BEM-AVENTURADOS
OS POBRES PELO ESPÍRITO,
PORQUE DELES É O
REINO DOS CÉUS
(Mt 5, 3-10)
Bem-aventuranças.
Bem-aventurados os pobres pelo espírito, porque deles é o reino dos céus.
Bem-aventurados
os tristes, porque serão consolados.
Bem-aventurados
os mansos, porque possuirão a terra.
Bem-aventurados
os que têm fome e sede da justiça, porque serão saciados.
Bem-aventurados
os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia.
Bem-aventurados
os puros de coração, porque verão a Deus.
Bem-aventurados
os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus.
Bem-aventurados
os que sofrem perseguição por causa da justiça, porque deles é o reino dos
céus.
Quem é pobre pelo
espírito?
Quem é
bem-aventurado, feliz?
Que é o Reino dos
Céus?
Durante quase 20
séculos têm-se discutido as palavras ptóchoi tô pnéumati,
como está no
original grego do primeiro século, ou pauperes spiritu, como lemos na tradução
latina. E as interpretações dessas palavras têm sido as mais diversas. Alguns
chegaram ao absurdo de traduzir “pobres de espírito”, proclamando felizes os
que têm pouco espírito, os que são pobres, deficientes de espírito, os imbecis
e idiotas. Neste caso, o próprio Jesus não faria parte dos bem-aventurados, e
dele não seria o Reino dos Céus, porque não era pobre de espírito nesse
sentido, mas sim rico e riquíssimo, quer se entenda por espírito a faculdade
espiritual, quer a faculdade intelectual.
Mas os que o
Mestre chamou felizes são os que são pobres pela livre escolha do seu próprio
espírito, do seu livre-arbítrio; não os que são compulsoriamente pobres, que
são milhões, e talvez infelizes, mas os que, podendo possuir todas as riquezas
da Terra, sentem-se tão ricos dos bens espirituais que voluntariamente se
desapegaram dos bens materiais, usando apenas o necessário para sua manutenção
física.
Também, que ia
fazer um milionário espiritual com essas pobres riquezas
Materiais? Como
ia um homem espiritualmente adulto ocupar-se com as
bonecas de celuloide
ou outra matéria com que se divertem as crianças num jardim de infância? O rico
de espírito não sabe como brincar com essas bonecas dos ricos da matéria; a sua
mentalidade espiritualmente adulta não acha suficiente ponto de contato com
esses brinquedos que encantam os espiritualmente infantes.
Disse alguém: “É
tão difícil para um sábio adquirir riquezas como é difícil para um rico
adquirir sabedoria”.
Muitos pensam
que, para não dar importância aos bens materiais, deva o homem ser muito
virtuoso. Não é bem exato. Pode o homem virtuoso renunciar aos bens materiais e
não ser sábio nem feliz. A verdadeira renúncia não vem da virtude, mas sim da
sabedoria, da compreensão da verdade. Pode a virtude, em certos casos, ser um
preliminar para a sabedoria, mas não é a própria sabedoria. Saber quer dizer
saborear, tomar o sabor de um alimento e senti-lo como saboroso.
Mas para o homem
meramente virtuoso pode a renúncia ter sabor amargo, pode ser “caminho estreito
e porta apertada”; somente para o sábio, o sapiente, é a renúncia “jugo suave e
peso leve”.
Pode alguém
renunciar por dever, e até por querer – e é um homem virtuoso.
Mas o verdadeiro
sábio renuncia por compreender, por saber – e saboreia a verdadeira felicidade.
O dever e o
querer do virtuoso são atos de boa vontade do homem-ego – mas o compreender do
sábio é uma atitude da razão espiritual, do Eu divino no homem.
Virtude vem de
virtus, que em latim quer dizer força; o virtuoso age em virtude de uma
obrigação, de compulsão moral; ele se sente como um escravo, como um bom
escravo – “eu devo renunciar”. Ele renuncia sob a pressão de um doloroso e
maldito tu deves. Age como um bom escravo – não age como um homem livre, porque
não compreende a verdade, a verdade sobre si mesmo; identifica-se ainda com o
seu ego, com o seu ego virtuoso, de boa vontade. A verdade é o único poder
libertador: “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”. A compreensão da
verdade é a única força que realmente liberta o homem. Quem age sem compreender
pode agir virtuosamente, mas não age sabiamente.
Sabedoria, ou
sapiência, não é outra coisa senão a compreensão da verdade
libertadora.
Quem se
identifica ainda com o seu ego, mesmo com um ego virtuoso, age
virtuosamente,
mas não age livremente.
Somente quem,
pelo autoconhecimento da mística, identifica-se com o seu Eu divino, esse
compreende a verdade sobre si mesmo, esse age com sabedoria, age livremente – e
este é realmente feliz. O sábio saboreia a deliciosa verdade sobre si mesmo,
saboreia que “eu e o Pai somos um”, que “eu sou a luz do mundo”, que “o Reino
de Deus está dentro de mim”, e age livre e deliciosamente à luz desta
compreensão da verdade que o libertou, inclusive da virtude.
“Por Moisés foi
dada a lei – pelo Cristo veio a verdade e veio a graça. ”
O homem virtuoso
é um bom discípulo de Moisés, porque age sob o signo do dever – tu deves fazer
isto, tu não deves fazer aquilo. Ele age como escravo do dever.
O homem sábio é
discípulo do Cristo, age em nome da verdade e da graça, age à luz do
compreender.
A lei escraviza.
A verdade e a
graça libertam.
Feliz, realmente
bem-aventurado, é somente aquele que renunciou aos bens materiais por
sapiência, pelo saboreamento da verdade sobre si mesmo, e esta renúncia por
compreensão nunca é dolorosa, mas indizivelmente deliciosa.
O homem virtuoso
sofre a sua renúncia – o homem sábio saboreia a sua renúncia.
Renunciar é, para
o sábio, para o compreendedor da verdade, para o auto conhecedor, uma afirmação
de força e poder, de entusiasmo e plenitude, da “gloriosa liberdade dos filhos
de Deus”.
Por isto, o homem
que renunciou por sabedoria e compreensão nunca se sente como se fosse um
herói, algum super-homem, alguma exceção da regra; sente a sua renúncia como
algo natural e evidente. O apego aos bens materiais seria para ele artificial.
A Natureza toda age com leveza e facilidade; segue sempre o caminho de menor
esforço, como diz Einstein. A Natureza não conhece virtude, compulsão – ela age
sempre com silêncio e naturalidade, porque é inconscientemente sábia, regida
pela suprema sabedoria cósmica, que nada sabe de esforço, de dificuldade ou
sacrifício.
Enquanto o homem
se acha na escola primária da lei, soletrando o abc do dever, pode ele ser
vicioso ou virtuoso, não fazer ou fazer dificilmente o que deve; mas quando
ingressa na universidade da verdade e da graça, entra ele na zona do
compreender, da sapiência e do saboreamento da verdade.
Para os
principiantes é necessário o “caminho estreito e a porta apertada” da virtude
do dever.
Os finalizantes,
porém, só conhecem “o jugo suave e peso leve” da sabedoria e compreensão.
Aqueles andam
ainda “aflitos e sobrecarregados”, com sua virtude – mas estes acharam
“descanso para sua alma” na sabedoria da compreensão.
Os pobres pelo
espírito são os que se desapegaram interiormente e, quanto
possível, também
exteriormente, dos bens materiais, mentais e emocionais, de toda a bagagem do
velho ego, não em virtude de um maldito dever, mas à luz de um bendito
compreender. Estes são os felizardos, os realmente felizes –porque deles é o
Reino dos Céus.
“É” e não apenas
“será”. Esses saboreiam, aqui e agora, o Reino dos Céus que está
conscientemente dentro deles. Não esperam um céu só depois da morte, mas vivem
agora mesmo, aqui e agora, no céu da verdade, da liberdade e da felicidade.
Superaram o inferno do ego vicioso, de má-vontade, e também o purgatório do ego
virtuoso de boa vontade, e ingressaram no céu do Eu da sabedoria.
O jovem rico do
Evangelho era um homem virtuoso, que havia cumprido todos os mandamentos, tudo
que devia fazer – mas não era um homem sábio; era um perfeito discípulo de
Moisés, pelo cumprimento da lei – mas não chegou a ser um discípulo do Cristo,
pela verdade e pela graça. Formado na escola primária do dever, não ingressou
na universidade do compreender.
Que me falta
ainda? Pergunta ele a Jesus, depois de ter feito tudo o que devia fazer. E o
Mestre lhe responde: “Uma coisa te falta ainda”. Nada lhe faltava naquilo que
ele devia fazer – tudo lhe faltava no que devia ser. À pergunta “o que devo
fazer” o Mestre responde “se queres ser”. Não se trata mais de fazer algo,
trata-se de ser alguém. Só é alguém quem está na verdade do ser, para além de
todas as pseudoverdades do fazer. O fazer algo é necessário, mas somente o ser
alguém é suficiente. Aquilo é dos virtuosos – isto é dos sábios.
A suprema
sabedoria e felicidade consiste em ser alguém pela compreensão da verdade
libertadora.
A autorealização
do retroagir da ética supõe o autoconhecimento do reto-ser da mística.
Fonte:
Huberto Rodhen
Bíblia de Jerusalém
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