terça-feira, 28 de setembro de 2021

FÉ INCONDICIONAL

 

FÉ INCONDICIONAL

(Lc 17, 1-6)

Exortações aos discípulos. Disse Jesus a seus discípulos: “É inevitável que

venham incitamentos ao pecado; mas ai do homem por quem vem! Melhor lhe fora que lhe atassem ao pescoço uma mó e o lançassem ao mar, do que ser ele ocasião de pecado a um desses pequeninos.

Tende cuidado de vós mesmos! Se teu irmão pecar, repreende-o; e, se se

arrepender, perdoa-lhe. E, se pecar contra ti sete vezes por dia, e vier ter contigo sete vezes dizendo: Estou arrependido – perdoa-lhe”.

Pediram os apóstolos ao Senhor: “Aumenta-nos a fé”.

Respondeu o Senhor: “Se tiverdes fé, como um grão de mostarda e disserdes a esta amoreira: Desarraiga-te e transplanta-te para o mar – obedecer-vos-á.”

A fé cresce na razão em que homem se liberta do egoísmo disseram os discípulos ao Senhor: “Aumenta-nos a fé! ”

Respondeu-lhes Jesus: “Se tiverdes fé, que seja como um grão de mostarda, e disserdes a esta amoreira: arranca-te e transplanta-te para o mar! ela vos

obedecerá”.

Logo depois desta elevada metafísica, passa Jesus ao plano de uma física tão corriqueira, como a dos trabalhos de agricultura e pecuária – que, à primeira vista, não atinamos com a afinidade entre esta e aquela.

Mas, no fim dessa estranha digressão de aparente heterogeneidade, volta o Mestre a ligar o fio da homogeneidade, concluindo: “Quando tiverdes feito tudo que vos foi mandado fazer, dizei: somos servos inúteis; cumprimos a nossa obrigação; nenhuma recompensa merecemos por isto”.

Esta conclusão final é a resposta ao pedido inicial dos discípulos: Senhor,

aumenta-nos a fé!

Antes de tudo, que quer dizer fé?

Há quase 2000 anos que a cristandade identifica fé com crença – e esta

identificação marcou o início de uma das maiores tragédias espirituais do

Cristianismo de todos os setores, sobretudo do protestantismo, que se baseia principalmente no princípio de “quem crer será salvo”.

A nossa palavra “fé” vem do termo fides, radical de fidelidade. Fé é, pois, uma atitude de fidelidade, harmonia, sintonia. Quando o meu aparelho de rádio está sintonizado com a onda eletrônica emitida pela estação emissora, então o meu rádio apanha nitidamente a música irradiada pela emissora – meu rádio tem “fé”, fidelidade, alta fidelidade, com a estação emissora. Mas quando o meu aparelho receptor não está afinado pela mesma frequência vibratória da emissora, não apanha a música, porque não tem “fé”, fidelidade, sintonia.

A “crença” nada tem de ver com a fé. A crença, substantivo derivado do verbo crer, é uma opinião vaga, incerta, indefinida; assim como quando alguém diz: creio que vai chover, creio que fulano morreu – mas nada disto é certo.

Por que é que a palavra exata “fé” foi substituída pelo vocábulo vago “crença”?

Por que dizemos “eu creio”, em vez de dizermos “eu tenho fé”?

Infelizmente, o substantivo latino fides não tem verbo, e como fé é derivado de fides, também em português, como na maior parte das línguas neolatinas, não existe verbo derivado da palavra fé. E temos de empregar um verbo de outro radical. Do latim credere fizemos crer, crença.

E com isto perdemos a verdadeira noção da palavra fé, no sentido de fidelidade.

Poderíamos inventar o verbo “fidelizar” para dizer “ter fé” – mas é um neologismo desconhecido.

O texto dos Evangelhos do primeiro século foi escrito em grego, e nesta língua fides, fé, é pistis, que tem o verbo pisteuein, ter fé, fidelizar. Mas a tradução latina, não encontrando verbo derivado de fides, viu-se obrigada a recorrer ao termo vago credere, que em português deu crer.

Os discípulos de Jesus pedem, pois, ao Mestre: “Aumenta a nossa fidelidade, a nossa sintonia, a nossa harmonia com o mundo espiritual; robustece a consonância entre a nossa consciência humana e a consciência divina”. Os discípulos sentem que têm uma ligeira fidelidade com o mundo da realidade divina; mas sentem também a fraqueza e pequenez dessa sua fidelidade.

Então lhes respondeu o Mestre: “Se tiverdes fidelidade, genuína e autêntica, mesmo que seja inicialmente pequena como um grão de mostarda, porém genuína e autêntica, então tereis poder sobre todo o mundo material”. O que é importante não é a quantidade, mas sim a qualidade da vossa fé. A onipotência do espírito tem poder sobre qualquer potência da matéria. O que é decisivo é a intensidade qualitativa da vossa fé, não a extensão quantitativa.

E para lhes mostrar em que consiste essa qualidade intensiva da fé, recorre o Mestre não a uma definição abstrata e teórica, mas a uma exemplificação

concreta e prática. Faz ver que os atos desinteressados produzem o clima

propício para uma atitude espiritual de fé ou fidelidade. Quem trabalha para ser recompensado age em nome do ego humano, sempre egoísta; mas quem trabalha sem nenhuma intenção, explícita ou implícita, de ser recompensado, esse crea um ambiente propício para a atitude da fé.

Os discípulos pediram ao Mestre: “Aumenta-nos a fé! ”. E o Mestre lhes fez ver que eles mesmos devem aumentar a sua fé por meio de atos desinteressados.

A fé é uma atitude espiritual do Eu, mas qualquer ato interesseiro do ego

mercenário enfraquece o ambiente para o nascimento e crescimento da fé.

A frase final sobre “servos inúteis” é um golpe de misericórdia para o nosso

inveterado egoísmo humano. Todo ego se sente “servo útil” e, de tão útil que se julga, quer ser sempre recompensado por seus atos. O ego nada faz de graça; a zona da graça é do Eu espiritual que, por isto mesmo, pode trabalhar de graça.

“Por Moisés foi dada a lei (ego), pelo Cristo veio a verdade, veio a graça (Eu) ”.

Todo ego mercenário é um ótimo discípulo de Moisés – e um péssimo discípulo do Cristo.

Quem vive no signo da graça age de graça – quem não vive no signo da graça, vive na desgraça.

Por isso, todo ego mercenário é um desgraçado.

O filósofo francês Bérgson diz que todas as igrejas detestam o egoísmo terrestre, mas todas recomendam o egoísmo celeste. As teologias ensinam, geralmente, que o homem deve ser bom, altruísta, virtuoso, com o fim de merecer o céu – e não percebem que também isto é egoísmo, egoísmo póstumo, egoísmo sublimado.

O homem realmente liberto e totalmente realizado não espera recompensa

alguma pelo fato de ser bom, nem antes nem depois da morte. O homem

realmente bom é incondicionalmente bom. Não é bom para ser recompensado com algum céu objetivo, com um prêmio celeste. O homem incondicionalmente bom realiza o reino dos céus dentro de si subjetivamente, e esta auto-realização que é o seu céu. Não espera nenhum céu externo, de fora, realiza o seu céu interno, de dentro.

Isto não é egoísmo, porque onde o ego foi totalmente superado não há mais

egoísmo.

É o que o Mestre chama ser “servo inútil”, sem crédito, sem direito a nenhuma recompensa objetiva.

Kant, na sua filosofia analítica, censura acremente (De maneira áspera, rude; em que há grosseria) Spinoza (ateu excomungado) pelo fato de ter glorificado o homem incondicionalmente bom; mas o monista judeu de Amsterdam era mais crístico que o teísta cristão de Königsberg.

Toda esta parábola visa a mostrar que a verdadeira fé, ou fidelidade com o

Espírito de Deus, cresce na razão direta da libertação do homem de qualquer espírito mercenário.

FONTE:

Huberto Rodhen

Carlos R. Pastorino

Bíblia de Jerusalém

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