus. E foram esses milagres, racionalmente
opostos por Jesus aos prodígios e às trapaças dos antigos magos, que levaram os
cientistas modernos a investigar corajosamente, as potencialidades ocultas do
homem. Kardec despojou os supostos milagres de sua aparência miraculosa. Para
escândalo dos teólogos, clérigos e acadêmicos vestidos de pesados e ridículos
fardões, Kardec exibiu o fato mediúnico em sua nudez total, como a Verdade
recém-saída do fundo do poço. E o fez apoiado na taumaturgia do Cristo, na
comparação dos atos de Jesus, com os fatos em voga no seu tempo. Os verdadeiros
cientistas, assim desafiados, não recusaram o revide, que lhe deram em termos
científicos, através de pesquisas sérias e profundas. Sua posição científica
era incontestável. Suas armas eram a Razão e a Pesquisa. Em nome do Cristo, não
por delegação de qualquer Igreja, mas por conseqüência histórica, pela
necessidade de ampliação do Conhecimento, do restabelecimento da Verdade no
plano cultural, Kardec arrastou as Ciências para os abismos que ela temia.
Desfez-se o Mito do Milagre, transformado em fenômeno científico. Reabriram-se
as perspectivas do postulado cristão. Hoje, os princípios fundamentais do
ensino de Jesus, se integram na realidade científica.
Superada a
barreira dos preconceitos, os dogmas da ignorância entraram em falência
irreversível. Assistimos agora a um espetáculo grotesco. Os clérigos cristãos
aderem a Simão, o mago; empenhando-se numa batalha lucrativa, através de cursos
e exibições de magia teatral (pagos a tanto por cabeça), na tentativa inútil de
desmoralizar os cientistas e os avanços atuais de suas pesquisas. Apresentam-se
como cientistas improvisados, com títulos que não possuem e nem podem possuir,
pois suas próprias exibições de pelotiqueiros, demonstram a sua incapacidade
para compreender o assunto de que tratam, enquanto seu palavreado impróprio,
suas explicações grosseiras e rebarbativas, sua absoluta falta de disciplina
mental e de critério lógico, põem inevitavelmente a nú a sua insuficiência
mental e cultural, o seu primarismo irredutível. E enquanto isso as Igrejas se
esvaziam, o materialismo avança nas sendas do desespero humano, a criminalidade
individual e coletiva aumenta assustadoramente, os freios da moral se
arrebentam ao impacto do erotismo e da alucinação dos tóxicos, a violência dos
poderosos contra os inermes toma proporções diluvianas, e o Cristianismo
Oficial nada pode fazer de eficaz em favor do mundo, porque se divorciou de suas
origens e se enleou precisamente nos interesses conflitivos do mundo. Não pode
sequer provar ao homem desesperado que a morte é uma ilusão, porque as provas
dessa realidade, afetam a rede ilusória da sua dogmática envelhecida. A
descoberta científica da antimatéria, seria suficiente para estourar todas as
estruturas religiosas do Cristianismo dominante. Os próprios cientistas se
aturdiram com ela, e a princípio entenderam que havia Universos separados de
matéria e antimatéria. Mas o avanço das pesquisas mostrou o contrário: que
matéria e antimatéria se conjugam em forma de verso e reverso nas estruturas
atômicas. A produção de partículas de antimatéria em laboratório, e, por fim, a
produção de um antiátomo de Hélio na URSS, revelaram a possibilidade da existência
de Universos interpenetrados. Dois Universos diferentes, de estruturas
contraditórias, podem coexistir num mesmo espaço, sem que um seja normalmente
percebido pelo outro. Ë a prova científica da duplicidade do homem, que em si
mesmo, é espírito e matéria. E da duplicidade do mundo, que, como dizia Talles
de Mileto: "É cheio de deuses". (E deuses, no seu tempo, eram
espíritos, seres de condição superior à humana). Se num mundo de antimatéria,
pode existir tudo quanto existe no mundo material, apenas em situações
diferentes, e se esse mundo interpenetra o da matéria, torna-se explicável
cientificamente, a relação do chamado mundo dos mortos com o mundo dos vivos e
vice-versa. Jesus ensinou que os mortos ressuscitam e podem comunicar-se com os
vivos. E, como costumava fazer, provou essa verdade com a sua própria
ressurreição. Mas o corpo ressuscitado de Jesus não tinha as mesmas condições
do corpo carnal, embora pudesse aparentá-las. Esse corpo não estava sujeito às
leis da matéria, podia aparecer e desaparecer de maneira estranha. O Apóstolo
Paulo explicaria esse problema na sua I Epístola aos Coríntios: "Temos
corpo animal e corpo espiritual; planta-se o corpo animal e ressuscita o
espiritual. O corpo espiritual é o corpo da ressurreição". Mas, como é feito
esse corpo e de que elemento? Físicos, biofísicos e biólogos soviéticos,
designados oficialmente para realizar pesquisas na Universidade de Kirov, no
Casaquistão, sobre a suposta existência de um corpo energético das plantas, dos
animais e do homem, conseguiram provar a existência desse corpo. Graças às
famosas câmaras Kirilian, de fotografias através de superfícies materiais
imantadas com alta-freqüência elétrica, _viram, fotografaram e filmaram esses
corpos energéticos, nos três reinos mencionados. Verificaram mais, que esses
corpos são constituídos de plasma físico (o quarto estado da matéria,
descoberto pelo pesquisador espírita inglês, o físico William Crookes. O corpo
bioplásmico é o corpo da vida. As pesquisas mostraram que, no momento da morte,
corpo bioplásmico se desprende do corpo material e este se transforma em
cadáver. Detectores de pulsações biológicas, provaram a continuidade do corpo
bioplásmico após a morte física. E claro que essas pesquisas se tornaram
perigosas para o Estado soviético, que se apoia na Filosofia materialista de
Karl Marx. O Estado proibiu a exportação dessa descoberta perigosa, e condenou
os cientistas que a haviam feito. Mas duas pesquisadoras da Universidade de
Prentice Hall (Estados Unidos), já haviam tido acesso ao material das pesquisas
e as divulgaram no livro Descobertas Psíquicas Por Trás da Cortina de Ferro, já
traduzido e publicado no Brasil, pela Editora Cultrix, de São Paulo. Cabe agora
aos cientistas ocidentais, darem prosseguimento a essas pesquisas, o que
certamente será feito. A vitória cristã, dentro da própria fortaleza soviética,
prova mais uma vez a necessidade urgente da revisão cultural do Cristianismo em
nosso tempo. Poderão as Igrejas do Cristianismo Oficial impedir o
prosseguimento dessas pesquisas? Em nome de quem? De Jesus? A descoberta do
corpo bioplásmico e de suas funções vitais e organizadoras, reduz o corpo
material à condição de um robô biológico. Sem ele, o corpo somático não vive,
não funciona. Os cientistas soviéticos, se alegraram ao constatar que ele se
constitui de um plasma físico, pois isso favorece a concepção materialista do
homem. Mas foram forçados a reconhecer que, na sua estrutura plásmica,
existem
partículas diferenciadas que não puderam ser reconhecidas. A teoria espírita do
corpo espiritual, define esse corpo como semi-material, constituído de energias
físicas e energias de natureza extra-físicas ou espirituais. Foi por isso que
Kardec recusou-lhe o nome tradicional de corpo espiritual, preferindo chamá-lo
de perispírito, que equivale a envoltório do espírito, como o perisperma que
envolve as sementes vegetais. Quanto às funções, o corpo bio-plásmico se
identifica inteiramente com o perispírito: E ele que dá vida ao corpo material,
que o organiza segundo o seu modelo próprio, que rege todas as suas funções,
mantém o seu equilíbrio orgânico e controla a sua higidez. Os cientistas
soviéticos verificaram a existência no corpo bioplásmico, de sinais que eles
chamaram de hieroglifos luminosos e coloridos, que constituem uma espécie de
código da saúde do organismo. Segundo eles, é possível obter-se, no exame desse
código, como se faz no exame das correntes elétricas do cérebro, através do
eletroencefalograma, as informações sobre o estado geral do organismo, com a
previsão de desequilíbrios funcionais e doenças futuras. Disso resulta também,
a possibilidade de ação curativa através de processos energéticos, o que
despertou o interesse dos cientistas pela antiga técnica chinesa da acupuntura.
Também a ação da homeopatia e do hipnotismo se torna mais compreensível.
Experiências realizadas nos Estados Unidos com animais, para verificar-se a
existência de força estruturadora, nas diversas regiões controladoras do corpo
animal, deram resultados positivos. Pesquisas telepáticas provaram a possibilidade
de ação mental, mesmo à distância, sobre disfunções orgânicas e doenças,
inclusive infecciosas. As pesquisas parapsicológicas, por sua vez, libertaram a
Psicologia da sujeição biológica, estabelecendo a distinção entre mente e
cérebro. Whately Carington, da Universidade de Cambridge (Inglaterra), formulou
a teoria das estruturas psicônicas, segundo a qual a mente não se constitui de
matéria, mas átomos extrafísicos a que chamou de psícons. Os Profs. Pratt e
Louise Rhine, da Universidade de Dukes (EUA), comprovaram a realidade dos
fenômenos teta, de comunicação mediúnica. G. S. Soal, da Universidade de
Londres, e Price, da Universidade de Oxford, comprovaram também a existência
dessas comunicações. As gravações de vozes em fitas magnéticas, iniciadas na
Suíça, e hoje em estudo e pesquisa em todo o mundo, completam as provas
científicas atuais da sobrevivência após a morte do corpo físico, e da
possibilidade de comunicações entre o mundo dos espíritos e o nosso mundo
material. Essas aberturas científicas, nos levam naturalmente de volta ao culto
pneumático das origens cristãs, à taumaturgia de Jesus, e dos apóstolos, aos
fenômenos de aparições e transfigurações, como o do Tabor, relatado nos
Evangelhos. Todo o quadro dos ensinos e das demonstrações didáticas de Jesus,
rejeitado pelos cientistas como produto de antigas superstições, reaparece nas
Ciências atuais através de processos tecnológicos de obtenção, verificação e
contrôle. O problema da reencarnação tornou-se, também, uma questão científica,
até mesmo na URSS, onde se destaca o nome do Prof. Wladimir Raikov, da
Universidade de Moscou. A designação de antimatéria para as energias
descobertas fora do campo atômico conhecido, estabeleceram a diferenciação
metodológica entre dois mundos. Mas a constatação posterior de que essas
energias se conjugam com as da matéria, na constituição do Universo,
restabeleceram a unidade conceitual e efetiva de um mundo só, dividido em
campos diferenciados. Com isso, voltamos à teoria helenística de Plotino, sobre
as hipóstases de uma realidade universal única, mas diferenciada na sua
estruturação. Para Plotino, a realidade se constituía de camadas superpostas ou
planos de existência, que vão desde a matéria do nosso mundo, até a antimatéria
dos planos puramente espirituais. Admitia a reencarnação, como o trânsito
constante dos seres através desses planos, e dava aos seres humanos a
designação de almas viajoras. A teoria cristã dos três céus, a que Paulo se
refere, compara-se a de Plotino. Em todos os tempos, os homens revelaram a
percepção intuitiva dessa realidade múltipla, que atualmente as pesquisas
científicas atuais estão comprovando de maneira positiva e rigorosa, graças às
novas possibilidades de investigação. A antimatéria se apresenta como uma
espécie de réplica à matéria. As partículas atômicas, que constituem a matéria,
têm suas réplicas em partículas semelhantes e contrárias a elas, como se fossem
as suas imagens refletidas num espelho. Por exemplo, o elétron é um dos
satélites que giram em torno do núcleo atômico. Essa partícula é dotada de
carga negativa. Descobriu-se uma partícula semelhante a ela, mas dotada de
carga positiva, à qual se chamou de prótron. São consideradas partículas gêmeas
ou reflexas. As partículas materiais e as de anti-matérias, só diferem entre si
no tocante à carga, posição e velocidade. O espaço formado pelas partículas de
antimatéria constitui um novo espaço, o que levou os físicos a reconhecerem a
existência de outro espaço, no qual existe um outro mundo semelhante e
contrário ao nosso. Esta é apenas uma explicação elementar, para dar aos
leitores pouco informados a respeito, da idéia de antimatéria. Esse paralelismo
sugeriu a existência de mundos ou Universos paralelos no espaço cósmico, pois a
produção de antipartículas em laboratório, mostrou que o
encontro de uma
partícula com uma antipartícula, resultava na explosão de ambas, que se
convertiam em raios gama. Considerou-se impossível a existência simultânea de
matéria e antimatéria num mesmo mundo. Mas a continuação das pesquisas
modificou essa hipótese inicial. Passou-se a considerar a possibilidade de
coexistência de espaços diferenciados, predominando num deles, a matéria, e no
outro, a antimatéria. Teríamos, então, os mundos interpenetrados da teoria
espírita, com a diferenciação de planos, como nas hipóstases de Plotino ou como
na tradição cristã dos céus superpostos. Recentemente os soviéticos anunciaram
a produção de um antiátomo de Hélio em laboratório. O avanço da Física nesse
terreno, assemelha-se à epopéia da expansão marítima do século XVI. O mundo se
alarga, na proporção em que os navegadores avançam através dos mares
misteriosos, desvendando os seus mistérios e descobrindo outras regiões
povoadas. A descoberta do corpo bioplásmico, vem completar essa imagem. O perispírito,
ou corpo espiritual, poderia ser a forma corpórea da humanidade de um mundo de
antimatéria. Cristo encarnado, era um ser material da nossa condição humana.
Cristo desencarnado, em sua ressurreição, um ser espiritual, cujo corpo se
assemelhava ao que deixara na Terra, mas estruturado ao inverso do outro. A
morte não nos aniquila, apenas nos transforma (transforma), nos passa de uma
forma a outra e de um plano existencial a outro, na dinâmica ainda mal
conhecida da realidade em que vivemos. Todo esse problema, como vimos, ressalta
dos ensinos e das demonstrações práticas de Jesus de Nazaré. Mas só agora os
homens estão se tornando capazes de, como Tomé, tocar com os dedos as chagas do
seu corço ressuscitado, em que o corpo morto se reflete como a imagem invertida
das partículas atômicas. Como poderiam as Igrejas Cristãs enfrentar esta hora
de transformação de um novo mundo, sob a carga mágica e mitológica dos seus
dogmas e sacramentos? A grandeza conceitual do Cristianismo do Cristo, não cabe
no diminuto espaço das mentes atulhadas de resíduos mágicos e míticos. Temos de
fazer com urgência, a revisão de nossas posições cristãs. Os astronautas já
avançam no espaço cósmico, os cientistas mergulham sem escafandro nas
profundezas do Poço da Verdade, dispostos a trazê-la nua e pura à superfície do
planeta, calcinado pelo fogo da mentira, da ambição e da impiedade. Esta é uma
hora de reflexão, entre as imagens refletidas nos espelhos da História.
Fonte:
CHARLES
GUIGNEBERT (Le Christ)
J. HERCULANO
PIRES REVISÃO DO CRISTIANISMO
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