quarta-feira, 3 de março de 2021

A MOEDA DE CÉSAR

 

A MOEDA DE CÉSAR

Mat. 22:15-22

Indo, então, os fariseus, tomaram conselho como o embaraçariam numa doutrina. E enviaram os discípulos deles com os herodianos, dizendo: Mestre, sabemos que és verdadeiro e ensinas o caminho de Deus em verdade, e não te importas de ninguém, pois não olhas os rostos dos homens. Dize-nos, então, que te parece: é lícito dar o tributo a César ou não? Conhecendo, porém, Jesus, a malícia deles, disse: "Por que me tentais, hipócritas? Mostrai-me a moeda do tributo". Eles trouxeram-lhe um denário. E disse-lhes: "De quem é a imagem e a inscrição"? Disseram-lhe: "De César"; Então disse-lhes: "Devolvei, pois, o de César, a César, e o de Deus, a Deus". E ouvindo, admiraram-se e, deixando-o, retiraram-se.

(Marc. 12:13-17 –“enviaram-lhe, então, alguns dos fariseus e dos herodianos para enredá-lo com alguma palavra. Vindo eles, disseram-lhe: “Mestre sabemos que é verdadeiro e não dás preferência a ninguém pois não consideras o homem pelas aparências, mas ensina, de fato, o caminho de Deus. É licito pagar o imposto a Cesar ou não? Pagamos ou não pagamos? ele porém conhecendo sua hipocrisia disse:” porque me pondes a prova? Trazei-me um denario para que o veja”. Eles trouxeram. E ele disse: de quem é esta imagem e a inscrição? Responderam-lhe: de Cesar! Então jesus disse-lhes. O que é de Cesar daí a Cesar; o que é de Deus a Deus. E ficaram muito admirados a respeito dele.)

E observando, enviaram (pessoas) desleais, que fingiam ser justos, para embaraçá-lo em doutrina dele, de forma que pudessem entregá-lo ao governo e ao poder do procurador. E interrogaram-no, dizendo: "Mestre, sabemos que falas certo e ensinas, e não observas o rosto, mas ensinas em verdade o caminho de Deus:  é-nos lícitos dar o tributo a César, ou não?  Subentendendo, porém a astúcia deles, disse-lhes: "Mostrai-me um denário. De quem tem a imagem e a inscrição"? Eles disseram: De César.  Ele disse-lhes: "Então devolvei o de César a César, e o de Deus a Deus".  E não puderam apanhar na palavra dele diante do povo; e admirados pela resposta dele, calaram-se.

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Tal como já lemos acima em Mateus (12:14), o Sinédrio reuniu-se em Conselho (symbólyon élabon), para estudar o melhor modo de embaraçar Jesus, obrigando-O a pronunciar-Se de tal forma, que pudesse ser apanhado em armadilha, para ser condenado. A embaixada oficial do Sinédrio (fariseus, escribas e anciãos) fora posta fora de combate, com a resposta a respeito do poder de Jesus e, logo a seguir, com a alusão clara à perda do cetro religioso por parte dos judeus. Reúnem-se, então, e resolvem pegá-Lo numa emboscada que lhes pareça infalível. Mas eles mesmos não podiam voltar, porque já eram conhecidos de Jesus e do povo. Que fazer? Resolveram mandar pessoas desconhecidas. Escolheram discípulos seus (talmidê hakhâmim), que seriam acompanhados por herodianos, que poderiam acusar logo que fosse proferida qualquer palavra ofensiva aos dominadores romanos. Eram chamados "discípulos dos fariseus" os que cursavam a Escola Rabínica, antes de obter o título final de "Rabino" (ou Rabbi). Os herodianos eram judeus fiéis a Herodes, que muita questão faziam de unir-se aos romanos, aplaudindo-os, embora os não suportassem, só para não perderem as posições conquistadas. Os fariseus eram inimigos dos herodianos, que eles desprezavam, mas decidiram unir-se a eles, para terem testemunhas insuspeitas perante as autoridades romanas.

Com efeito, a reunião chegara a esse resultado: era necessário preparar-Lhe uma armadilha tal, que O apanhassem de qualquer forma. Os verbos empregados pagideúsôsin (Mateus e Lucas) e agreúsôsin (Marcos) pertencem ao vocabulário de caça: "apanhar em armadilha ou laço" (pagís). Para isso, era mister que Jesus firmasse uma doutrina (lógos) que O comprometesse perante o procurador romano (hêgemôn, como em (Mat. 27:2 – “assim, amarrando-o, levaram-no e entregaram-no a Pilatos o governador”) e (At. 23:24, 26-“E também montarias para que Paulo pudesse viajar e ser conduzido são e salvo ao governador Felix. E escreveu uma carta do seguinte e teor: Claudio Lisias ao excelentíssimo governador Felix, saudações...”), ou perante seus seguidores. A pergunta foi escolhida com cuidado e os emissários bem treinados. Apresentaram-se respeitosos e dirigiram-se a Jesus dando-Lhe o título de Mestre, no sentido de "professor" (didáskale), fazendo um preâmbulo bem preparado, em que elogiavam exatamente Sua franqueza e honestidade doutrinária, Sua coragem e desassombro diante de todos, não "olhando os rostos", isto é, não tendo "respeitos humanos", sem ligar à posição social, aos cargos, à riqueza, etc.; de tudo isso sobejas provas havia. Embora todos os judeus pagassem os impostos e tributos aos romanos, faziam-no a contragosto. Judas o Gaulanita já pregara abertamente contra os tributos exigidos por Quirinius (cfr. Flávio Josefo, Ant. Jud. 18, 1, 1 e Bell. Jud. 2, 8, 1 e 17, 8) dizendo que isso constituía crime de lesa-majestade contra a soberania única de Deus. Não deviam os judeus pagar tributos aos homens, mas apenas o Templo tinha direito de cobrá-los, porque era a representação de Deus. A questão, portanto, foi sobre a laicidade do pagamento do tributo. Que eram obrigados a pagar, não havia dúvida. Mas diante da consciência, era lícito? Dizer SIM, incompatibilizaria Jesus com todos os judeus, que o desacreditariam como o messias. Dizer NÃO era a condenação certa como revoltoso contra Roma, e lá estavam os herodianos para testemunhar contra Ele. A pergunta foi feita de forma a só poder ter duas respostas: sim ou não.  Impossível escapar: "é-nos lícito dar o tributo a César, ou não? Damos ou não damos"? Jesus percebe a malícia e o declara: "por que me tentais, hipócritas"? Começa, então, a preparar a resposta, numa dialética perfeita. Pede uma prova concreta: quer ver a moeda do tributo (e aqui se percebe a ironia). As "regras do jogo" exigiam que, mesmo se Ele a tivesse consigo, devia pedir que a prova fosse trazida pelos adversários. Trouxeram-na. Vem a segunda investida. Jesus estava farto de saber que a imagem ou efígie (eikôn) era de César, assim como a inscrição (epigraphê). Mas ainda aqui era preciso que eles o dissessem. E disseram: "é de César". Jesus os tinha na mão: o adversário confessava que a moeda do tributo (o denário) era romana. Tudo estava pronto para a resposta. E Jesus calmamente conclui: - Então devolvei o que é de César a César, e o que é de Deus, a Deus! Traduzimos apódote por "devolver", sentido real, sem dúvida muito melhor que o daí das traduções correntes. Com essa resposta, que nenhum deles esperava, Jesus estabeleceu irrecusavelmente a doutrina do respeito à autoridade civil legitimamente constituída, tema que seria desenvolvido mais tarde por Paulo, na carta aos romanos (13:1-8 – “cada um se submeta as autoridades constituídas, pois não há autoridade que não venha de Deus e as que existem foram estabelecidas por Deus. De modo que aquele que se revolta contra a autoridade, opõe-se à ordem estabelecida ´por Deus. E o que se opõem atrairão sob si a condenação. Os que governam incutem medo quando se pratica o mal, quando não se faz o bem. Queres então não ter medo da autoridade? Pratica o bem e dela receberás elogios.; se propõem praticares o mal, teme, porque não é à toa que ela traz a espada; ela é instrumento de Deus para fazer justiça e punir quem pratica o mal. Por isso é necessário não se submeter não somente por temor do castigo, mas também por dever de consciência. É também por isso que pagais impostos, pois os que governam são servidores de Deus que se desincumbe do zelo de seu oficio. Daí a cada um o que lhe é devido; o imposto a quem é devido; a taxa a quem é devida; a reverencia a quem é devida; a honra a quem é devida. Não devais nada a ninguém, a não ser o amor mutuo, pois quem ama o outro cumpriu a lei”.). Anotemos que a palavra alêthês ("verdade") é empregada, nos sinópticos, apenas neste trecho, embora João a use com larga frequência. Também o termo de Marcos (agreúsôsin) é hápax neotestamentário. Diante dessa resposta, os emissários "murcharam" e não mais puderam abrir a boca. Mas intimamente admiraram Sua sabedoria. E retiraram-se, olhando uns para os outros ... Só tinham mais um recurso: era confiar a missão aos saduceus, que tentariam ver se O confundiam.

Perfeitas todas essas deduções. Procuremos meditar. A "moeda do tributo", cunhada no metal, representa o corpo humano, moldado em células de matéria orgânica. Tem, pois, a efígie de seu possuidor, e seu nome em epígrafe. Ora, se o corpo possui gravado a imagem da personalidade, é porque pertence a ela, e a esse corpo devem ser prestados os serviços de que ele carece. Nada do que lhe pertence deve ser-lhe negado. No entanto, o Espírito, "partícula" divina, tem sua parte. E não será lícito prejudicar um em benefício do outro. Nem tirar de César (do corpo) para dar ao Espírito, nem tirar de Deus (o Espírito) para dar ao corpo. A divisão é nítida: devolver ao corpo tudo o que este nos tiver dado de experiências e lições, e tratá-lo com o cuidado de que necessitar. Mas sem lesar a parte devida ao Espírito. Daí o equilíbrio indispensável em nosso comportamento, sem exageros nem para um lado nem para o outro. Porque, no final das contas, o Espírito é que se condensou no corpo: a autoridade divina é que se manifesta em César.

Outra lição que podemos aprender, refere-se aos grupos. Muito comum que se misturem negócios de César nos setores divinos. Em outros termos, que as instituições espiritualistas se fundamentem no reinado de César. Lógico que, estando num planeta material, cujo valor de troca é a moeda de César, as organizações espiritualistas necessitem dessa parte para atuar no mundo. Mas pensamos- SMJ - que essa parte deva ser conquistada "com o suor do rosto", e não constituída apenas pelo resultado de apelos e doações. Daí acharmos que todas as agremiações que tratam do Espírito deveriam possuir a látere uma indústria puramente comercial que sustentasse a obra, onde trabalhariam dando seu tempo e seu esforço os dirigentes da obra, mas sem que houvesse mistura de uma em outra.

Pondo em prática esse pensamento, dirigimos, para sustentar nossas publicações, a revista, etc., uma Agência de Publicidade, cujo lucro reverte para cobrir o déficit das edições. O mesmo ocorre, por exemplo, com o "Lar Fabiano de Cristo", que sustenta milhares de crianças através da CAPEMI (Caixa de Pecúlio dos Militares-Beneficente), onde os diretores de ambas trabalham sem perceber nenhum salário.

A ideia de "fazer caridade" na dependência da "caridade" dos outros, pode ser cômoda e até pode estar certa. Mas não "sentimos" assim, por acharmos que, da mesma forma que, com nosso trabalho provemos a alimentação física de nossos filhos, também com nosso trabalho devemos prover a alimentação espiritual de nossos irmãos.

Mas cremos que a lição principal é puramente simbólica e mística, não literal nem alegórica. Vimos que a moeda, que tem duas faces, traz o cunho de uma personalidade: a efígie que retrata a criatura que foi plasmada pelo Espírito. Além da efígie aparece a inscrição (epígrafe), com o nome atribuído a essa personagem no curso da evolução no planeta Terra. Ora, a personagem é a condensação do Espírito, e o representa na Terra, tal como a moeda é a condensação de um valor convencional, garantido pela autoridade e poder da pessoa cuja imagem nela se encontra gravada. E tal como a moeda passa de mão em mão, sempre adquirindo benefícios para quem a possua, assim a personagem vai de contato em contato, comprando experiências para o Espírito, que a criou e possui. O valor da moeda, convencional, está inscrito nela. Assim o valor do Espírito também se encontra manifesto na personagem: ora elevado, ora baixo. De acordo com a evolução do Espírito, assim será o valor gravado na personagem. Daí podermos avaliar mais ou menos um, pela expressão do outro. Lógico que a moeda não é César, mas o representa. Assim, embora sendo a condensação do Espírito, a personagem não é ele, mas apenas o representa, materializado no mundo. Temos, então, três graus, sobre os quais fala o Mestre: a moeda, César e Deus. Assim também temos três graus nessa simbologia: a personagem, a individualidade e o Deus-Imanente-Transcendente.

A moeda, em si mesma, nada vale, pois, seu valor é somente convencional e transitório, tal como as personagens humanas, que como meteoros passam sobre a Terra, muitas vezes atribuindo-se um valor que não possuem absolutamente ... A individualidade (César) tem valor bem maior pois constitui a garantia subjacente do valor da moeda (personagem). À individualidade devemos restituir aquilo que lhe pertence: as experiências adquiridas, o aprendizado conquistado. Mas o Supremo Bem, a Verdade total, e a Beleza Perfeita, Deus, jamais pode ser omitido. Vale a moeda (personagem) só enquanto tem, entre os homens, o curso garantido pela individualidade eterna. Mas o que valoriza esta é a Centelha Divina, que a sustenta, constituindo-lhe a essência profunda.

Compreendemos, portanto, a lição nesse sentido muito mais amplo, nesse nível muito mais elevado. É mister que jamais deixemos de devolver, por meio da personagem (moeda) o tributo devido à individualidade (César) e o tributo devido a Deus: vida espiritual absoluta, na qual a personagem terrena (moeda) simboliza apenas o "meio-de-troca" ou a expressão-do-tributo.

FONTE

Carlos R. Pastorino

Bíblia de Jerusalém

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