terça-feira, 28 de setembro de 2021

BRASIL CORAÇÃO DO MUNDO PATRIA DO EVANGELHO

 

BRASIL CORAÇÃO DO MUNDO PATRIA DO EVANGELHO

 

NOTA:

Este livro foi estudado minuciosamente pela sua extensa revelação. É uma obra de Humberto de Campos

 

O inundo político e social do Ocidente encontra-se exausto.

Desde as pregações de Pedro, o eremita, até a morte do Rei Luís IX, diante de Túnis, acontecimento que colocara um dos derradeiros marcos nas guerras das Cruzadas, as sombras da idade medieval confundiram as lições do Evangelho, ensanguentando todas as bandeiras do mundo cristão.

Foi após essa época, no último quartel do século XIV, que o Senhor desejou realizar uma de suas visitas periódicas à Terra, a fim de observar os progressos de sua doutrina e de seus exemplos no coração dos homens.

Anjos e Tronos lhe formavam a corte maravilhosa. Dos céus à Terra, foi colocado outro símbolo da escada infinita de Jacó, formado de flores e de estrelas cariciosas, por onde o Cordeiro de Deus transpôs as imensas distâncias, clarificando os caminhos cheios de treva. Mas, se Jesus vinha do coração luminoso das esferas superiores, trazendo nos olhos misericordiosos a visão dos seus impérios resplandecentes e na alma profunda o ritmo harmonioso dos astros, o planeta terreno lhe apresentava ainda aquelas mesmas veredas escuras, cheias da lama da impenitência e do orgulho das criaturas humanas, e repletas dos espinhos da ingratidão e do egoísmo. Embalde seus olhos compassivos procuraram o ninho doce do seu Evangelho; em vão procurou o Senhor os remanescentes da obra de um de seus últimos enviados à face do orbe terrestre. No coração da Úmbria haviam cessado os cânticos de amor e de fraternidade cristã. De Francisco de Assis só haviam ficado as tradições de carinho e de bondade; os pecados do mundo, como novos lobos de Gúbio, haviam descido outra vez das selvas misteriosas das iniquidades humanas, roubando às criaturas a paz e aniquilando-lhes a vida.

— Helil — disse a voz suave e meiga do Mestre a um dos seus mensageiros, encarregado dos problemas sociológicos da Terra —, meu coração se enche de profunda amargura, vendo a incompreensão dos homens, no que se refere às lições do meu Evangelho. Por toda parte é a luta fratricida, como polvo de infinitos tentáculos, a destruir todas as esperanças; recomendei-lhes que se amassem como irmãos, e vejo-os em movimentos impetuosos, aniquilando-se uns aos outros como Cães desvairados.

— Todavia — replicou o emissário solícito, como se desejasse desfazer a impressão dolorosa e amarga do Mestre —, esses movimentos, Senhor, intensificaram as relações dos povos da Terra, aproximando o Oriente e o Ocidente, para aprenderem a lição da solidariedade nessas experiências penosas; novas utilidades da vida foram descobertas; o comércio progrediu além de todas as fronteiras, reunindo as pátrias do orbe. Sobretudo, devemos considerar que os príncipes cristãos, empreendendo as iniciativas daquela natureza, guardavam a nobre intenção de velar pela paisagem deliciosa dos lugares santos.

— Mas — retornou tristemente a voz compassiva do Cordeiro —, qual o lugar da Terra que não é santo? Em todas as partes do mundo, por mais recônditas que sejam, paira a bênção de Deus, convertida na luz e no pão de todas as criaturas. Era preferível que Saladino guardasse, para sempre, todos os poderes temporais na Palestina, a que caísse um só dos fios de cabelo de um soldado, numa guerra incompreensível por minha causa, que, em todos os tempos, deve ser a do amor e da fraternidade universal.

E, como se a sua vista devassasse todos os mistérios do porvir, continuou:

— Infelizmente, não vejo senão o caminho do sofrimento para modificar tão desoladora situação. Aos feudos de agora, seguir-se-ão as coroas poderosas e, depois dessa concentração de autoridade e de poder, serão os embates da ambição e a carnificina da inveja e da felonia, pelo predomínio do mais forte.

A amargura divina empolgara toda a formosa assembleia de querubins e arcanjos. Foi quando Helil, para renovar a impressão ambiente, dirigiu-se a Jesus com brandura e humildade:

— Senhor, se esses povos infelizes, que procuram na grandeza material uma felicidade impossível, marcham irremediavelmente para os grandes infortúnios coletivos, visitemos os continentes ignorados, onde espíritos jovens e simples aguardam a semente de uma vida nova. Nessas terras, para além dos grandes oceanos, poderíeis instalar o pensamento cristão, dentro das doutrinas do amor e da liberdade.

E a caravana fulgurante, deixando um rastro de luz na imensidade dos espaços, encaminhou-se ao continente que seria, mais tarde, o mundo americano.

O Senhor abençoou aquelas matas virgens e misteriosas. Enquanto as aves lhe homenageavam a inefável presença com seus cantares harmoniosos, as flores se inclinavam nas árvores ciclópicas, aromatizando-lhe as eterizadas sendas. O perfume do mar casava-se ao oxigênio agreste da selva bravia, impregnando todas as coisas de um elemento de força desconhecida. No solo, eram os silvícolas humildes e simples, aguardando uma era nova, com o seu largo potencial de energia e bondade.

Cheio de esperanças, emociona-se o coração do Mestre, contemplando a beleza do sublimado espetáculo.

— Helil — pergunta ele —, onde fica, nestas terras novas, o recanto planetário do qual se enxerga, no infinito, o símbolo da redenção humana?

— Esse lugar de doces encantos, Mestre, de onde se veem, no mundo, as homenagens dos céus aos vossos martírios na Terra, fica mais para o sul.

E, quando no seio da paisagem repleta de aromas e de melodias, contemplavam as almas santificadas dos orbes felizes, na presença do Cordeiro, as maravilhas daquela terra nova, que seria mais tarde o Brasil, desenharam-se no firmamento, formado de estrelas rutilantes, no jardim das constelações de Deus, o mais imponente de todos os símbolos.

Mãos erguidas para o Alto, como se invocasse a bênção de seu Pai para todos os elementos daquele solo extraordinário e opulento, exclama então Jesus:

— Para esta terra maravilhosa e bendita será transplantada a árvore do meu Evangelho de piedade e de amor. No seu solo dadivoso e fertilíssimo, todos os povos da Terra aprenderão a lei da fraternidade universal. Sob estes céus serão entoados os hosanas mais ternos à misericórdia do Pai Celestial. Tu, Helil, te corporificarás na Terra, no seio do povo mais pobre e mais trabalhador do Ocidente; instituirás um roteiro de coragem, para que sejam transpostas as imensidades desses oceanos perigosos e solitários, que separam o velho do novo mundo. Instalaremos aqui uma tenda de trabalho para a nação mais humilde da Europa, glorificando os seus esforços na oficina de Deus. Aproveitaremos o elemento simples de bondade, o coração fraternal dos habitantes destas terras novas, e, mais tarde, ordenarei a reencarnação de muitos Espíritos já purificados no sentimento da humildade e da mansidão, entre as raças oprimidas e sofredoras das regiões africanas, para formarmos o pedestal de solidariedade do povo fraterno que aqui florescerá, no futuro, a fim de exaltar o meu Evangelho, nos séculos gloriosos do porvir. Aqui, Helil, sob a luz misericordiosa das estrelas da cruz, ficará localizado o coração do mundo!

Consoante a vontade piedosa do Senhor, todas as suas ordens foram cumpridas integralmente.

Daí a alguns anos, o seu mensageiro se estabelecia na Terra, em 1394, como filho de D. João I e de D. Filipa de Lencastre, e foi o heroico Infante de Sagres, que operou a renovação das energias portuguesas, expandindo as suas possibilidades realizadoras para além dos mares.

Almas bem-aventuradas pelas suas renúncias se corporificaram nas costas da África flagelada e oprimida e, juntas a outros Espíritos em prova, formaram a falange abnegada que veio escrever na Terra de Santa Cruz, com os seus sacrifícios e com os seus sofrimentos, um dos mais belos poemas da raça negra em favor da humanidade.

Foi por isso que o Brasil, onde confraternizam hoje todos os povos da Terra e onde será modelada a obra imortal do Evangelho do Cristo, muito antes do Tratado de Tordesilhas, que fincou as balizas das possessões espanholas, trazia já, em seus contornos, a forma geográfica do coração do mundo.

A PÁTRIA DO EVANGELHO

D. Henrique de Sagres abandonou as suas atividades na Terra em 1460. Estava realizado, em linhas gerais, o seu grande destino. Da sua casa modesta da Vila Nova do Infante, onde se encontra ainda hoje uma placa comemorativa, como perene homenagem ao grande navegador, desenvolvera ele, no mundo inteiro, um sentimento novo de amor ao desconhecido. Desde a expedição de Ceuta, o Infante deixou transparecer, em vários documentos que se perderam nos arquivos da Casa de Avis, que tinha a certeza da existência das terras maravilhosas, cuja beleza haviam contemplado os seus olhos espirituais, no passado longínquo.

Toda a sua existência de abnegação e ascetismo constituíra uma série de relâmpagos luminosos no mundo de suas recordações. A prova de que os seus estudos particulares falavam da terra desconhecida é que o mapa de André Bianco, datado de 1448, mencionava uma região fronteira à África. Para os navegadores portugueses, portanto, a existência da grande ilha austral já não era assunto ignorado.

Novamente no Além, o antigo mensageiro do Mestre não descansou, chamando a colaborar com ele numerosas falanges de trabalhadores devotados à causa do Evangelho do Senhor. Procura influenciar sobre o curto reinado de D. Duarte estendendo, com os seus cooperadores, essa mesma atuação ao tempo de D. Afonso V, sem lograr uma ação decisiva a favor das empresas esperadas.

Aproveitando o sonho geral dos tesouros das índias, a personalidade do Infante se desdobra, com o objetivo de descortinar o continente novo ao mundo político do Ocidente. Enquanto a sua atuação encontra fraco eco junto às administrações de sua terra, o povo de Castela começa a preocupar-se seriamente com as ideias novas, lançando-se à disputa das riquezas entrevistas. Eleva-se então ao poder D. João II, cujo reinado se caracterizou pela previdência e pela energia realizadora. Junto do seu coração, o emissário invisível encontra grandes aspirações, irmãs das suas. O Príncipe Perfeito torna-se o dócil instrumento do mensageiro abnegado. A mesma sede de além lhe devora o pensamento. Expedições diversas se organizam. O castelo de São Jorge é fundado por Diogo de Azambuja, na Costa da Mina; Diogo Cão descobre toda a costa de Angola; por toda parte, sob o olhar protetor do grande rei, aventuram-se os expedicionários. Mas o espírito, em todos os planos e circunstâncias da vida, tem de sustentar as maiores lutas pela sua purificação suprema. Entidades atrasadas na sua carreira evolutiva se unem contra as realizações do príncipe ilustre. Depois do desastre no Campo de Santarém, no qual o filho perde a vida em condições trágicas, surgem outras complicações entre a sua direção justiceira e os nobres da época, e D. João II morre envenenado em Alvor, no ano de 1495.

Todavia, os planos da Escola de Sagres estavam consolidados. Com a ascensão de D. Manuel I ao poder, nada mais se fez que atingir o fim de longa e laboriosa preparação. Em 1498, Vasco da Gama descobre o caminho marítimo das índias e, um pouco mais tarde, Gaspar de Corte Real descobre o Canadá. Todos os navegadores saem de Lisboa com instruções secretas quanto à terra desconhecida, que se localizava fronteira à África e que já havia sido objeto de protesto de D. João contra a bula de Alexandre VI, que pretendia impor-lhe restrições ao longo do Atlântico, por sugestão dos reis católicos da Espanha.

No dia 7 de março de 1500, preparada a grande expedição de Cabral ao novo roteiro das índias, todos os elementos da expedição, encabeçados pelo capitão-mor, visitaram o Paço de Alcáçova, e na véspera do dia 9, dia este em que se fizeram ao mar, imploraram os navegadores a bênção de Deus, na ermida do Restelo, pouso de meditação que a fé sincera de D. Henrique havia edificado. O Tejo estava coberto de embarcações engalanadas e, entre manifestações de alegria e de esperança, exaltava-se o pendão glorioso das quinas.

No oceano largo, o capitão-mor considera a possibilidade de levar a sua bandeira à terra desconhecida do hemisfério sul. O seu desejo cria a necessária ambientação ao grande plano do mundo invisível. Henrique de Sagres aproveita esta maravilhosa possibilidade. Suas falanges de navegadores do Infinito se desdobram nas caravelas embandeiradas e alegres. Aproveitam-se todos os ascendentes mediúnicos. As noites de Cabral são povoadas de sonhos sobrenaturais e, insensivelmente, as caravelas inquietas cedem ao impulso de uma orientação imperceptível. Os caminhos das índias são abandonados. Em todos os corações há uma angustiosa expectativa. O pavor do desconhecido empolga a alma daqueles homens rudes, que se viam perdidos entre o céu e o mar, nas imensidades do Infinito. Mas, a assistência espiritual do mensageiro invisível, que, de fato, era ali o divino expedicionário, derrama um claror de esperança em todos os ânimos. As primeiras mensagens da terra próxima recebem-nas com alegria indizível. As ondas se mostram agora, amiúde, qual colcha caprichosa de folhas, de flores e de perfumes. Avistam-se os píncaros elegantes da plaga do Cruzeiro e, em breves horas, Cabral e sua gente se reconfortam na praia extensa e acolhedora. Os naturais os recebem como irmãos muito amados. A palavra religiosa de Henrique Soares, de Coimbra, eles a ouvem com veneração e humildade. Colocam suas habitações rústicas e primitivas à disposição do estrangeiro e reza a crônica de Caminha que Diogo Dias dançou com eles nas areias de Porto Seguro, celebrando na praia o primeiro banquete de fraternidade na Terra de Vera Cruz.

A bandeira das quinas desfralda-se então gloriosamente nas plagas da terra abençoada, para onde transplantara Jesus a árvore do seu amor e da sua piedade, e, no céu, celebra-se o acontecimento com grande júbilo. Assembleias espirituais, sob as vistas amorosas do Senhor, abençoam as praias extensas e claras e as florestas cerradas e bravias. Há um contentamento intraduzível em todos os corações, como se um pombo simbólico trouxesse as novidades de um mundo mais firme, após novo dilúvio.

Henrique de Sagres, o antigo mensageiro do Divino Mestre, rejubila-se com as bênçãos recebidas do céu. Mas, de alma alarmada pelas emoções mais carinhosas e mais doces, confia ao Senhor as suas vacilações e os seus receios:

— Mestre — diz ele —, graças ao vosso coração misericordioso, a terra do Evangelho florescerá agora para o mundo inteiro. Dai-nos a vossa bênção para que possamos velar pela sua tranquilidade, no seio da pirataria de todos os séculos. Temo, Senhor, que as nações ambiciosas matem as nossas esperanças, invalidando as suas possibilidades e destruindo os seus tesouros...

Jesus, porém, confiante, por sua vez, na proteção de seu Pai, não hesita em dizer com a certeza e a alegria que traz em si:

— Helil, afasta essas preocupações e receios inúteis. A região do Cruzeiro, onde se realizará a epopeia do meu Evangelho, estará, antes de tudo, ligada eternamente ao meu coração. As injunções políticas terão nela atividades secundárias, porque, acima de todas as coisas, em seu solo santificado e exuberante estará o sinal da fraternidade universal, unindo todos os espíritos. Sobre a sua volumosa extensão pairará constantemente o signo da minha assistência compassiva e a mão prestigiosa e potentíssima de Deus pousará sobre a terra de minha cruz, com infinita misericórdia. As potências imperialistas da Terra esbarrarão sempre nas suas claridades divinas e nas suas ciclópicas realizações. Antes de o estar ao dos homens, é ao meu coração que ela se encontra ligada para sempre.

Nos céus imensos, havia clarões estranhos de uma bênção divina. No seu sólio de estrelas e de flores, o Supremo Senhor sancionara, por certo, as bondosas promessas de seu Filho.

E foi assim que o minúsculo Portugal, através de três longos séculos embora preocupado com as fabulosas riquezas das índias, pôde conservar, contra flamengos e ingleses, franceses e espanhóis, a unidade territorial de uma pátria com oito milhões e meio de quilômetros quadrados e com oito mil quilômetros de costa marítima. Nunca houve exemplo como esse em toda a história do mundo. As possessões espanholas se fragmentaram, formando cerca de vinte repúblicas diversas. Os Estados americanos do norte devem sua posição territorial às anexações e às lutas de conquista. A Louisiana, o Novo México, o Alasca, a Califórnia, o Texas, o Oregon, surgiram depois da emancipação das colônias inglesas. Só o Brasil conseguiu manter-se uno e indivisível na América, entre os embates políticos de todos os tempos. Ê que a mão do Senhor se alça sobre a sua longa extensão e sobre as suas prodigiosas riquezas. O coração geográfico do orbe não se podia fracionar.

OS DEGREDADOS

Todos os Espíritos edificados nas lições sublimes do Senhor se reuniram, logo após o descobrimento da nova terra, celebrando o acontecimento nos espaços do infinito. Grandes multidões donairosas e aéreas formavam imensos hifens de luz, entre a terra e o céu. Uma torrente impetuosa de perfumes se elevava da paisagem verde e florida, em busca do firmamento, de onde voltava à superfície do solo, saturada de energias divinas. Nos ninhos quentes das árvores, pousavam as vibrações renovadoras das esperanças santificantes, e, no além, ouviam-se as melodias evocadoras da Galileia, ubertosa (O mesmo que: fecunda) e agreste antes das lutas arrasadoras das Cruzadas, que lhe talaram todos os campos, transformando-a num montão de ruínas.

Afigurava-se que a região dos pescadores humildes, que conheceu, bastante assinalados, os passos do Divino Mestre, se havia transplantado igualmente para o continente novo, dilatada em seus suaves contornos.

Uma alegria paradisíaca reinava em todas as almas que comemoravam o advento da Pátria do Evangelho, quando se fez presente, na assembleia augusta, a figura misericordiosa do Cordeiro.

Complacente sorriso lhe bailava nos lábios angélicos e suas mãos liriais empunhavam largo estandarte branco, como se um fragmento de sua alma radiosa estivesse ali dentro, transubstanciado naquela bandeira de luz, que era o mais encantador dos símbolos de perdão e de concórdia.

Dirigindo-se a um dos seus elevados mensageiros na face do orbe terrestre, em meio do divino silêncio da multidão espiritual, sua voz ressoou com doçura:

— Ismael, manda o meu coração que doravante sejas o zelador dos patrimônios imortais que constituem a Terra do Cruzeiro. Recebe-a nos teus braços de trabalhador devotado da minha seara, como a recebi no coração, obedecendo a sagradas inspirações do Nosso Pai. Reúne as incansáveis falanges do infinito, que cooperam nos ideais sacrossantos de minha doutrina, e inicia, desde já, a construção da pátria do meu ensinamento. Para aí transplantei a árvore da minha misericórdia e espero que a cultives com a tua abnegação e com o teu sublimado heroísmo. Ela será a doce paisagem dilatada do Tiberíades, que os homens aniquilaram na sua voracidade de carnificina. Guarda este símbolo da paz e inscreve na sua imaculada pureza o lema da tua coragem e do teu propósito de bem servir à causa de Deus e, sobretudo, lembra-te sempre de que estarei contigo no cumprimento dos teus deveres, com os quais abrirás para a humanidade dos séculos futuros um caminho novo, mediante a sagrada revivescência do Cristianismo.

Ismael recebe o lábaro bendito das mãos compassivas do Senhor, banhado em lágrimas de reconhecimento, e, como se entrara em ação o impulso secreto da sua vontade, eis que a nívea bandeira tem agora uma insígnia. Na sua branca substância, uma tinta celeste inscrevera o lema imortal: “Deus, Cristo e Caridade”.

Todas as almas ali reunidas entoam um hosana melodioso e intraduzível à sabedoria do Senhor do Universo. São vibrações gloriosas da espiritualidade, que se elevam pelos espaços ilimitados, louvando o Artista Inimitável e o Matemático Supremo de todos os sóis e de todos os mundos.

O emissário de Jesus desce então à Terra, onde estabelecerá a sua oficina. Os exércitos dos seres redimidos e luminosos lhe seguem a esplêndida trajetória e, como se o chão do Brasil fosse a superfície de um novo Hélicon da imortalidade, a natureza, macia e cariciosa, toda se enfeita de luzes e sombras, de sinfonias e de ramagens odoríferas, preparando-se para um banquete de deuses.

Os caminhos agrestes tornam-se sendas de maravilhosa beleza, rasgadas pelas coortes do invisível. Nessa hora, a frota de Cabral foge das águas verdes e fartas da Baía de Porto Seguro.

Entretanto, nas fitas extensas da praia choram, desesperadamente, os dois degredados, dos vinte párias sociais que o Rei D. Manuel I destinara ao exílio.

Os homens do mar se distanciam daqueles sítios, levando amostras da sua extraordinária riqueza. Em toda a paisagem há um largo ponto de interrogação, enquanto os dois infelizes se lastimam sem consolo e sem esperança. Os silvícolas amáveis e fraternos lhes abrem os braços; é dos seus corações rudes e simples que desabrocham, para a amargura deles, as flores amigas de um brando conforto.

Mas, Afonso Ribeiro, um dos condenados ao penoso desterro, avança numa piroga desprotegida e desmantelada, sem que os olhos da História lhe anotassem o gesto de profunda desesperação, a caminho do mar alto. Ao longe, percebem-se ainda os derradeiros mastros das caravelas itinerantes. O infeliz degredado anseia por morrer. Os últimos gemidos abafados lhe saem da garganta exausta. Seus olhos, inchados de pranto, contemplam as duas imensidades, a do oceano e a do céu, e, esperando na morte o socorro bondoso, exclama, do íntimo do coração:

— Jesus, tende piedade da minha infinita amargura! Enviai a morte ao meu espírito desterrado. Sou inocente, Senhor, e padeço a tirania da injustiça dos homens. Mas, se a traição e a covardia me arrebataram da pátria, afastando dos meus olhos as paisagens queridas e os afetos mais santos do coração, essas mesmas calúnias não me separaram da vossa misericórdia!

Nesse instante, porém, o pobre exilado sente que uma alvorada de luz estranha lhe nasce no âmago da alma atribulada. Uma esperança nova se apossa de todas as suas fibras emotivas e, como por delicado milagre, a sua jangada rústica regressa, celeremente, à praia distante. Em vão as ondas sinistras e poderosas tentam arrebatá-lo para o oceano largo. Uma força misteriosa o conduz a terra firme, onde o seu coração encontrará uma família nova.

Ismael havia realizado o seu primeiro feito nas Terras de Vera Cruz.

Trazendo um náufrago e inocente para a base da sociedade fraterna do porvir, ele obedecia a sagradas determinações do Divino Mestre.

Primeiramente, surgiram os índios, que eram os simples de coração; em segundo lugar, chegavam os sedentos da justiça divina e, mais tarde, viriam os escravos, como a expressão dos humildes e dos aflitos, para a formação da alma coletiva de um povo bem-aventurado por sua mansidão e fraternidade.

Naqueles dias longínquos de 1500, já se ouviam no Brasil os ecos acariciadores do Sermão da Montanha.

OS MISSIONÁRIOS

D. Manuel I recebeu sem grande surpresa a notícia do descobrimento das terras novas. Seu espírito se achava voltado para os tesouros inesgotáveis das índias, que faziam da Lisboa daquele tempo uma das mais poderosas cidades marítimas da Europa.

Contudo, o êxito do capitão-mor provocou um largo movimento de curiosidade no círculo dos navegadores portugueses. Quase todas as expedições que se dirigiam aos régulos da Ásia tocavam nos portos vastos de Vera Cruz, cujo Nordeste já centralizava as atenções dos comerciantes franceses, que aí se abasteciam de vastas provisões de pau-brasil.

Geralmente, as caravelas lusitanas que demandavam Calicut (Calicut ou Calecute: cidade da Índia) traziam consigo grande número de exilados e de aventureiros. Muitos deles foram abandonados no extenso litoral do país inexplorado e desconhecido, ao influxo das inspirações do mundo invisível; essas criaturas vinham como batedores humildes, à frente dos trabalhadores que, mais tarde, chegariam às terras novas.

A situação oficial perdurava com a indiferença do monarca, distraído pelas suas conquistas no Oriente; mas, entre as autoridades administrativas do Reino, comentava-se a questão da nova colônia abandonada aos exploradores franceses e espanhóis. Compelido pela opinião do seu tempo, D. Manuel providencia as primeiras expedições oficiais, a fim de que se colocasse nas suas praias extensas o sinal das armas portuguesas. Prepara-se a expedição de Gonçalo Coelho, que, além de alguns cosmógrafos notáveis, levava consigo Américo Vespúcio, famoso na história americana pelas suas cartas acerca do Novo Mundo, nas quais, infelizmente, reside grande percentagem de literatura e de pretensiosa imaginação. Chegando ao litoral baiano, Gonçalo Coelho organiza a Feitoria de Santa Cruz, primeiro núcleo da civilização ocidental nas plagas brasileiras. O nome do país é agora Terra de Santa Cruz, pelo qual se faz conhecido nos documentos da metrópole.

Depois de graves incidentes, nos quais Vespúcio se entrega a aventuras português, pobre de possibilidades e com raros companheiros, lança marcos de Portugal ao longo de toda a costa brasileira. Uma das emoções mais gratas ao seu espírito é o quadro maravilhoso da Baía de Guanabara. Julgando-se no estuário de um rio esplêndido, denomina Rio de Janeiro o local, em virtude de se encontrar ali nos primeiros dias do primeiro mês do ano. No sítio encantado, instala uma nova Feitoria — a da Carioca, da qual não ficaram largos vestígios, passando aí meses a fio, a retemperar suas energias em contato com a paisagem magnífica. Prossegue na sua tarefa de reconhecimento e volta depois à metrópole, sem conseguir interessar o monarca no que se referia à exploração da terra nova. Limitou-se o rei português a permitir o estabelecimento de feiras de pau-brasil, na colônia longínqua, o que facultou aos elementos estrangeiros o mais largo desenvolvimento de comércio com os indígenas da região litorânea.

De Portugal, somente aportavam no Brasil, de vez em quando, alguns aventureiros e degredados, obedecendo a um apelo inexplicável e desconhecido. Foi, aproximadamente, por essa época, que Ismael reuniu em grande assembleia os seus colaboradores mais devotados, com o objetivo de instituir um programa para as suas atividades espirituais na Terra de Santa Cruz:

— Irmãos — exclamou ele no seio da multidão de companheiros abnegados —, plantamos aqui, sob o olhar misericordioso de Jesus, a sua bandeira de paz e de perdão. Todo um campo de trabalhos se desdobra às nossas vistas. Precisamos de colaboradores devotados que não temam a luta e o sacrifício. Voltemo-nos para os centros culturais de Coimbra e de Lisboa, a regenerar as fontes do pensamento, no elevado sentido de ampliarmos a nossa ação espiritual. Alguns de vós ficareis em Portugal, mantendo de pé os elementos protetores dos nossos trabalhos, e a maioria terá de envergar o sambenito humilde dos missionários penitentes, para levar o amor de Deus aos sertões ínvios e carecidos de todo o conforto. Temos de buscar no seio da igreja as roupagens exteriores de nossa ação regeneradora. Infelizmente, a dolorosa situação do mundo europeu, em virtude do fanatismo religioso, tão cedo não será modificada. Somente as grandes dores realizarão a fraternidade no seio da instituição que deverá representar o pensamento do Senhor na face da Terra, a igreja que, desviada dos seus grandes princípios pela mais terrível de todas as fatalidades históricas, foi obrigada a participar do organismo mundano e perecível dos Estados. Um sopro de reformas se anuncia, impetuoso, no âmago das organizações religiosas da Europa e, em breves dias, Roma conhecerá momentos muito amargos, não obstante os sonhos de arte e de grandeza de Leão X, que detém neste instante uma coroa injustificável, porquanto o reino de Jesus ainda não é desse mundo; mas, temos de aproveitar as possibilidades que o seu campo nos oferece para encetar essa obra de edificação da pátria do Cordeiro de Deus. Pregareis, em Portugal, a verdade e o desprendimento das riquezas terrestres e trabalhareis, sob a minha direção, nas florestas imensas de Santa Cruz, arrebanhando as almas para o Único Pastor. O característico de vossa ação, como missionários do Pai Celestial, será um testemunho legítimo de renúncia a todos os bens materiais e uma consoladora pobreza.

Quase todos os Espíritos santificados, ali presentes, se oferecem como voluntários da grande causa. Entre muitos, descobriremos José de Anchieta e Bartolomeu dos Mártires, Manuel da Nóbrega, Diogo Jácome, Leonardo Nunes e muitos outros, que também foram dos chamados para esse conclave no mundo invisível.

Em 1531, após Portugal ter resolvido, sob a direção de D. João III, a primeira tentativa de colonização da Terra de Santa Cruz, alguns dos convocados, participantes daquela augusta assembleia, chegavam ao Brasil com Martim Afonso de Sousa e a sua companhia de trezentos homens, a tomar parte ativamente na fundação de S. Vicente e na de Piratininga.

Nóbrega aportava mais tarde, na Bahia, com Tome de Sousa, o primeiro governador-geral da colônia, em 1549, chefiando grande número desses irmãos dos simples e dos infelizes, a fim de estabelecer novos elementos de progresso e dar início à cidade do Salvador.

Anchieta veio depois, em 1553, com Duarte da Costa, e se transformou no desvelado apóstolo do Brasil. Designado para desenvolver, particularmente, os núcleos de civilização já existentes em Piratininga, aí se manteve no seu respeitável colégio, que todos os governos paulistas conservaram com veneração carinhosa, como tradição de sua cultura e de sua bondade. Alguns historiadores falam com severidade da energia vigorosa do apóstolo que, muitas vezes, foi obrigado a assumir atitudes corretivas no seio das tribos, que, entretanto, lhe mereciam as dedicações e os desveles de um pai. Anchieta aliou, no mundo, à suprema ternura, grande energia realizadora; mas, aqueles que, na história oficial, lhe descobrem os gestos enérgicos, não lhe notam a suavidade do coração e a profundeza dos sacrifícios, nem sabem que, depois, foi ainda ele a maior expressão de humildade no antigo convento de Santo Antônio do Rio de Janeiro, onde, com o hábito singelo de frade, adoçou ainda mais as suas concepções de autoridade. A edificadora humildade de um Fabiano de Cristo, aliada a um sentimento de renúncia total de si mesmo, constituía a última pedra que faltava na sua coroa de apóstolo da imortalidade.

D. João III teve a infelicidade de introduzir em Portugal o organismo sinistro da Inquisição. Com o tribunal da penitência, vieram os Jesuítas.

Não constitui objeto do nosso trabalho o exame dos erros profundos da condenável instituição, que fez da Igreja, por muitos séculos, um centro de perversidade e de sombras compactas, em todas as nações europeias, que a abrigaram à sombra da máquina do Estado. O que nos importa é a exaltação daqueles missionários de Deus, que afrontavam a noite das selvas para aclarar as consciências com a lição suave do Mártir do Calvário. Esses homens abnegados eram, de fato, “o sal da nova terra”.

Os falsos sacerdotes poderiam continuar massacrando, em nome do Senhor, que é a misericórdia suprema; poderiam prosseguir ostentando as púrpuras luxuosas e todas as demais suntuosidades do reino mentiroso desse mundo, incensando os poderosos da Terra e distanciando-se dos pobres e dos aflitos; mas, os humildes missionários da cruz ouviam a voz de Ismael, no âmago de suas almas; aos seus sagrados apelos, abandonaram todos os bens, para seguir os rastros luminosos d’Aquele que foi e será sempre a luz do mundo. Foram eles os primeiros traços luminosos das falanges imortais do Infinito, corporificadas na terra do Evangelho, e, com a sua divina pobreza, se fizeram os iniciadores da grande missão apostólica do Brasil no seio do mundo moderno, inaugurando aqui um caminho resplandecente para todas as almas, transformando a terra do Cruzeiro numa dourada e eterna Porciúncula.

OS ESCRAVOS

Certo dia, preparava-se, numa das esferas superiores do infinito, o encontro de Ismael com Aquele que será sempre caminho, verdade e vida. Por toda parte, abriam-se flores evanescentes, oriundas de um solo de radiosas neblinas. Luzes policrômicas (é o estado de um corpo ou sistema cujas partes têm várias cores.) enfeitavam todas as paisagens celestes, que se perdiam na incomensurável extensão dos espaços felizes.

Rodeado dos seres santificados e venturosos que constituem a coorte luminosa de seus mensageiros abnegados, recebeu o Senhor, com a sua complacência, o emissário dileto do seu amor nas terras do Cruzeiro. Ismael, porém, não trazia no coração o sinal da alegria. Seus traços fisionômicos deixavam mesmo transparecer angelical amargura.

— Senhor — exclama ele —, sinto dificuldades para fazer prevaleçam os vossos desígnios nos territórios onde pairam as vossas bênçãos dulcificantes. A civilização, que ali se inicia sob os imperativos da vossa vontade compassiva e misericordiosa, acaba de ser contaminada por lamentáveis acontecimentos. Os donatários dos imensos latifúndios de Santa Cruz fizeram-se à vela, escravizando os negros indefesos da Luanda, da Guiné e de Angola. Infelizmente, os pobres cativos, miseráveis e desditosos, chegam à pátria do vosso Evangelho como se fossem animais bravios e selvagens, sem coração e sem consciência.

O mensageiro, porém, não conseguiu continuar. Soluços divinos lhe rebentaram do peito opresso, evocando tão amargas lembranças...

O Divino Mestre, porém, cingindo-o ao seu coração augusto e magnânimo, explicou brandamente:

— Ismael, asserena teu mundo íntimo no cumprimento dos sagrados deveres que te foram confiados. Bem sabes que os homens têm a sua responsabilidade pessoal nos feitos que realizam em suas existências isoladas e coletivas. Mas, se não podemos tolher-lhes aí a liberdade, também não podemos esquecer que existe o instituto imortal da justiça divina, onde cada qual receberá de conformidade com os seus atos. Havia eu determinado que a Terra do Cruzeiro se povoasse de raças humildes do planeta, buscando-se a colaboração dos povos sofredores das regiões africanas; todavia, para que essa cooperação fosse efetivada sem o atrito das armas, aproximei Portugal daquelas raças sofredoras, sem violências de qualquer natureza. A colaboração africana deveria, pois, verificar-se sem abalos perniciosos, no capítulo das minhas amorosas determinações. O homem branco da Europa, entretanto, está prejudicado por uma educação espiritual condenável e deficiente. Desejando entregar-se ao prazer fictício dos sentidos, procura eximir-se aos trabalhos pesados da agricultura, alegando o pretexto dos climas considerados impiedosos. Eles terão a liberdade de humilhar os seus irmãos, em face da grande lei do arbítrio independente, embora limitado, instituído por Deus para reger a vida de todas as criaturas, dentro dos sagrados imperativos da responsabilidade individual; mas, os que praticarem o nefando comércio sofrerão, igualmente, o mesmo martírio, nos dias do futuro, quando forem também vendidos e flagelados em identidade de circunstâncias. Na sua sede nociva de gozo, os homens brancos ainda não perceberam que a evolução se processa pela prática do bem e que todo o determinismo de Nosso Pai deve assinalar-se pelo “amai o próximo como a vós mesmos”. Ignoram voluntariamente que o mal gera outros males com um largo cortejo de sofrimentos. Contudo, através dessas linhas tortuosas, impostas pela vontade livre das criaturas humanas, operarei com a minha misericórdia. Colocarei a minha luz sobre essas sombras, amenizando tão dolorosas crueldades. Prossegue com as tuas renúncias em favor do Evangelho e confia na vitória da Providência Divina.

Calara-se a voz de Jesus por instantes; mais confortado, Ismael continuou:

— Senhor, não teríeis um meio direto de orientar a política dominante, no sentido de se purificar o ambiente moral da Terra de Santa Cruz?

Ao que o Divino Mestre ponderou sabiamente:

— Não nos compete cercear os atos e intenções dos nossos semelhantes e sim cuidar intensamente de nós mesmos, considerando que cada um será justiçado na pauta de suas próprias obras. Infelizmente, Portugal, que representa um agrupamento de Espíritos trabalhadores e dedicados, remanescente dos antigos fenícios, não soube receber as facilidades que a misericórdia do Supremo Senhor do Universo lhe outorgou nestes últimos anos. Até aos meus ouvidos têm chegado às súplicas dolorosas das raças flageladas por sua prepotência e desmesuradas ambições. Na velha Península já não existe o povo mais pobre e mais laborioso da Europa. O luxo das conquistas lhe amoleceu as fibras criadoras e todas as suas preciosas energias e qualidades de trabalho vêm esmorecendo sob o amontoado de riquezas fabulosas. Entretanto, o tempo é o grande mestre de todos os homens e de todos os povos, e, se não nos é possível cercear o arbítrio livre das almas, poderemos mudar o curso dos acontecimentos, a fim de que o povo lusitano aprenda, na dor e na miséria, as lições sagradas da experiência e da vida.

Ismael retornou à luta, cheio de fervorosa coragem e os acontecimentos foram modificados. Os donatários cruéis sofreram os mais tristes reveses no solo do Brasil. Os Tupinambás e os Tupiniquins, que se localizavam na Bahia e haviam recebido Cabral com as melhores expressões de fraternidade, reagiram contra os colonizadores, transformados, para eles, em desalmados verdugos. Lutas cruentas desencadearam contra os brancos, que lhes depravavam os costumes.

A luxuosa expedição de João de Barros, que se destinava ao Maranhão, mas que saíra de Lisboa com instruções secretas para conquistar o ouro dos incas, no Peru, dispersou-se no mar, sofrendo os seus componentes infinitos martírios e resgatando com elevados tributos de sofrimento as suas criminosas intenções, na condenável aventura.

Os tesouros das índias levaram o povo português à decadência e à miséria, pela disseminação dos artifícios do luxo e pelas campanhas abomináveis da conquista, cheias de crueldade e de sangue. A sede de ouro acarretava o abandono de todos os campos.

A CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA

Nas praias largas e fartas de Santa Cruz, floresciam cidades prestigiosas. Com o feudalismo das capitanias, as cidades e as vilas modernas do litoral do Brasil estavam já em seus primórdios, destacando-se dentre todas os núcleos populosos do Salvador e de São Vicente, em vista das facilidades encontradas pelos colonizadores, com o auxílio dos Caramurus e dos Ramalhos, que os haviam precedido na ação, junto dos indígenas.

Contudo, Portugal ainda não se decidira a destacar os seus elementos mais valorosos para os trabalhos da colônia, preferindo enviar-lhe criminosos e homens sem escrúpulos. Por toda parte, buscavam os naturais os recantos desconhecidos das florestas remotas, fugindo à escravidão e às torturas injustificáveis que lhes infligiam os homens brancos, por eles, um dia, acolhidos com as mais altas manifestações de fraternidade.

O atrito das raças dava ensejo aos quadros mais dolorosos e mais lamentáveis. Tomé de Sousa estava substituído por Duarte da Costa, que, como o primeiro governador-geral, trouxera também consigo alguns dos missionários concitados por Ismael ao novo apostolado nas florestas americanas.

Por essa época, os franceses desejaram aproveitar a encantadora beleza da Baía de Guanabara e estabeleceram aí uma feitoria, nos mesmos sítios por onde se havia retemperado Gonçalo Coelho, nos primeiros anos decorridos após o descobrimento. Com a proteção do Almirante Coligny, então favorito do Rei Henrique II de França, Nicolau de Villegaignon aporta à baía maravilhosa, em 1555, e funda uma colônia na Ilha de Serigipe, que tomou, mais tarde, o seu nome. Das árvores de Uruçu-mirim, que é hoje a praia elegante do Flamengo, os Tamoios valentes contemplavam, receosos, a intromissão dos europeus na sua região privilegiada. Mas, Villegaignon, com a sua mentalidade religiosa e honesta, consegue captar a confiança dos naturais, concedendo-lhes o mesmo tratamento dispensado aos seus companheiros. Os indígenas recebem carinhosamente a orientação de Paicolás e se tornam devotados colaboradores da sua obra.

Enquanto os franceses se vão apoderando da costa, D. Duarte, na Bahia, lhes observa os movimentos, impossibilitado de adotar quaisquer providências. A metrópole portuguesa não se digna de enviar à colônia distante os elementos necessários à sua conservação e defesa. Villegaignon, localizado na Guanabara, edifica a sua obra; mas, os padres calvinistas, que lhe acompanharam a expedição, inutilizam-lhe muitas vezes o trabalho construtivo, com as suas discussões estéreis. Em 1559, Villegaignon regressa à França, no propósito de buscar recursos oficiais, sem jamais tornar ao Brasil, ficando os seus compatriotas abandonados na colônia nascente.

Em 1558, havia assumido o governo-geral de Santa Cruz, Mem de Sá, que combate sem tréguas a influência dos estrangeiros. Com a sua energia, expele os franceses do Rio de Janeiro, destruindo-lhes as fortificações. Mal, porém, se havia retirado o governador, voltaram os franceses dispersos a reassumir a sua posição na Ilha de Serigipe, com o auxílio dos Tamoios, reunidos a esse tempo na maior confederação indígena que já existiu em terras do Brasil, sob a direção de Cunhambebe, contra as perversidades dos colonizadores portugueses. O governador-geral reconhece a necessidade de fundar-se uma povoação que aí ficasse como sentinela da costa, a fim de eliminar os derradeiros resquícios das influências francesas. O grande projeto aguarda ensejo favorável para a sua concretização.

Estácio de Sá, sobrinho do governador, é então incumbido de comandar uma guarnição que ali se planta, em defesa da cidade; a povoação se reparte em pequenas guarnições de militares, junto ao Pão de Açúcar e numa das numerosas ilhas do golfo esplêndido. Os franceses, todavia, unem-se aos índios e Estácio de Sá morre, em 1567, empenhado com eles em guerras. O combate, em tais circunstâncias, assume proporções aspérrimas e rudes. Mem de Sá reúne todas as forças disponíveis nas cidades da colônia e ataca todas as fortificações que existiam onde hoje se situam a praia do Flamengo e a Ilha do Governador; obtém a mais completa vitória sobre o inimigo, mas permitiu, lamentavelmente, que aí se consumassem inauditas crueldades com os vencidos.

Os portugueses transferem, então, a cidade, que fica definitivamente fundada no Morro de São Januário, mais tarde do Castelo. Em homenagem ao mártir do Cristianismo, recebeu a cidade o nome de São Sebastião, ficando outro sobrinho do governador na sua administração.

Nas esferas superiores do infinito, Ismael e suas abnegadas falanges choram sobre tão lamentáveis acontecimentos, quais o suplício imposto a João de Boles pelos elementos de mais confiança dos maiorais da espiritualidade.

A cidade fica sob a proteção espiritual de Sebastião, o grande filho de Narbonne, martirizado pela sua fé cristã ao tempo de Diocleciano, em 288 da nossa era. Estácio de Sá reúne-se às falanges invisíveis, encarregadas de cooperar no progresso daqueles sítios. Sob as vistas amorosas do desvelado patrono da cidade, desdobra-se em dedicação a favor do seu progresso, entre os núcleos florescentes.

Muitas vezes voltou Estácio a se corporificar na Pátria do Evangelho, para viver na paisagem predileta dos seus olhos. Sua personalidade aí adquiriu elementos de ciência e de virtude e, ainda há poucos anos, podia ser encontrada na figura do grande benemérito do Rio de Janeiro, que foi Osvaldo Cruz.

Depois das lutas sanguinolentas nas praias da baía mais bela do mundo, onde os vícios europeus, desencadeando nefandas guerras religiosas, batalhavam entre si, estendendo suas crueldades até ao Novo Mundo, Ismael considerou a necessidade de estabelecer uma diretriz para a organização econômica da terra do Cruzeiro. Após a elaboração de largos projetos de ação do plano invisível, o sábio mensageiro do Senhor discrimina as funções de cada região da pátria brasileira.

Junto do golfo enorme, onde os contornos da paisagem assumem as cambiantes mais delicadas e mais espantosas, desdobrando-se nos mais graciosos caprichos da Natureza, traça ele as linhas de uma urbe maravilhosa, que será a sede do pensamento brasileiro e, mais fundamente, no coração da terra moça e bravia, traceja as plantas magníficas das duas usinas mais poderosas, onde se guardará o profundo manancial de suas forças orgânicas. Os pontos de fixação dessas sagradas balizas são encontrados ao longo dos seiscentos quilômetros de extensão do Paraíba do Sul e nas cabeceiras do São Francisco, cuja corrente deverá lançar, pelo seu percurso de quase três mil quilômetros, todas as sementes da brasilidade mais pura.

Aproveitou também Ismael os núcleos orientadores de Piratininga, que se expandiriam, mais tarde, com as audaciosas bandeiras. A linha do coração do Brasil, até hoje, se encontra aí traçada.

Ninguém pode negar a hegemonia da intelectualidade carioca e fluminense, desde os tempos em que a cidade de São Sebastião se derramou do Morro do Castelo, invadindo as ilhas, absorvendo as praias longas e elevando-se pelos outeiros vizinhos. São Paulo e Minas de hoje foram as regiões escolhidas como as duas fontes poderosas que guardariam o potencial de energias orgânicas da terra, formando os primeiros índices da etnologia brasileira. As águas do Paraíba do Sul e as de todo o percurso do São Francisco ainda constituem roteiro singular, onde se descobrem os característicos mais fortes do povo fraternal da terra do Cruzeiro.

Cada Estado do Brasil tem a sua função essencial no corpo ciclópico da pátria que representa o coração geográfico do mundo; mas, em S. Paulo e em Minas Gerais se assentaram, por determinação do invisível, os elementos indispensáveis à organização da pátria esplêndida. Ambos serão ainda, por muito tempo, as conchas da balança política e econômica da nacionalidade e os dínamos mais poderosos da sua produção. Obedecendo aos elevados propósitos do mundo oculto, ambos ficaram irmanados junto do cérebro do país, por indefectíveis disposições do determinismo geográfico, que os reúne para sempre. Os Espíritos infelizes e perturbados, inimigos da obra de Jesus, que, entretanto, se converterão um dia ao supremo bem, pela sua infinita piedade, agem de preferência nos bastidores administrativos dos dois grandes Estados brasileiros, provocando a vaidade dos seus homens públicos, levantando tricas políticas e conduzindo-os, muitas vezes, a lutas fratricidas e tenebrosas, no sentido de atrasar os triunfes divinos do Evangelho, no coração de todas as almas.

Mas, os devotados obreiros do Além não descansam em sua faina de abnegação e renúncia e, ainda agora, em 1932, quando um distinto jornalista da atualidade rasgava a bandeira nacional na capital paulista, em seu famoso discurso sem palavras, José de Anchieta, de quem João de Boles é agora dedicado colaborador, e vários outros gênios espirituais da terra brasileira se reuniam no Colégio de Piratininga, implorando a Jesus derramasse o doce bálsamo da sua humildade sobre o orgulho ferido dos valorosos piratininganos, e Ismael estende o seu lábaro de perdão e de concórdia sobre os movimentos fratricidas e reúne de novo os irmãos dos dois grandes Estados centrais do país, para a realização da sua obra em prol do Evangelho.

As fraquezas e vaidades humanas, fermentadas por forças maléficas do mundo, têm separado muitas vezes as coletividades dos dois grandes Estados da República, levando-os à inimizade e quase à ruína; mas, muito breve, quando as sombras da confusão dos tempos modernos invadirem ameaçadoramente os céus da pátria, ambos compreenderão a imperiosa necessidade de se unirem para sempre, como irmãos muito amados e, novos símbolos de Castor e Pólux11, expandirão juntos as suas energias étnicas, modeladoras da terra do Evangelho, absorvendo nos seus surtos extraordinários as expressões excessivamente indiáticas do Amazonas, ao Norte, e as platinas influências nas planícies do Rio Grande, por cumprirem, de mãos dadas, os imperativos da sua grande missão histórica. Nesse tempo que não vem muito longe, as mensagens de fraternidade e de amor, expedidas pelos gênios inspiradores do Brasil, do sagrado Colégio de Piratininga, tocarão, primeiramente, na coroa de tênues neblinas das montanhas, antes de ascenderem aos céus.

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OS NEGROS DO BRASIL

Sob o domínio espanhol, Portugal sofria todas as consequências da sua desídia e imprevidência. A Espanha guardava o cetro de um império resplandecente e maravilhoso. Suas frotas poderosas cobriam as águas de todos os mares, carregando os tesouros do México e do Peru, do Brasil e das índias, os quais faziam afluir para Madrid a mais elevada porcentagem de ouro do mundo inteiro.

Até hoje, comenta-se com espírito a célebre frase de Francisco I, exprimindo o seu desejo de conhecer a disposição testamentária de Adão, que dividira o mundo entre espanhóis e portugueses e o deserdara.

A esse tempo, a terra do Evangelho não é mais conhecida pelo nome suave de Santa Cruz. À força das expressões comuns, dos negociantes que vinham buscar as suas fartas provisões de pau-brasil, seu nome se prende agora ao privilégio das suas madeiras. Os missionários da colônia protestaram contra a inovação adotada; mas, as falanges do infinito sancionaram a novidade imposta pelo espírito geral, considerando as terríveis crueldades cometidas na Baía de Guanabara, em nome do mais caricioso dos símbolos. A sanção de Ismael à escolha da nova expressão objetivava resguardar a pátria do Cruzeiro dos perigos da Inquisição, que na Europa fomentava os mais hediondos movimentos em nome do Senhor.

A situação, no Brasil, sob todos os pontos de vista, como a da metrópole portuguesa, era dolorosa e cruel, embora governado por funcionário de Lisboa, segundo as combinações estipuladas na Península. A raça aborígine e a raça negra sofriam toda sorte de humilhações e vexames. Os índios procuravam o Norte, em busca dos seus amigos franceses, que, expulsos do Rio por Mem de Sá, concentravam suas atividades no Maranhão, onde pretendiam fundar a França Equinocial, preocupando seriamente as autoridades da colônia. A situação geral era a mais deplorável. Ismael e seus abnegados colaboradores sofrem intensamente em seus trabalhos árduos e quase improfícuos, no sentido de organizar o Instituto sagrado da família nas florestas inóspitas, onde os brancos não dispensavam consideração às leis humanas ou divinas, na condição de superioridade que se atribuíam.

Aos céus ascendem os aflitivos apelos dos obreiros invisíveis:

— Senhor! — Exclama Ismael nas suas preocupações — Estendei até nós o manto da vossa infinita misericórdia. Enviai-nos o socorro das vossas bênçãos divinas, para que as nossas vozes sejam ouvidas pelos Espíritos que aqui procuram edificar uma pátria nova. Nosso coração se comove ante os quadros deploráveis que se deparam às nossas vistas. Por toda parte, veem-se os infortúnios das raças flageladas e sofredoras.

Uma voz suave e meiga lhe responde do Infinito:

— Ismael, nas tuas obrigações e trabalhos, considera que a dor é a eterna lapidaria de todos os Espíritos e que o Nosso Pai não concede aos filhos fardo superior às suas forças, nas lutas evolutivas. Abriga aí, na sagrada extensão dos territórios do país do Evangelho, todos os infortunados e todos os infelizes. No meu coração ecoam as súplicas dolorosas de todos os seres sofredores, que se agrupam nas regiões inferiores dos espaços próximos da Terra. Agasalha-os no solo bendito que recebe as irradiações do símbolo estrelado, alimentando-os com o pão substancioso dos sofrimentos depuradores e das lágrimas que lavam todas as manchas da alma. Leva a essas coletividades espirituais, sinceramente arrependidas do seu passado obscuro e delituoso, a tua bandeira de paz e de esperança; ensina-lhes a ler os preceitos da minha doutrina, nos códigos dourados do sofrimento.

Ismael sente que luzes compassivas e misericordiosas lhe visitam o coração e parte com os seus companheiros, em busca dos planos da erraticidade mais próximos da Terra. Aí se encontram antigos batalhadores das cruzadas, senhores feudais da Idade Média, padres e inquisidores, Espíritos rebeldes e revoltados, perdidos nos caminhos cheios da treva das suas consciências polutas. O emissário do Senhor desdobra nessas grutas do sofrimento a sua bandeira de luz, como uma estrela d'alva, assinalando o fim de profunda noite.

— Irmãos — exorta ele comovido —, até ao coração do Divino Mestre chegaram os vossos apelos de socorro espiritual. Da sua esfera de brandos arrebóis cristalinos, ordena a sua misericórdia que as vossas lágrimas sejam enxugadas para sempre. Um ensejo novo de trabalho se apresenta para a redenção das vossas almas, desviadas nos desfiladeiros do remorso e do crime. Há uma terra nova, onde Jesus implantará o seu Evangelho de caridade, de perdão e de amor indefiníveis. Nos séculos futuros, essa pátria generosa será a terra da promissão para todos os infelizes. Dos seus celeiros inesgotáveis sairá o pão de luz para todas as almas; mas, preciso se faz nos voltemos para o seu solo virgem e exuberante a construir-lhe as bases com os nossos sacrifícios e devotamentos. Ali encontrareis, nos carreiros aspérrimos da dor que depura e santifica, a porta estreita para o céu de que nos fala Jesus nas suas lições divinas. Aprendereis, no livro dos padecimentos salvadores, a gravar na consciência os sagrados parágrafos da virtude e do amor, na epopeia de luz da solidariedade, na expiação e no sofrimento. Sabei que todas as aquisições da filosofia e da ciência terrestres são flores sem perfume, ou luzes sem calor e sem vida, quando não se tocam das claridades do sentimento. Aqueles de vós que desejarem o supremo caminho venham para a nossa oficina de amor, de humildade e redenção.

E aí, nas estradas escuras e tristes da angústia espiritual, viu-se, então, que falanges imensas, ansiosas e extasiadas, avançavam com fervorosa coragem para as clareiras abertas naquela mansão de dor e de sombras. Todos queriam, no seu testemunho de agradecimento, beijar a bandeira sacrossanta do mensageiro divino.

O seu emblema — Deus, Cristo e Caridade — refulgia agora nas penumbras, iluminando todas as coisas e clarificando todos os caminhos. As esperanças reunidas, daqueles seres infortunados e sofredores, faziam a vibração de luz que então aclarava todas as sendas e abria todos os entendimentos para a compreensão das finalidades, das determinações sublimes do Alto.

Essas entidades evolvidas pela ciência, mas pobres de humildade e de amor, ouviram os apelos de Ismael e vieram construir as bases da terra do Cruzeiro. Foram elas que abriram os caminhos da terra virgem, sustentando nos ombros feridos o peso de todos os trabalhos. Nesse filão de claridades interiores, buscaram as pérolas da humildade e do sentimento com que se apresentaram mais tarde a Jesus, no dia, que lhes raiou, de redenção e de glória.

Foi por isso que os negros do Brasil se incorporaram à raça nova, constituindo um dos baluartes da nacionalidade, em todos os tempos. Com as suas abnegações santificantes e os seus prantos abençoados, fizeram brotar as alvoradas do trabalho, depois das noites primitivas. Na Pátria do Evangelho têm eles sido estadistas, médicos, artistas, poetas e escritores, representando as personalidades mais eminentes. Em nenhuma outra parte do planeta alcançaram, ainda, a elevada e justa posição que lhes compete junto das outras raças do orbe, como acontece no Brasil, onde vivem nos ambientes da mais pura fraternidade. É que o Senhor lhes assinalou o papel na formação da terra do Evangelho e foi por esse motivo que eles deram, desde o princípio de sua localização no país, os mais extraordinários exemplos de sacrifício à raça branca. Todos os grandes sentimentos que nobilitam as almas humanas eles os demonstraram e foi ainda o coração deles, dedicado ao ideal da solidariedade humana, que ensinou aos europeus a lição do trabalho e da obediência, na comuna fraterna dos Palmares, onde não havia nem ricos nem pobres e onde resistiram com o seu esforço e a sua perseverança, por mais de setenta anos, escrevendo, com a morte pela liberdade, o mais belo poema dos seus martírios nas terras americanas.

Por toda parte, no país, há um ensinamento caricioso do seu resignado heroísmo, e foi por essa razão que a terra brasileira soube reconhecer-lhes as abnegações santificadas, incorporando-os definitivamente à grande família, de cuja direção muitas vezes participam, sem jamais se esquecer o Brasil de que os seus maiores filhos se criaram para a grandeza da pátria, no generoso seio africano.

A INVASÃO HOLANDESA

Se à raça negra eram impostas as mais dolorosas torturas, nos primórdios da organização do Brasil, não menores sacrifícios se exigiam dos indígenas, acostumados à amplitude da terra, propriedade deles. As “entradas” pelo sertão, com o fito de escravizar os selvagens indefesos, se realizavam, naquele tempo, em todos os recantos. Tabas prósperas eram incendiadas de surpresa, no silêncio da noite. São famosas e comovedoras as descrições que desses fatos guardam os documentos antigos. Somente de uma vez, uma caravana de portugueses capturou mais de sete mil homens válidos, mulheres, velhos e crianças. E quando os mamelucos guiadores não convenciam os naturais de que deviam acompanhá-los às cidades mais próximas, para que as caçadas humanas se verificassem com pleno êxito, as cenas de selvajaria nodoavam a floresta virgem, enchendo de pavor os caminhos atapetados de cadáveres e de sangue coagulado. Como represália a tantas crueldades, os Tamoios nunca se harmonizaram com os portugueses. Desde o princípio da ação destes, foram seus declarados inimigos.

No seio dessas lutas devastadoras, em que venciam, a maior parte das vezes, as criminosas astúcias dos colonos, eram os padres piedosos os que mais sofriam, experimentando a angústia de se verem desprezados pelos seus próprios companheiros da raça branca, nos sertões ínvios e hostis. A alma simples dos naturais se mostrava maleável aos seus ensinamentos. Aos seus apelos, aproximavam-se dos núcleos de civilização. Aldeavam-se para uma vida ordeira que os colonizadores destruíam com as suas taras infames e seculares. Anchieta e quase todos os outros missionários das selvas brasileiras sustentaram demoradas lutas, defendendo os indígenas fraternos. A verdade, porém, é que, embora esfacelassem os púlpitos na pregação da piedade cristã, suas vozes se perdiam na imensidade do céu, sem que seus irmãos da terra as escutassem com a ideia generosa de lhes praticar os carinhosos ensinos. Os primeiros brancos que aportaram à América do Sul, na sua generalidade, não tinham em conta a existência da lei nas extensas florestas do Novo Mundo.

Os portugueses prosseguiam, incessantemente, na faina ingrata de “descer os índios”.

Regressando ao Além, os primeiros missionários da caravana luminosa de Ismael pedem a sua colaboração misericordiosa, para que semelhante situação se modifique. Mas, o grande apóstolo de Jesus explica:

— Irmãos, não podemos tolher a liberdade dos nossos semelhantes. Não sou indiferente a esses movimentos hediondos, nos quais os índios, simples e bons, são capturados para os duros trabalhos do cativeiro. Esperemos no Senhor, cujo coração misericordioso e augusto agasalhará todos aqueles que se encontram famintos de justiça. Contudo, poderemos, com os nossos esforços, auxiliar os encarnados na compreensão das leis fraternas, avisando-lhes o coração de modo indireto, quanto aos seus divinos deveres. Infelizmente, não encontramos, na atualidade do planeta, outro povo que substitua os portugueses na grande obra de edificação da Pátria do Evangelho. Todas as demais nações, como o próprio Portugal, se encontram presas da cobiça, da inveja e da ambição. Os vícios de todas as identificam perfeitamente umas com as outras, e no povo lusitano temos de considerar a austera honradez aliada a grandes qualidades de valor e de sentimento, que o habilitam, conforme a vontade do Senhor, a povoar os vastos latifúndios que constituirão mais tarde o pouso abençoado da lição de Jesus. Colonizadores desalmados estão em todos os países dos tempos modernos, que não reconhecem outro direito a não ser o da força desumana e impiedosa. Recorrendo, pois, às possibilidades ao nosso alcance, buscaremos, na Europa, um príncipe liberal, trabalhador e justo, que não esteja subordinado à política romana, a fim de caracterizar a nossa ação indireta. Traremos a sua personalidade de administrador para a parte mais flagelada da nova pátria, a fim de que seus exemplos possam servir aos que se encontram na direção das atividades sociais e políticas da colônia e beneficiem, e de maneira geral, a nação inteira. Ele virá na qualidade de invasor, porquanto não encontramos outros recursos para a adoção de providências dessa natureza; mas, a sua permanência no Brasil será curta e eventual, apenas durante os anos necessários a que suas lições sejam prodigalizadas aos administradores da nova terra. Preliminarmente, porém, devemos considerar que os seus companheiros não serão melhores que os portugueses, no sentido da educação espiritual. A época é de profundo atraso de quase todos os indivíduos e é para expelir essas trevas da consciência do mundo que nos teremos de sacrificar nas atmosferas próximas da Terra, trabalhando pela vitória do Senhor em todos os corações.

Os fatos se verificaram, consoante as afirmações do iluminado preposto de Jesus.

Em 1624, a pretexto de sua guerra com a Espanha, os holandeses tomavam de assalto a Bahia, sob o comando de Johan Van Dorth. Importa notar que as cenas dolorosas e lastimáveis, decorrentes da invasão, não foram organizadas pelas abnegadas falanges do mundo invisível. As causas profundas desses fatos residiam no estado evolutivo da época. Os morticínios nas praças incendiadas e destruídas se verificavam, todos os dias, entre inevitáveis atritos das raças chamadas a povoar aqueles recantos desconhecidos.

Em 1637, entrava em Pernambuco o general holandês João Maurício, Príncipe de Nassau. Inumeráveis benefícios e imensos frutos produziu a sua administração no Norte do Brasil, que foi sempre a zona mais sacrificada do país.

O Recife se ostenta diante da Europa, como uma das mais belas cidades da América do Sul. Olinda é reedificada. Uma assembleia de mecânicos, de pintores, de arquitetos e artistas acompanha o Príncipe de Nassau, enchendo a sua cidade de singulares esplendores. Mas, o espírito construtivo do administrador holandês não se cristaliza nas expressões materiais da sua cidade predileta. O amor e o respeito que vota à liberdade fazem-no venerado de todos os brasileiros e portugueses de Pernambuco, cujas terras, naquela época, desciam até a região do Paracatu, em Minas Gerais. Todos os escravos que procuram abrigo à sombra da sua bandeira de tolerância ele os declara livres para sempre, e os índios encontram, no seu coração, o apoio de um nobre e leal amigo. Maurício de Nassau estabelece a liberdade religiosa e administra Pernambuco, inaugurando aí a primeira liberal-democracia nas terras americanas, tais à justiça e a liberdade com que se houve em seu governo. Os Albuquerques e outros elementos em evidência no Norte muito aprenderam com ele para as suas atividades do porvir.

A realidade, todavia, é que a lição de Nassau fora preparada no plano invisível, para que os colonizadores da terra brasileira recebessem um novo clarão no seu caminho rotineiro e obscuro.

Em socorro da nossa afirmativa, podemos invocar o testemunho da própria história, porque, terminado o tempo necessário à sua administração no Brasil, o grande príncipe holandês regressava à pátria, por imposição dos Espíritos avarentos, que militavam, nessa época da Companhia das índias, na política holandesa, sem que encontrassem substituto para a sua obra na América. Apesar de suas frotas extraordinárias e poderosas, a Holanda retirou-se do Brasil sem a intervenção de Portugal, bastando, para isso, o concurso dos habitantes da colônia. Quando a questão ficou definitivamente resolvida na Corte de Haia, em 1661, os holandeses, embora a sua soberania marítima perdurasse até então, em troca dos seus imensos trabalhos no Norte do Brasil e dos milhões de florins aí abandonados, apenas receberam, a título de indenização, a importância de cinco milhões de cruzados.

A RESTAURAÇÃO DE PORTUGAL

No primeiro quartel do século XVII, a situação de Portugal era de profunda decadência. Sob o reinado de Filipe III, de Espanha, príncipe apático e doente, que entregara a direção de todos os negócios ao Duque de Lerma, os esplendores das conquistas portuguesas haviam desaparecido. Aquele povo minúsculo e heroico, cuja coragem acendera nova luz em todos os departamentos de trabalho do Ocidente, encontrava-se agora reduzido à quase penúria.

Foi por esse tempo que Henrique de Sagres, o antigo Helil, mensageiro de Jesus, que levantara as energias portuguesas com a sua escola de navegação, procurou o Senhor, tocado de compaixão e de angústia, a implorar a bênção da sua misericórdia para a nação de que se tornara o gênio renovador.

— Mestre — diz ele compungidamente —, venho pedir o vosso auxílio paternal para a terra portuguesa, cujas experiências amargas tocam, agora, ao auge das penosas provações coletivas. Humilhada e vencida, ela implora a vossa divina providência, através de minhas palavras, no sentido de lhe ser possível aproveitar as forças derradeiras, para uma reorganização política e econômica que a possa esquivar de tão angustiosa situação.

— Helil — replicou-lhe Jesus —, sabes que a minha piedade não se reveste de excessivas exigências. Enviei-te a Portugal com o fim de lhe reerguer as energias, compensando os seus grandes esforços de povo humilde e laborioso. Infelizmente, apesar de suas grandes qualidades de coração, os portugueses não souberam corresponder à nossa expectativa, provocando, eles próprios, a situação em que se encontram, pela fraqueza com que se entregaram à sinistra embriaguez da fortuna e da posse. Depois de teres ajudado Vasco da Gama a franquear o caminho marítimo das índias, as forças lusas, após receberem os favores da cidade de Calicut, ali regressam, algum tempo mais tarde, para bombardeá-la, inundando-a num mar de crueldade e sangue. No Brasil, onde lançamos os fundamentos da Pátria do Evangelho, introduziram o tráfico de homens livres, forçando as falanges de Ismael a despender todos os esforços possíveis para que as ordens divinas não se subvertessem pelas iniquidades humanas. Em Lisboa, permitiram a entrada do terrível instituto da Inquisição, que comete no mundo todos os crimes em meu nome, que deveria ser, para todas as criaturas, um sinônimo de brandura e de amor.

— É verdade, Senhor — exclama Helil amargurado —, quando o primeiro português aprisionou, nas Canárias, alguns pobres africanos, para vendê-los como escravos aos brancos da Europa, ordenei fossem imediatamente repatriados, enchendo-se-me o coração de amargura após tantos entusiasmos no período dos descobrimentos, quando eu vos confiava, no Restelo, as lágrimas do meu reconhecimento e da minha esperança. Mas, a grande pátria que me confiaste, Senhor, muito tem aprendido no caminho das experiências dolorosas. Nas suas cidades importantes escasseiam os espíritos de eleição, aptos à tarefa do governo; as nações ambiciosas se assenhoreiam de todas as suas possibilidades econômicas; suas riquezas são pilhadas pela pirataria do século; seu povo se acha esmagado pelos impostos; seus filhos abatidos e humilhados. Apiedai-vos, meu Jesus, de tanta miséria que nos enche o coração de infinita amargura! Permiti possamos restaurar-lhe as forças políticas, a fim de que ela cumpra as vossas determinações sábias e justas, na terra do Evangelho!

— Essas experiências dolorosas — explicou-lhe o Divino Mestre — dotarão Portugal de novos sentimentos, acrisolando nele as concepções de brandura e de fraternidade, a fim de que possa corresponder ao nosso esforço, na edificação da pátria dos meus ensinamentos. Quais os elementos encarnados que utilizarás nessa restauração?

— Senhor, com o vosso apoio e com o vosso amparo, esperamos realizar essa reorganização buscando para o trono os descendentes de D. Afonso, primeiro Duque de Bragança, que atualmente detêm a maior fortuna portuguesa e em cuja Casa vivem mais de oitenta mil vassalos. Quanto ao nosso plano, constará de uma larga ação dos agrupamentos espirituais sob a minha direção, combinados com as falanges de Ismael, no sentido de intensificarmos o pensamento cristão em Portugal, projetando as mais nobres realizações no Brasil, disseminando-nos entre os colonizadores, a fim de que as concepções de fraternidade se intensifiquem, cimentando as bases da pátria das vossas lições divinas. Nossos apelos se estenderão aos companheiros reencarnados, que se encontram nas cortes espanholas e nas selvas americanas, para levantarmos a bandeira de Ismael sobre todas as frontes, como sublime legado do vosso coração compassivo e misericordioso.

— Sim, Helil — retrucou Jesus, bondoso —, teu plano se realizará com aminha bênção, efetuando-se essa ação espiritual conforme a idealizas. Temos, no entanto, de considerar que os elementos a serem utilizados são os mais representativos, porém, não constituem os mais necessários. Não acho que a Casa de Bragança esteja preparada, espiritualmente, para a sublime realização; todavia, somos obrigados, igualmente, a reconhecer que pesadas trevas invadem atualmente todas as atividades políticas da Terra e tu te esforçarás por ampará-la nos grandes deveres que assumirá, neste e nos próximos séculos. Terás o cuidado de inspirá-la, no propósito de se organizarem as precisas combinações com as outras nacionalidades do mundo, para que a Pátria do Evangelho não sofra novos choques de raças, além dos até agora sofridos. Bem sabes que, enquanto os homens não se integrarem no conhecimento pleno da minha doutrina de amor e de fraternidade, os tratados comerciais serão os necessários jogos de interesses a equilibrarem as ambições, em proveito dos setores da verdadeira evolução espiritual. Auxiliarei os teus empreendimentos com a minha misericórdia, pedindo a Nosso Pai que se digne de guardar-nos sob o pálio da sua bondade infinita.

Henrique de Sagres organizou as suas falanges e, em 1640, Portugal era restaurado, subindo ao trono D. João IV, chamado dos seus regalos e prazeres de Vila Viçosa, para os cuidados do reino. Ao cabo de um período de lutas ferrenhas, a restauração se consolida na batalha de Montijo e a grande nação do Ocidente prossegue em seu labor abençoado por Jesus, na formação da Pátria do Cruzeiro.

Sob a orientação do mundo invisível, Portugal estabelece tratados comerciais, entre eles, alguns como o de Methuen, que mais tarde se verificou ser ruinoso para a indústria portuguesa, mas colocava o Brasil a salvo de lutas com o poderio da Inglaterra. Toda uma ação espiritual se conjuga, harmoniosamente, nessa época, e as falanges de Ismael e de Helil buscam, no silêncio e na obscuridade, o grande coração de Antônio Vieira, que se constituiu poderoso organismo mediúnico para as revelações de suas verdades.

Vieira toma posição ascendente na corte de D. João IV e, daí a algum tempo, contra a vontade do soberano, que desejava conservar a sua palavra de sabedoria e de amor junto do seu coração, o grande missionário embarca para o Brasil.

Sua voz, saturada de suave magnetismo, ilumina todas as consciências, esclarecendo todos os corações. Em momento de sagrada eloquência, exclama ele:

— No Evangelho de Jesus, ofereceu o demônio todos os seus reinos pela posse de uma alma; mas, no Maranhão, não é necessário ao demônio tanta bolsa, para comprá-las todas. Basta acenar o diabo com um tijupar de pindoba e dois tapuias para que seja adorado com ambos os joelhos.

E não foram poucos os senhores que, tocados dessas claridades divinas,

cuja origem profunda estava nas lições de Ismael e de seus abnegados mensageiros, correram às suas propriedades, envergonhados do crime de manter escravos os seus irmãos, e devolveram para sempre, aos pobres cativos, a liberdade.

AS BANDEIRAS

No desdobramento da ação espiritual que deveria restaurar a pátria portuguesa, Ismael congregou os Espíritos que chegavam aos espaços depois do primeiro contato com a vida de Piratininga, a fim de elaborar novos projetos de trabalho naquele setor da Pátria do Evangelho.

Almas decididas e heroicas, postas ali para a construção da grande obra, apesar dos seus característicos de bondade e de energia, necessitavam regressar à luta terrestre, em seu próprio benefício.

O mensageiro divino as reuniu em grandes círculos, de onde lhe ouviram a palavra amiga e esclarecedora.

— Meus irmãos — disse ele —, regressareis dentro de breves dias aos núcleos de trabalho estabelecidos no planalto piratiningano. Prosseguireis atuando no mesmo campo de labor e liberdade com que caracterizastes as primeiras iniciativas aí desenvolvidas. Agora, levareis mais longe a vossa coragem e o vosso heroísmo. Penetrareis o coração da terra do Cruzeiro, rasgando as sombras de suas florestas imensuráveis. Com a vossa dedicação, novas atividades serão descobertas e novas possibilidades hão de felicitar a existência dos colonizadores do país, onde nos desvelaremos pela conservação da bandeira de Jesus, desfraldada lá sobre todas as frontes e sobre todos os corações. Até hoje, têm-se multiplicado as tristes caçadas humanas em que os índios misérrimos são colhidos de surpresa, na sua simplicidade, para os penosos trabalhos do cativeiro; desvendareis, agora, as fontes de riqueza dos vastos latifúndios do Brasil, interessando a colonização e fazendo desabrochar com mais intensidade os núcleos valorosos desse movimento de intensificação dos órgãos de progresso da pátria e do seu povo. Muitos de vós conhecereis a penúria e o sofrimento; sacrificareis a fortuna e os afetos mais santos da família, para construirdes a base do porvir com as lágrimas abençoadas dos vossos martírios e das vossas renúncias exemplares. Vossa tarefa será rasgar as selvas remotas, patenteando o ouro depositado no seio da terra generosa.

Houve um interregno na sua alocução. Ali se encontravam as entidades que seriam, mais tarde, entre muitos outros, Antônio Rodrigues Arzão, Marcos de Azeredo, Bartolomeu Bueno e Fernão Dias Paes. Este último, quebrando o silêncio da grande assembleia, exclamou, provocando geral interesse:

— Anjo bom, que faremos com o ouro da terra, se no mundo ele é a causa sinistra de todas as lutas e o demônio de todas as ambições? Aqui, na vida espiritual, compreendemos semelhantes realidades; mas, no orbe das sombras, a nossa consciência mergulha nas mais aflitivas perturbações e bem sabeis que a água mais pura, misturando-se com a terra, se reduz quase sempre a um punhado de lama.

Ismael não se demorou para esclarecer:

— A Terra é a escola abençoada, onde aplicamos todos os elevados conhecimentos adquiridos no Infinito. É nesse vasto campo experimental que devemos aprender a ciência do bem e aliá-la à sua divina prática. Nos nevoeiros da carne, todas as trevas serão desfeitas pelos nossos próprios esforços individuais; dentro delas, o nosso espírito andará esquecido de seu passado obscuro, para que todas as nossas iniciativas se valorizem. Precisamos entender essas brandas disposições das leis divinas, para que o determinismo do amor e da fraternidade constitua a lei da existência de todas as coisas e de todos os seres. Quanto ao ouro escondido no seio da terra exuberante, sua existência não significa senão um estímulo à ilusão dos homens, ainda muito distantes da concepção da verdadeira fraternidade, a fim de que as criaturas possam buscar os tesouros espirituais pelo trabalho fecundante da evolução do mundo. Procurando a grandeza ilusória do ouro, edificareis as cidades novas, fomentareis a pecuária e a agricultura, desbravando caminhos inóspitos em favor de outras almas. Um mundo novo se erguerá sobre os vossos ombros dilacerados nas disciplinas austeras, ao sol causticaste das caminhadas penosas; mas, o futuro se voltará para os vossos esforços, com as suas bênçãos de agradecimento.

Dirigindo-se mais particularmente a Fernão Dias, Ismael sentenciou:

— Serás o chefe da expedição mais difícil de todas; porém, da tua coragem há de surgir um caminho novo para todos os Espíritos. Muitas vezes serás compelido a exercer a mais rigorosa justiça, despendendo todas as tuas reservas de energia; mas, é preciso não esqueças a misericórdia divina, sem exorbitar das funções que te forem confiadas, entregando a Jesus os teus trabalhos de cada dia.

O grande bandeirante recebeu submisso a determinação do divino emissário. Daí a alguns anos, nos dois últimos quartéis do século XVII, as bandeiras paulistas se espalharam por todas as regiões da terra virgem. Através das selvas bravias, marcham, como se o fizessem ao longo de largos e desconhecidos oceanos.

As noites estreladas lhes servem de orientação e de bússola. A cruz do Cristo vai, como um símbolo, à frente de todos os expedicionários das novas tentativas de conquista. De Sorocaba, sobem por Goiás até ao Amazonas longínquo; e de Taubaté demandam a Paraíba do Norte. Em 1672, Fernão Dias Paes organiza, com todos os elementos de sua fortuna, a mais célebre das expedições saídas de São Paulo.

Caçando as esmeraldas, que constituíam objeto das lendas de muitos aventureiros, visita todas as regiões auríferas de Minas Gerais. Rebeliões e discórdias são dominadas pela sua energia constante e severa. Para fortalecer a disciplina, o bandeirante audacioso manda enforcar o próprio filho, que participara da rebeldia geral, como escarmento aos companheiros, próximo à povoação do Sumidouro. As joias da mulher e das filhas são empregadas no seu arrojado empreendimento, arruinando-se a família inteira. Fernão Dias, porém, segue um roteiro luminoso. Por onde passa com as suas caravanas, florescem povoações asseadas e alegres. Seus pontos de contato com a terra paulista são os arraiais prósperos e fartos, que vai edificando nos caminhos desertos. As esmeraldas do seu sonho nunca foram encontradas e as pedras verdes que entregou ao genro no instante da agonia, como única expressão da sua fortuna, representavam, de certo, o símbolo suave das esperanças do seu labor e das suas lágrimas na terra do Evangelho. Próximo do local onde mandara enforcar o filho, nas margens do Rio das Velhas, o seu espírito de lutador se desprendeu igualmente do corpo exausto, e quando, no íntimo do seu coração, implorava a misericórdia do Altíssimo para o delito, com que exorbitara de suas funções na Terra, a voz de Ismael falou-lhe do Infinito:

— Irmão, as quedas, com as suas experiências sombrias, constituirão os degraus do teu caminho para as mais gloriosas ascensões espirituais. Atrás dos teus passos florescem cidades valorosas no coração das matas virgens, e os que recebem os teus benefícios abençoam o teu esforço e a tua energia perseverante. A essas mesmas paragens, onde turvaste a consciência por um instante, levado pelos rigores da disciplina, voltarás com teu filho, sob as asas cariciosas da fraternidade e do amor, a fim de reparares o passado cheio de tribulações e lutas incontáveis, porque, no coração misericordioso de Deus, repousam, eternamente, as luminosas esmeraldas da esperança e do amor, que procuraste a vida inteira.

Fernão Dias Paes abre os olhos materiais, pela última vez. Uma lágrima pesada e branca lhe corre pelas faces emagrecidas; mas, sobre o seu coração paira a bênção cariciosa da terra dourada das minas, e, sentindo-se na posse das verdadeiras esmeraldas do seu grande sonho, o ínclito batalhador regressa de novo à vida do Infinito.

OS MOVIMENTOS NATIVISTAS

A procura do ouro constituía a ansiedade incentivadora de todos os espíritos. Entretanto, desde o princípio do século, o governo espanhol havia providenciado quanto à organização do Código Mineiro para o Brasil e, desde 1608 a 1617, quando a direção da colônia se achava repartida entre as cidades de Salvador e do Rio de Janeiro, já D. Francisco de Sousa guardava o título pomposo de Governador e Intendente das Minas.

Contudo, somente mais tarde as bandeiras audaciosas, iniciadas com a coragem paulista, rasgaram os véus espessos do cipoal da mata virgem, descobrindo os vastos lençóis de uma infinita riqueza. Muitos lustros decorreram sem que nada mais se observasse, senão os movimentos espantosos das correntes migratórias através dos sertões, procurando o ouro da terra desconhecida e encontrando, muitas vezes, nos seus caminhos a aflição, a angústia e a morte. O próprio Conselho Ultramarino, em Lisboa, expunha mais tarde à autoridade da Coroa a necessidade de se reprimirem os excessos dessas migrações incessantes, para que o próprio reino não se despovoasse.

Por essa época, multiplicavam-se as emboscadas e a sede da posse turvava todas as consciências. Cidades futurosas se levantavam ao longo das estradas desertas e ermas; mas, seus alicerces, a maior parte das vezes, se constituíam com o sangue e com a morte. Em toda a colônia, pairam ameaças de confusão e desordem.

A lenda dos tesouros fabulosos, guardados no coração das selvas imensas, incendiava todos os ânimos e enfraquecia o ascendente da lei em todos os Espíritos.

Os índios experimentam, amarguradamente, a atuação dessas forças contrárias à sua paz, que se concentravam à procura das riquezas da terra, e é com inauditos esforços de perseverança e de paciência que os caridosos jesuítas juntam suas aldeias ao Norte, com doçura fraterna, conquistando todo o Amazonas para a comunidade dos portugueses.

A esse tempo, no extremo norte convulsiona-se o Maranhão, sob os ímpetos revolucionários de Manuel Beckman, contra a Companhia de Comércio que monopolizara os negócios da importação e exportação da capitania, e contra os jesuítas, cujo espírito de fraternidade se interpunha entre os colonizadores e os índios, no sentido de se manterem estes últimos dentro da liberdade que lhes competia. Os amotinados prendem todos os elementos do governo e, organizando uma junta com elementos do clero, da nobreza e do povo, consideram extinto o monopólio e providenciam o imediato banimento dos protetores dos indígenas.

Festas extraordinárias assinalam, no Maranhão, semelhantes feitos, inclusive Te-Déum na Catedral de São Luís. A notícia de tão singulares quão inesperados episódios provoca as apreensões da corte de Lisboa, que não desconhece as pretensões da França no tocante ao vale do Amazonas, nem ignora o ascendente moral dos franceses sobre os elementos indígenas. A expedição que deverá restaurar a lei na capitania não se faz esperar e a Gomes Freire de Andrada, estadista notável pelo seu talento militar e político, cabe a direção do movimento restaurador. As providências da contrarrevolução no extremo norte são adotadas sem dificuldade.

Gomes Freire procede com magnanimidade para com os revoltosos, sem, contudo, poder agir com a mesma liberalidade para com Manuel Beckman, que foi preso e sentenciado à morte. Sua fortuna teve-a ele confiscada, mas o grande oficial que comandara a expedição, dentro das tradições da generosidade portuguesa, arrematou todos os bens do infeliz, em hasta pública, e os doou à viúva e aos órfãos do revolucionário.

Em 1683, a Bahia se conflagra, depois de assassinar o alcaide-mor da colônia, Francisco Teles de Menezes, que excitara as antipatias dos habitantes do Salvador. E os derradeiros anos do século XVII testemunham as atividades da colônia, nesse período de transição dos movimentos nativistas. A sede do ouro penetra o século seguinte, que, mais intensamente, ia acender a febre da ambição em todas as cidades. Em 1710, as lutas se fixam na capitania de Pernambuco, que fazia questão de cultivar o sentimento de sua autonomia, desde os tempos da ocupação holandesa, com a qual fizera novas aquisições no que se referia aos patrimônios de sua independência. Os brasileiros de Olinda abrem luta com os portugueses de Recife, em razão das rivalidades entre as duas grandes cidades pernambucanas, que não se toleravam politicamente. As emboscadas ocasionam ali dolorosas cenas de sangue. Um ano inteiro de choques e sobressaltos assinala o período da guerra dos mascates. Antes, porém, desses movimentos revolucionários em Pernambuco, os paulistas e os emboabas lutavam na região aurífera dos sertões de Minas Gerais, disputando-se a posse do ouro, que abrasava a imaginação do país inteiro. A felonia e a traição constituem o código dessas criaturas insuladas nas matas desconhecidas e inóspitas.

Pela mesma época, a França, que sempre custou a resignar-se com a influência portuguesa no Brasil, envia Du Clerc para investir o porto do Rio de Janeiro com mil homens de combate. A metrópole portuguesa não podia proteger, de pronto, a cidade, e o Governador Francisco de Castro Morais, deixando-se dominar pela timidez, permitiu o desembarque das forças francesas, que, todavia, foram rechaçadas pela população carioca. Estudantes e populares lutaram contra o invasor.

Algumas dezenas de franceses foram barbaramente trucidados. Fizeram-se ali mais de quinhentos prisioneiros e o Capitão Du Clerc acabou assassinado em trágicas circunstâncias. O governo do Rio não providenciou quanto ao processo dos criminosos, a fim de punir os culpados e definir as responsabilidades pessoais, provocando com isso a reação dos franceses, que voltaram a assediar a maior cidade brasileira.

DuguayTrouin vem à Baía de Guanabara acompanhado de cerca de cinco mil combatentes. O governador foge com quase todos os elementos da população, deixando o Rio à mercê do corsário que se ilustrara sob a proteção de Luís XIV. Depois do saque, que absorve muitos milhões de cruzados da fortuna particular, paga ainda a cidade fabuloso resgate.

Enquanto se desenrolavam os últimos acontecimentos, governava em Portugal D. João V, o Magnânimo, em cujo reinado ia o Brasil espalhar pela Europa os seus fabulosos tesouros. Nunca houve, ali, um soberano que mostrasse tamanho descaso pelas possibilidades econômicas do povo. O ouro e os diamantes do Brasil iam acender no seu trono as estrelas efêmeras do seu fastígio e da sua glória. A fortuna amontoada pela ambição e pela cobiça ia ser espalhada pelas mãos insensatas do rei, imprevidente e incapaz da autoridade de um trono. Dentro do luxo assombroso da sua corte, o Convento de Mafra se ergue ao preço de cento e vinte milhões de cruzados. Mais de duzentos milhões seguiriam para as arcas do Vaticano, dados pelo monarca egoísta, que desejava forçar as portas do céu com o ouro iníquo da terra. Em vez de auxiliar a evolução da indústria e da agricultura de sua terra, D. João V levanta igrejas e mosteiros, com extrema prodigalidade, e, enquanto todas as cortes da Europa felicitavam o rei perdulário pelo descobrimento dos diamantes na sua afortunada colônia e se celebram Te-Deuns em Lisboa, em homenagem ao auspicioso acontecimento, pelo Brasil todo se alastravam movimentos nativistas, exaltando os sentimentos generosos da liberdade e preparando, assim, sob a inspiração de Ismael e de suas falanges devotadas, o futuro glorioso dos seus filhos.

NO TEMPO DOS VICE-REIS

A ação espiritual das falanges de Ismael, reunidas ao esforço dos elevados Espíritos que reconstruíam as energias portuguesas, intensifica-se cada vez mais no coração das duas pátrias irmãs.

Pelo tratado de Methuen, assinado em 1703, a Inglaterra, cujo poderio marítimo se consolidava depois dos grandes feitos das armadas de Portugal, da Espanha e da Holanda, passaria a amontoar o ouro do Brasil, como principal fornecedora do primeiro e de suas colônias. No capítulo financeiro, o Brasil era, de fato, uma das suas fontes de riqueza, pois que todas as suas reservas se escoavam para o tesouro inglês. Uma sábia disposição do mundo invisível regulamentara a questão dessa forma, adotando essas providências para que a Pátria do Evangelho fosse colocada a cavaleiro de novos choques de ambição, nos seus territórios. A combinação de Methuen era ruinosa para a indústria portuguesa; mas, nos grandes jogos dos interesses internacionais, semelhantes acordos se faziam necessários. A Inglaterra ficaria com o ouro tangível, enquanto Portugal guardaria o ouro imperecível dos corações, dilatando a sua fé e as suas fronteiras, eternizando o patrimônio das suas tradições e das suas esperanças, no tempo e no espaço.

Nessa época, o Rio de Janeiro já eclipsava todas as cidades do Brasil. Aí, ao lado das águas claras e puras do rio da Carioca, onde os Tamoios encontravam sagradas virtudes para a beleza de suas mulheres e para a voz dos seus cantores, já se erguia o casario imenso, a descer do cume dos morros para o lençol arenoso das praias. Aí, sob o céu azul que cobre a paisagem tranquila, os governadores podem fazer, com serenidade imperturbável, seus longos expedientes para a metrópole e os padres podem rezar beatificamente, nos seus breviários, entre as paredes coloniais do Convento de Santo Antônio.

A sociedade tratava de aprender as regras de bem viver, de civilidade, nos livros encomendados especialmente do reino. Ao entardecer, não se cuidava de outra coisa que não fosse a iluminação dos oratórios das esquinas, únicos pontos onde, às vezes, se concentravam alguns transeuntes retardatários, que afrontavam sem receio os capoeiras ocultos no silêncio das ruas ermas. De qualquer modo, porém, às oito horas da noite não se encontrava mais ninguém pelas vielas escuras, com exceção dos dias de grande gala, em que o governador comparecia pessoalmente às festas populares, tendo todos o cuidado de ir a esses folguedos de rua com os elementos precisos para a iluminação do caminho, no regresso a casa.

O Rio de então, como as demais cidades não só do Brasil, mas também de Portugal, não primava pela higiene e pela limpeza. Os igarapés que conheci, ainda em princípios deste século, em algumas pequenas cidades do Norte brasileiro, onde se viam, em pleno dia, homens e crianças acertando contas com a natureza, se localizavam então nos recantos mais afastados das ruas, em grandes valas dentro das quais os pobres escravos depositavam, todas as tardes, o conteúdo malcheiroso dos largos potes de barro, carregados à cabeça.

Alguns forasteiros ilustres, que nos visitaram naquela época, arquivaram tristes impressões do Brasil dos vice-reis, cheio dos mais espantosos quadros de imundície. Todavia, um dos espetáculos mais dolorosos e comovedores ofereciam-no os mercados de escravos, como o do Valongo, onde os miseráveis se amontoavam aos magotes, esperando o comprador que lhes examinava os pulsos e os dentes, selecionando os mais fortes para os duros trabalhos das fazendas. Ali, encontravam-se representantes dos negros de Guiné, de Cabinda e de Benguela, que eram separados dos pais e das mães, dos irmãos e dos filhos, nos sucessivos martirológicos da raça negra, na qual os próprios padres de Portugal não viam irmãos em humanidade, mas os amaldiçoados descendentes de Cam.

Até há pouco tempo, podia-se ver na Luanda a cadeira de pedra do bispo, de onde um prelado português abençoava os navios negreiros, prontos para se fazerem ao mar largo, com a pesada carga de desgraçados cativos. A bênção religiosa visava conservá-los vivos até aos portos do destino, a fim de que os mais fartos lucros compensassem o trabalho dos hediondos mercadores. Estes últimos, no entanto, além da bênção, adotavam outras precauções, amontoando os desditosos africanos nos porões infectos, onde viajavam como animais ferozes, trancafiados na prisão, para que não vissem, pela última vez, os horizontes do berço ingrato em que haviam nascido, vacinando-se contra as dores supremas da desesperação, que os arrastaria para os abismos do oceano.

Ismael, com as suas hostes do mundo invisível, consegue harmonizar lentamente os interesses espirituais de quantos se haviam estabelecido na Pátria do Cruzeiro. Sob a sua inspiração, a igreja torna-se a protetora necessária da mentalidade infantil daquela época. Os templos da colônia abrem as portas para todos os infelizes e para todos os tristes. Os reineis organizam festanças periódicas, missas e procissões da fé, bem como folganças profanas, quais as da “Serração da Velha”.

Sob as vistas condescendentes da igreja, os mensageiros do espaço se fazem sentir mais fortemente junto dos senhores, amenizando a situação amargurada dos míseros cativos. Sob as suas influências indiretas, organizam-se correntes de filantropia, do mais elevado alcance. Costumes fraternos surgem espontaneamente no seio da população de todas as cidades brasileiras. O hábito de apadrinhar os negros faltosos, ou fugitivos, nunca é desrespeitado pelo senhor. Reconhece-se o direito de propriedade aos escravos, e o costume de ceder um dia ou dois aos trabalhos dos cativos é confirmado por lei, em 1700. Alastra-se o precioso movimento das alforrias na pia batismal, onde, com um óbolo insignificante, são declarados livres os filhos dos escravos. As associações dos negros nas grandes cidades do país, para realização das suas festas de saudade das paisagens africanas, são numerosas, com permissão de todas as autoridades. Os festejos originais do Rei do Congo se levam a efeito com brilho, a expensas dos senhores.

A igreja, no Brasil, abre o seu culto a São Benedito e a Nossa Senhora do Rosário, tornando-se um refúgio de doce consolação para os pobres africanos. As ordens religiosas possuíam os seus pretos, que eram bem tratados e jamais poderiam ser vendidos. Nas fazendas, agrupavam-se eles em famílias, que, as mais das vezes, eram plenamente alforriadas em testamento dos proprietários. Todos os hábitos em voga, na época, dão testemunho da liberdade brasileira, porquanto, em nosso país, nunca a emancipação foi impedida por lei, como em outras nações. A filantropia dos brasileiros cedo começou o movimento abolicionista, e a prova da profunda assistência espiritual que acompanhava essas ações na Pátria do Evangelho é que nunca teve o Brasil um código negro, à maneira da França e da Inglaterra. E a verdade espiritual, que paira acima das considerações de todos os historiadores, é que Ismael preparou aqui a oficina da fraternidade, onde os negros incompreendidos vinham erguer a pátria da sua descendência. Se sofreram nas mãos de alguns escravocratas impiedosos, seus prantos e sacrifícios iam florescer ao tênue rocio das bênçãos do céu, na terra do Evangelho, clarificando-lhes, mais tarde, os caminhos, quando seus corações resignados e sofredores se dilatassem, na alma fraterna dos filhos e dos netos.

POMBAL E OS JESUÍTAS

Após o reinado de esbanjamento de D. João V, sobe ao trono de Portugal D. José I, como o quinto rei da dinastia bragantina. O soberano escolhe para seu primeiro ministro a Sebastião José de Carvalho e Melo, depois Conde de Oeiras e, mais tarde, Marquês de Pombal. As falanges espirituais, desvelando-se pela evolução portuguesa, haviam escolhido previamente esse homem, para a reconstrução das energias da pátria, após os desvarios de D. João V, o monarca esbanjador e arbitrário, que nunca reuniu as cortes para uma consulta, necessária aos interesses do povo.

O escolhido, porém, não soube corresponder integralmente às sagradas expectativas dos gênios espirituais da terra portuguesa. Se construiu, cometeu graves injustiças com a sua ditadura renovadora. Pombal ascendera à posição de ministro depois de absorver as ideias novas que percorriam os setores de todas as atividades do Velho Mundo, ao sopro dos enciclopedistas. O campo diplomático já lhe dera a conhecer a técnica política de um Roberto Walpole e, enquanto a sua pátria se algemava aos tribunais da Inquisição, com sérios prejuízos para a educação nacional, o cérebro se lhe povoava de planos audazes e reformadores.

Elevando-se ao trono em 1750, D. José I escolhe-o, imediatamente, para chefe supremo do seu governo e, quando em 1755 foi Lisboa parcialmente destruída por um terremoto, o ministro renovador teve oportunidade de demonstrar a sua capacidade criadora, reedificando a cidade, que renasceu dos seus esforços mais engrandecida e mais bela. O Marquês de Pombal, todavia, desde os primórdios de sua ação no governo, não tolerava os jesuítas que, nas cortes europeias, se intrometiam em todos os negócios da política do século, com a pretensão de imunizar o mundo inteiro das correntes de pensamento da Reforma. Os missionários humildes da célebre Companhia, radicados no Brasil, diga-se em honra da verdade, estavam muito longe das criminosas disputas em que se empenhavam seus irmãos no outro lado do Atlântico; mas, sofreram com eles a incessante perseguição, tão logo se apossou do governo o famoso ministro.

Surge, afinal, o atentado contra a vida de Dom José I, em 1758. No dia 3 de setembro desse ano, quando regressava de uma entrevista ao Palácio da Ajuda, o soberano foi alvejado a tiros de bacamarte, partidos de um grupo de pessoas desconhecidas. As suspeitas recaíram no Marquês de Távora e seus filhos, no Conde de Atouguia e no Duque de Aveiro. Conquanto fosse este último um dos implicados no movimento regicida, o mesmo não acontecia aos Távoras, inocentes daquele delito. Instaurou-se um processo que terminou, apesar de todas as suas clamorosas irregularidades, com a sentença de morte para todos os implicados. Em vão, procuram os portugueses influentes na corte modificar a decisão do ministro. Os condenados sofrem os mais horrorosos suplícios em Belém e a própria D. Leonor Tomásia, Marquesa de Távora, foi decapitada.

Pombal aproveita o ensejo que se lhe oferece para justificar a expulsão dos jesuítas, apontando-os como autores indiretos do atentado e D. José I, a instâncias do seu valido, assina sem hesitar o decreto de banimento. Esse ato de Pombal se reflete largamente na vida do Brasil. Todo o movimento de organização social se devia, na colônia, aos esforços dos dedicados missionários. O clero comum possuía escravos numerosos e chegava a defender o suposto direito dos escravagistas, incentivando a caça aos índios e abençoando a carga misérrima dos navios negreiros. Os jesuítas, porém, sempre trabalharam, no início da organização brasileira, dentro dos mais amplos sentimentos de humanidade. Aldeavam os índios, aprendiam a “língua geral”, a fim de influenciarem mais diretamente no ânimo deles, trazendo as tabas rústicas às comunidades da civilização e foram, talvez, naqueles tempos longínquos, os únicos refletores dos ensinamentos do Alto, advogando o seu verbo inspirado a causa de todos os infelizes. A sua expulsão do Brasil retardou de muito tempo a educação das classes desfavorecidas e, se o ministro de D. José I estendeu algumas vezes o seu dinamismo renovador até a Pátria do Evangelho, sua ação poucas vezes ultrapassou o terreno material, tanto que, mesmo alguns melhoramentos introduzidos no Rio de Janeiro pelo Conde de Bobadela, que levantou aí a primeira oficina tipográfica do país, foram por ele destruídos, à força de decretos que constituíam sérios obstáculos à facilidade de educação no território da colônia.

A esse tempo, observando a anulação dos seus esforços, os missionários humildes da cruz procuraram Ismael com instantes apelos. Seus trabalhos eram abandonados, por força das determinações do ministro arbitrário. Suas intenções ficavam incompreendidas, suas ações baldadas, no sentido de espalharem entre os sofredores as claridades consoladoras do ensino de Jesus. Mas, o generoso mensageiro pondera bondosamente aos seus dedicados colaboradores:

— Irmãos — diz ele — muitas vezes, os próprios Espíritos que escolhemos para determinados labores terrestres não resistem à sedução do dinheiro e da autoridade. Sentem-se traídos em suas próprias forças e se entregam, sem resistência, ao inimigo oculto que lhes envenena o coração. Deixai aos déspotas da Terra a liberdade de agir sob o império da sua prepotência. Por mais que operem dentro das suas possibilidades no plano físico, a vitória pertencerá sempre a Jesus, que é a luminosidade tocante de todos os corações. Temos, porém, de considerar, a par da tirania política que tenta destruir a nossa ação, o lamentável desvio dos nossos irmãos incumbidos de velar pelo patrimônio do Evangelho, no mundo europeu. Infelizmente, não têm eles procurado levar a luz espiritual às almas aflitas e sofredoras, clareando a estrada dos ignorantes e abençoando o rude labor dos simples; ao contrário, buscam influenciar os príncipes do planeta, disputando os mais altos lugares de domínio no banquete dos poderes temporais, em todos os países onde milita a igreja do Ocidente. Peçamos a Jesus pelos tiranos e pelos nossos companheiros desviados da consciência retilínea. Se terminamos, agora, uma etapa da nossa tarefa, em que aproveitamos os elementos que nos oferecia a disciplina da Companhia fundada por Loiola, prosseguiremos o nosso trabalho dentro de novas modalidades. Deixemos aos mortos o cuidado de enterrar seus mortos, como ensinou o Divino Mestre em suas lições sublimes. Vossos irmãos, transformando a cruz do Cristo num símbolo de opressão e despotismo, nos tribunais malditos da Inquisição, cavam a sepultura moral de suas almas, que se amoldam ao sacrilégio e à ignomínia. Quanto aos políticos, esses têm uma órbita de ação que não lhes é possível ultrapassar; o tempo e a experiência, com a dor, eterna aliada de ambos, ensinarão às suas consciências a lei de fraternidade e de amor, que esqueceram nos dias do fastígio e da glória efêmera sobre a face do mundo. Oremos por eles e que Jesus, na sua bondade infinita, nos acolha os corações sob o manto da sua misericórdia.

Enquanto oravam, gotas suaves de luz se derramavam do céu sobre os caminhos tenebrosos da Terra e a palavra profética de Ismael teve, em breve, a sua confirmação.

A Companhia de Jesus foi suprimida pelo próprio Papa Clemente XIV, em 1773, para reaparecer somente em 1814, com Pio VII. Nunca mais, todavia, puderam os jesuítas readquirir o imenso prestígio que possuíram no Ocidente.

Quanto ao Marquês de Pombal, conheceu no silêncio a lição do abandono e do olvido dos homens. No dia em que agonizava D. José I, o cardeal de Lisboa, D. João Cosme da Cunha, que devia ao famoso ministro a altura da sua posição eclesiástica, lhe declara no aposento do moribundo:

— "V. Ex.mo já nada mais tem que aqui fazer", testemunhando-lhe venenosa ingratidão. Daí a algum tempo, em subindo ao trono, D. Maria I destituía o marquês de todas as suas funções no reino, banindo-o da corte após rumoroso processo, em que procurou fundamentar a sua condenação.

Retirando-se para a Vila de Pombal, desprendeu-se do mundo em 1782, humilhado e esquecido, sob o jugo dos mais pungentes desgostos.

A INCONFIDÊNCIA MINEIRA

Por morte de D. José, ascendeu ao trono sua filha, D. Maria I, a Piedosa, a cuja autoridade ficaria afetas as grandes responsabilidades do trono, naquela época em que um sopro de vida nova modificava todas as disposições políticas e sociais do Velho Mundo. No seu reinado, Portugal sente esvaírem-se-lhe as forças poderosas e se encaminha com rapidez para a decadência e para a ruína. Não fossem as notáveis influências de um Martinho de Melo ou de um Duque de Lafões, talvez fosse ainda mais desastroso o reinado de D. Maria, escravizada ao fanatismo do tempo e às opiniões dos seus confessores.

Por esse tempo, o Brasil sofria o máximo de vexames, no que se referia ao problema da sua liberdade. A capitania de Minas Gerais, que se criara e desenvolvera sob a carinhosa atenção dos paulistas, era então o maior centro de riquezas da colônia, com as suas minas inesgotáveis de ouro e diamantes. A sede de tesouros edificara Vila Rica nos cumes enevoados e frios das montanhas, reunindo-se ali uma plêiade de poetas e escritores que sentiriam, de mais perto, as humilhações infligidas pela metrópole portuguesa à pátria que nascia. A verdade é que em Minas se sentia, mais que em toda parte, o despotismo e a tirania. O clero, a magistratura e o fisco, juntos aos ambiciosos que aí se estabeleceram, apossavam-se de todas as possibilidades econômicas, presas de criminosa ânsia de fortuna. Os padres queriam todo o ouro das minas, para a edificação das suas igrejas suntuosas; os membros da magistratura consideravam de necessidade enriquecer-se, antes de regressarem a Portugal, com opulentas aquisições; os agentes do fisco executavam as determinações da corte de Lisboa, árvore farta e maravilhosa, onde todos os parasitas da nobreza iam sugar a seiva de pensões extraordinárias e fabulosas.

Eram então numerosos na Europa os estudantes brasileiros, os quais de lá voltavam ao país saturados dos princípios filosóficos de Rousseau e dos enciclopedistas. A independência da América do Norte e a constituição democrática de Filadélfia animam aqueles Espíritos, insulados nas montanhas distantes. Por toda a capitania mais rica da colônia, desdobram-se quadros dolorosos da miséria do povo, esmagado pelos impostos de toda natureza. As coletividades de trabalhadores, conduzidas à ruína pelo malogro das minerações, não conseguiriam suportar por mais tempo semelhantes vexames. Em Minas, porém, uma elite de brasileiros considera a gravidade da situação. Intelectuais distintos se sentem compenetrados da maioridade da pátria, que, ao seu ver, poderia tomar as rédeas dos seus próprios destinos.

Iniciam-se os esboços da conspiração. Depois de algumas conversações em Vila Rica, das quais, entre muitos outros, participaram Inácio de Alvarenga, Joaquim José da Silva Xavier, Cláudio Manuel da Costa e Tomás Gonzaga, conversações em que foram adotadas as primeiras providências, a infiltração das ideias libertárias começou a fazer-se através de todos os elementos da capitania, no que ela possuía de mais representativo. José Joaquim da Maia é enviado à Europa para sondar o pensamento de Jefferson, embaixador da América do Norte em Paris, e angariar a simpatia dos brasileiros espalhados no Velho Mundo, para o movimento libertador. Outros estudantes, apaixonados pela emancipação da colônia, os conspiradores mandam a S. Paulo e a Pernambuco, que formavam os dois centros mais importantes do país, com o objetivo de conquistar a adesão de ambos ao movimento. Todavia, nem Joaquim da Maia conseguiu o auxílio de Jefferson, que apenas chegou a se interessar moralmente pelo projeto, nem os seus companheiros obtiveram o compromisso formal das capitanias mencionadas, para se articular o movimento revolucionário. Pernambuco estava refazendo as suas economias, depois das lutas penosas de Recife e Olinda, e São Paulo se encontrava desiludido, depois da guerra dos emboabas, na qual, muitas vezes, fora vítima da felonia e da traição. A conjuração de Minas, contudo, prossegue na propaganda, sem esmorecimentos.

Embriagados pela concepção da liberdade política, mas, dentro dos seus triunfes literários, afastados das realidades práticas da vida comum, os intelectuais mineiros não descansaram. Idealizaram a república, organizaram seus símbolos, multiplicaram prosélitos das suas ideias de liberdade; porém, no momento psicológico da ação, os delatores, a cuja frente se encontrava a personalidade de Silvério dos Reis, português de Leiria, levaram todo o plano ao Visconde de Barbacena, então Governador de Minas Gerais. O governador age com prudência, a fim de sufocar a rebelião nas suas origens, e, expedindo informes para que o Vice-Rei Luís de Vasconcelos efetuasse a prisão do Tiradentes no Rio de Janeiro, prende todos os elementos da conspiração em Vila Rica, depois de avisar secretamente aos seus amigos do peito, simpatizantes da conjuração, quanto à adoção de tais providências, para que não fossem igualmente implicados.

Aberta a devassa e terminado o vagaroso processo, são condenados à morte todos os chefes já presos.

Os historiadores falam do grande pavor daqueles onze homens que se ajuntavam, andrajosos e desesperados, na sala do Oratório, para ouvirem a sentença da sua condenação, após três longos anos de separação, em que haviam ficado incomunicáveis nos diversos presídios da época. A leitura da peça condenatória, pelo desembargador Francisco Alves da Rocha, levou quase duas horas. Depois de conhecerem os seus termos, os infelizes conjurados passaram às mais dolorosas e recíprocas recriminações. Os mais tristes quadros de fraqueza moral se patenteavam naqueles corações desiludidos e desamparados; mas, no dia seguinte, a dura sentença era modificada. D. Maria I havia comutado anteriormente as penas de morte em perpétuo degredo nas desoladas regiões africanas, com exceção do Tiradentes, que teria de morrer na forca, conservando-se o cadáver insepulto e esquartejado, para escarmento de quantos urdissem novas traições à coroa portuguesa.

O mártir da inconfidência, depois de haver apreciado, angustiadamente, a defecção dos companheiros, reveste-se de supremo heroísmo. Seu coração sente uma alegria sincera pela expiação cruel que somente a ele fora reservada, já que seus irmãos de ideal continuariam na posse do sagrado tesouro da vida. As falanges de Ismael lhe cercam a alma leal e forte, inundando-a de santas consolações.

Tiradentes entrega o Espírito a Deus, nos suplícios da forca, a 21 de abril de 1792. Um arrepio de aflitiva ansiedade percorre a multidão, no instante em que o seu corpo balança, pendente das traves do cadafalso, no Campo da Lampadosa. Mas, nesse momento, Ismael recebia em seus braços carinhosos e fraternais a alma edificada do mártir.

— Irmão querido — exclama ele —, resgatas hoje os delitos cruéis que cometeste quando te ocupavas do nefando mister de inquisidor, nos tempos passados. Redimiste o pretérito obscuro e criminoso, com as lágrimas do teu sacrifício em favor da Pátria do Evangelho de Jesus. Passaras a ser um símbolo para a posteridade, com o teu heroísmo resignado nos sofrimentos purificadores. Qual novo gênio surges, para espargir bênçãos sobre a terra do Cruzeiro, em todos os séculos do seu futuro. Regozija-te no Senhor pelo desfecho dos teus sonhos de liberdade, porque cada um será justiçado de acordo com as suas obras. Se o Brasil se aproxima da sua maioridade como nação, ao influxo do amor divino, será o próprio Portugal quem virá trazer, até ele, todos os elementos da sua emancipação política, sem o êxito incerto das revoluções feitas à custa do sangue fraterno, para multiplicar os órfãos e as viúvas na face sombria da Terra...

Um sulco luminoso desenhou-se nos espaços, à passagem das gloriosas entidades que vieram acompanhar o Espírito iluminado do mártir, que não chegou a contemplar o hediondo espetáculo do esquartejamento.

Daí a alguns dias, a piedosa rainha portuguesa enlouquecia, ferida de morte na sua consciência pelos remorsos pungentes que a dilaceravam e, consoante as profecias de Ismael, daí a alguns anos era o próprio Portugal que vinha trazer, com D. João VI, a independência do Brasil, sem o êxito incerto das revoluções fratricidas, cujos resultados invariáveis são sempre a multiplicação dos sofrimentos das criaturas, dilaceradas pelas provações e pelas dores, entre as pesadas sombras da vida terrestre.

A REVOLUÇÃO FRANCESA

Em 1792, D. João assumia a direção de todos os negócios do trono português, em virtude da perturbação mental de sua mãe, D. Maria L Época de profundas transições em todos os setores políticos do Ocidente, a regência se caracterizou por inúmeros desastres, no capítulo da administração.

Em 1789, estalara a Revolução Francesa, modificando a estrutura de todos os governos da Europa. Depois da sua reunião em Versalhes, no dia 5 de maio de 1789, os Estados Gerais se transformaram em Assembleia Constituinte e, a 14 de julho do mesmo ano, o povo, oprimido e dilacerado pelas flagelações e pelos impostos, derrubava a Bastilha, esfacelando o símbolo do despotismo da realeza.

Luís XVI é guilhotinado a 21 de janeiro de 1793. Instala-se a república francesa sobre um pedestal de sangue, que corre abundantemente nas praças de Paris. A guilhotina decepa todas as cabeças da nobreza. Após a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, as coletividades da França se haviam entregado àqueles anos de embriaguez no morticínio. Esses movimentos invadem todos os departamentos das atividades políticas da Europa. Todos os tronos se unem, então, para o extermínio da república nascente. Mas, os revolucionários não esmorecem na sua encarniçada resistência. Todas as pessoas suspeitas são decapitadas. O período do Terror é a grande ameaça ao mundo inteiro. Esse período, porém, se encerra com a morte de Maximiliano Robespierre, no cadafalso para o qual os seus excessos de autoridade haviam mandado inúmeras vítimas.

Instala-se, em 1795, o Diretório, que Napoleão Bonaparte faz derrubar em 1799, arvorando-se em primeiro cônsul. As casas imperiais europeias observam semelhantes acontecimentos, aguardando um ensejo próprio à restauração do trono que a família dos Bourbons havia perdido. A França, após os desperdícios de força na luta fratricida, caíra nas mãos do ditador inteligente e implacável, que a conduziria ao caminho de todas as aventuras. De simples oficial de artilharia, Bonaparte chegara, mediante golpes de Estado, ao cargo supremo do país, fazendo-se proclamar imperador em 1804. Sob a sua direção audaciosa, todas as conquistas militares se empreendem. A Europa inteira apresta-se para a campanha, ao tinido sinistro das armas. Pela estratégia dos generais franceses, caem todas as praças de guerra e o imperador vai catalogando o número ascendente das suas vitórias.

A esse tempo, todos os gênios espirituais do Ocidente se reúnem nas esferas próximas do planeta, implorando a proteção divina para os seus irmãos da humanidade. Emissários de Jesus descem com a sua palavra magnânima, a instruir os trabalhadores do Bem, levantando-lhes as energias para os bons combates.

— Irmãos — elucidam eles —, ordena o Senhor que espalhemos a sua luz e o seu amor infinito sobre todos os corações que sofrem na Terra. As forças das sombras intensificam a miséria e o sofrimento em todos os recantos do planeta. As ondas revolucionárias enchem de sangue todas as estradas do globo terrestre e as trombetas da guerra se fazem ouvir, entoando as notas horríveis da destruição e da morte. Levantemos o espírito geral das coletividades oprimidas, renovando a concepção de liberdade na face do mundo...

— Anjo amigo — interpelou um dos operários da luz naquela augusta assembleia —, estarão enquadrados na lei divina os trágicos acontecimentos que se desenrolam na Terra? Os tribunais se instalam para julgamentos sumários, que terminam sempre por sentenças de morte. As preces das viúvas e dos órfãos elevam-se até nós, nos mais dolorosos apelos, e, enquanto procuramos amparar esses irmãos com os nossos braços fraternos, o banquete da guerra, presidido pelos ditadores, prossegue sempre, como se obedecesse a uma fatalidade terrível dos destinos do mundo.

— Irmãos — explica o mensageiro —, o plano divino é o da evolução e dentro dele todas as formas de progresso das criaturas se verificariam sem o concurso desses movimentos lamentáveis, que atestam a pobreza moral da consciência do mundo. A revolução e a guerra não obedecem ao sagrado determinismo das leis de Deus; traduzem o atrito tenebroso das correntes do mal, que conduzem o barco da vida humana ao mar encapelado das dores expiatórias. Os pensadores terrestres poderão objetar que das ações revolucionárias nascem novas modalidades evolutivas no planeta e que múltiplos benefícios se originam das suas atividades destruidoras; nós, porém, não compreendemos outras transformações que não sejam as que se verificam no íntimo dos homens, no augusto silêncio do seu mundo interior, conduzindo-os aos mais altos planos do conhecimento superior. Se, após os movimentos revolucionários, surgem no orbe novos aspectos de progresso geral, é que o bem é o único determinismo divino dentro do Universo, determinismo que absorve todas as ações humanas, para as assinalar com o sinete da fraternidade, da experiência e do amor. Os Espíritos das trevas se reúnem para a chacina e para a destruição, como acontece atualmente na Terra. Aliando-se às tendências e às fraquezas das criaturas humanas, levam a mentalidade geral a todos os desvarios. Eles julgam estabelecer o império das sombras no plano moral do globo terrestre; mas, a verdade é que todos os triunfos pertencem a Jesus, e as correntes da luz e do bem absorvem todas as atividades, anulando os resultados porventura decorrentes da expansão limitada das trevas. É essa a razão por que, mesmo depois dessas ações destruidoras, florescerão outros núcleos valiosos de civilização. Até que a fraternidade deixe de ser uma figura mitológica no coração das criaturas humanas, até que estejam extintas as vaidades patrióticas, para que prevaleçam um só rebanho e um só pastor, que é Jesus Cristo, os seres das sombras terão o poder de arrastar o homem da terra às lutas fratricidas. Mas, ai daqueles que fomentarem semelhantes delitos. Para as suas almas, a noite dos séculos é mais sombria e mais dolorosa. Infelizes de quantos tentarem fechar a porta ao progresso dos seus irmãos, porque acima da justiça subornável dos homens há um tribunal onde impera a equidade inviolável. A Têmis15 Divina conhece todos os traidores da humanidade, que passam pelo mundo glorificados pela História; a condenação lhes marca a fronte e aos seus ouvidos ecoam, incessantemente, as palavras dolorosas: “Caim, Caim, que fizeste dos teus irmãos, maldito?" Somente as lágrimas, no círculo doloroso das reencarnações tenebrosas, lhes abrem uma vereda para a reabilitação, nas estradas eternas do tempo!

Dissolvida a assembleia do infinito, os amigos dos infortunados espalharam-se pelas sendas terrestres, a reerguerem seus irmãos nas lutas redentoras.

Napoleão prosseguia, deixando em toda parte um rastro de lágrimas e de sangue. Suas incursões, em todos os países, lhe granjeavam o espólio miserável das posições e das coroas, que o ditador ia distribuindo pelos seus familiares e amigos.

O século XIX começava a viver embalado pelo fragor das armas, em todas as direções. Portugal alia-se à Inglaterra, resistindo às ordens supremas do conquistador. Bonaparte assina um tratado com a Espanha, que já se havia dobrado às suas determinações, e ordena a invasão imediata de Portugal.

A Inglaterra, com a sua prudência, sugere à Casa de Bragança a retirada para o Brasil. D. João VI hesita, antes de adotar semelhante resolução. O grande príncipe, tão generoso e tão infeliz, é encontrado, nas vésperas da partida, a chorar convulsivamente em um dos aposentos privados do palácio; mas, àquela decisão era necessária e inadiável. A frota real velejou do Tejo a 29 de novembro de 1807, a caminho da colônia e, mal havia desaparecido nas águas pesadas do Atlântico, já os soldados de Junot se apoderavam de Lisboa e de suas fortalezas, com ordem de riscar Portugal da carta geográfica europeia.

Contudo, os gênios espirituais velavam pelos vencidos e pelos humilhados. D. João VI chega ao Brasil em janeiro de 1808, depois de uma viagem cheia de acidentes e contrariedades. O bondoso príncipe encontraria, na terra do Evangelho, a hospitalidade que os reis de Castela não encontraram nas suas colônias da América do Sul, quando acossados pelas mãos de ferro do ditador. A Casa de Bragança ia dilatar até aqui os limites do seu reino, reconhecida e feliz por encontrar no Brasil a compreensão e a bondade, o acolhimento e o amor.

D. JOÃO VI NO BRASIL

Enquanto as falanges espirituais de Henrique de Sagres se reuniam em Portugal, revigorando as forças lusitanas para a escola de energia, que foi a guerra peninsular, o exército de Ismael voltava-se para o Brasil, a fim de inspirar o primeiro soberano do Velho Mundo que pisava as terras americanas.

A esses esclarecidos agrupamentos do mundo invisível, aliava-se agora a personalidade do Tiradentes, que se transformara em gênio inspirador de todos os brasileiros. Ismael reúne os seus colaboradores e fala assim aos devotados mensageiros:

— Amigos, um novo período surgirá agora para as nossas atividades na terra do Evangelho. Ao sopro das inspirações divinas, reformar-se-á toda a vida política da pátria onde edificaremos, mais tarde, a obra de Jesus. Procuremos inspirar a quantos se conservam à frente dos interesses do povo, iluminando-lhes o caminho com as ideias generosas e fraternas da liberdade. Sobre os nossos esforços há de pairar a direção do Senhor, que se desvela amorosamente pelo cultivo da árvore sagrada dos ensinamentos, transplantada da Palestina para o coração do Brasil.

Aquela caravana de abnegados espalha-se então, por todos os recantos da pátria, distribuindo com os seus esforços fraternais as sementes de uma vida nova. A 22 de janeiro de 1808, aporta na Bahia a maior parte das embarcações que constituíam a frota real. O povo baiano recebe o príncipe-regente e sua comitiva com as mais carinhosas demonstrações de amizade. Clarins e bandeiras anunciam, sob um sol quente e amigo, a presença da família real nas terras do Cruzeiro. A cidade do Salvador julga-se de novo nos seus grandes dias, contando com a honra de ser outra vez a capital da colônia; mas, os navios descem ao longo da costa para o Rio de Janeiro.

Logo, porém, ao seu primeiro contato com o Brasil, sob o influxo das falanges do Infinito, o príncipe generoso sente-se tocado da mais alta simpatia para com a Pátria do Evangelho.

Ainda na Bahia, graças às suas relações com o Conde de Aguiar, ministro de D. João VI, José da Silva Lisboa, mais tarde Visconde de Cairu, consegue do soberano a abertura de todos os portos da colônia ao comércio universal. E note-se que semelhante providência, a base primordial da autonomia brasileira, teve seus antecedentes, indiscutivelmente, na atuação das forças espirituais que presidiam aos movimentos iniciais da emancipação, porque, na convenção secreta de Londres, em 22 de outubro de 1807, um dos pontos essenciais que deveriam ser observados, em troca da proteção de Jorge III à Casa de Bragança, no sentido de sua fuga para a colônia distante, era o da abertura dos portos do Brasil à livre concorrência da Inglaterra, reservando-se tal direito somente aos interesses britânicos. O soberano e seus ministros conheciam essas estipulações, através de Lorde Strangford; mas, com o auxílio das influências salutares do plano invisível, reconsideraram a tempo o absurdo de semelhantes exigências e cuidaram de realizar as primeiras aspirações dos patriotas brasileiros.

A maravilha dos céus americanos deslumbra os olhos de D. João, que se entusiasma com a beleza natural da paisagem magnífica. Acompanhado de numeroso séquito de fidalgos, onde se destacavam o Visconde de Anadia, elegante da época, inimigo implacável de todas as feições indígenas da colônia, o Marquês de Belas, o Marquês de Angeja, o Duque de Cadaval e toda uma comitiva enorme de vassalos e nobres, de guardas e criados, o soberano aportou ao Rio de Janeiro, num ambiente de geral alegria.

Nos seus novos paços, sentia-se o rei confortado e satisfeito com a magnificência do panorama e com a fartura da terra. Apenas D. Carlota Joaquina, com a sua educação deficiente, a sua megalomania e apego aos prazeres requintados da época, não se conformava com a situação, protestando contra todos os elementos, demonstrando aridez de espírito e lamentável agressividade.

As caravanas do infinito não descansaram junto das autoridades supremas da política administrativa. Todas as possibilidades foram aproveitadas pela sua operosidade infatigável. A 1.° de abril de 1808, levantava-se a proibição que incidia sobre as indústrias nacionais, que foram declaradas livres, o que facilitou a colaboração dos estrangeiros estabelecidos nas costas marítimas da Pátria do Cruzeiro, surgindo um novo período de trabalho, construtivo do país, prestes a celebrar suas núpcias com a liberdade.

O Rio de Janeiro, sob a direção do bondoso príncipe que, debaixo das influências poderosas do Alto, adotara um regime muito mais liberal do que as formas de governo existentes em Lisboa, enche-se de obras notáveis. Grandes instituições se fundam na cidade da mais maravilhosa baía do mundo. Surgem a Escola de Medicina, o Real Teatro São João, o Banco do Brasil; organizam-se os primórdios da Escola de Belas-Artes, cria-se a Academia de Marinha, o Conselho Militar, a Biblioteca Real; desenha-se o Jardim Botânico, como novo encanto da cidade, e, sobretudo, inicia-se, com a Imprensa Régia, a vida do jornalismo na Terra de Santa Cruz.

Entidades benevolentes e sábias, sob a direção de Ismael, espalham claridades novas em todos os Espíritos e, sob os seus generosos e imponderáveis impulsos, as grandes realizações do progresso brasileiro se avolumam por toda parte, nas mais elevadas demonstrações evolutivas.

O príncipe, contudo, não soube manter-se constantemente dentro das linhas de sua autoridade. Com as suas liberalidades na América, criava-se em derredor da sua corte toda uma sociedade de parasitas e de inúteis. Os reineis abastados do Rio de Janeiro e das outras grandes cidades coloniais receberam títulos e condecorações de toda natureza. As cartas honoríficas eram expedidas quase que diariamente. Por toda parte, havia comendadores da Ordem do Cristo e cavaleiros de São Tiago dando lugar a um grande menosprezo pelas instituições. Os nobres da época eram os novos ricos do mundo moderno. Conquistados os títulos, sentiam-se no direito de viver colados ao orçamento da despesa, apodrecendo longe do trabalho. Só os gastos da despensa da corte, dos quais vivia a multidão dos criados, no Rio de Janeiro, ao tempo de D. João VI, se aproximavam da respeitável importância de mais de quinze mil contos de réis! O alojamento dos fidalgos e de suas famílias exigiu, por vezes a fio, as mais enérgicas providências da autoridade, no capítulo das expropriações. A chamada lei das aposentadorias obrigava todos os inquilinos e proprietários a cederem suas casas de residência aos favoritos e aos fâmulos reais. Bastava que qualquer fidalgote desejasse este ou aquele prédio, para que o Juiz Aposentador efetuasse a necessária intimação, a fim de que fosse imediatamente desocupado. Ao oficial de justiça, incumbido desse trabalho, bastava escrever na porta de entrada as letras “P. R.”, que se subentendiam por “Príncipe Regente”, inscrição que a malícia carioca traduzia como significando — “Ponha-se na rua”.

Moreira de Azevedo conta em suas páginas que Agostinho Petra Bittencourt era um dos juízes aposentadores ao tempo de D. João VI, quando lhe apareceu um fidalgo da corte, exigindo pela segunda vez uma residência confortável, apesar de já se encontrar muito bem instalado. Decorridos alguns dias, o mesmo homem requer a mobília e, daí a algum tempo, solicita escravos. Recebendo a terceira solicitação, o juiz, indignado em face dos excessos da corte do Rio, exclama para a esposa, gritando para um dos apartamentos da casa:

— Prepare-se, D. Joaquina, porque por pouco tempo poderemos estar juntos.

E, indicando à mulher, que viera correndo atender ao chamado, o fidalgo que ali esperava a decisão, concluiu com ironia: — Este senhor já por duas vezes exigiu casa; depois pediu-me mobília e agora vem pedir criados. Dentro em breve, desejará também uma mulher e, como não tenho outra senão a senhora, serei forçado a entregá-la.

Todavia, a despeito de todos os absurdos e de todos os dispêndios, que seriam de muito excedidos nos odiosos processos revolucionários, caso o país fosse obrigado a exigir pelas armas a sua emancipação, a corte de D. João VI ia prestar ao Brasil os mais inestimáveis serviços, no capítulo de sua autonomia e de sua liberdade, sem os abusos criminosos das lutas fratricidas.

PRIMÓRDIOS DA EMANCIPAÇÃO

Em 1815, passara a colônia a ser o Reino do Brasil, em carta de lei de D. João VI. O Rio de Janeiro tornou-se, desse modo, a sede da monarquia portuguesa. O soberano, reconhecido à terra que o asilara, dispensava ao Brasil os mais altos privilégios.

O progresso econômico da nação, alentado pelas forças estrangeiras aí estabelecidas com as garantias da lei, avançava em todos os setores da comunidade brasileira. Todo o país se rejubila com a nova era de prosperidade geral. No Rio, porém, o generoso príncipe sofria os mais acerbos desgostos, no ambiente da família. Foi talvez em razão desses dissabores que jamais se viu D. João VI perfeitamente integrado nas suas respeitáveis funções, no mundo oficial daquele tempo. São conhecidos o apego do soberano aos seus almoços solitários, sem as etiquetas da época; seu retraimento e desleixo quanto às pequeninas formalidades que constituem o problema da elegância de um século. Com as roupas desabotoadas, mal contendo o corpo nas suas dobras em desalinho, muitas vezes foi ele visto alheio às sérias preocupações da sua autoridade suprema, como se o seu espírito vagasse na paisagem de outros mundos. D. João se acostumara à maravilhosa beleza do sítio da Guanabara e se tomara de amor pela pátria que os seus valorosos antepassados haviam edificado. Enquanto Napoleão Bonaparte lia o Eclesiastes em meio dos seus infortúnios na ilha solitária de Santa Helena, para se convencer de que todas as glórias humanas não passam de vaidades e alucinação de espírito, o príncipe regente preferia fazer os seus passeios pelos arredores do Paço de São Cristóvão, esquecido das mentiras sociais da corte de Lisboa. Aqui, no Brasil, ao menos o inédito dos céus sempre azuis e das encantadoras perspectivas dos morros verdoengos e floridos representavam um anestésico para o seu coração dilacerado de filho, de esposo e de pai. Suas preocupações se dividiam entre a mãe demente, a esposa desleal e incompreensível, e o filho perdulário e estroina. No seu cérebro não havia lugar para considerações em torno das transformações políticas da época e a antiga metrópole portuguesa continuava sob a orientação dos homens públicos da Inglaterra. Em 1816, desprende-se do corpo enfermo e envelhecido o Espírito de D. Maria L A rainha experimentara algo de lucidez nos seus derradeiros dias de supremas tribulações. Por muito tempo, contudo, esteve apegada às ilusões do seu trono, perseguida pelo vozerio das entidades desencarnadas em virtude de rigorosas sentenças de morte, por insinuação dos seus confessores e dos seus ministros. As torturas da Terra acompanham no além aqueles que as semearam na face do mundo, pelo que o calvário da infeliz soberana não terminou com os seus últimos dias no orbe terrestre.

No ano seguinte, casou-se o Príncipe D. Pedro com a Arquiduquesa Leopoldina da Áustria. Alma sensível e delicada, essa princesa europeia foi trazida ao Brasil de acordo com as determinações do mundo invisível, para colaborar na realização dos elevados projetos de Ismael e dos seus mensageiros. Somente o seu coração, doce e submisso, poderia suportar resignadamente as estroinices do esposo, em um dos períodos mais delicados da sua vida, sem provocar escândalos que acarretariam atraso na marcha dos acontecimentos previstos.

A esse tempo, em todas as cortes da Europa, sopra fortemente o vento do liberalismo, pressagiando o fim do poder absoluto. A República francesa havia desferido tremendos golpes em todos os preconceitos do sangue e da autoridade. As constituições moldadas na célebre Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão surgiam em todos os países, dando ensejo à renovação das liberdades políticas.

Depois da morte de D. Maria I, Portugal não se resigna à situação de subalternidade a que o conduzira a caprichosa vontade de D. João VI, perseverando em permanecer no Brasil, e prepara todos os elementos para a insurreição contra a ditadura despótica de Beresford, em cujas mãos inábeis de administrador se encontrava o poder. A Maçonaria que, em todos os tempos, defendeu os princípios da liberdade e da fraternidade humanas, solicitada por elementos de Lisboa e de Pernambuco, não hesita em estender o seu concurso à independência do Brasil, que constituía assunto de somenos importância para os portugueses, desde que o soberano regressasse imediatamente à Europa, colocando-se à frente dos negócios do trono. A verdade, todavia, é que os pernambucanos exaltados não esperam a solução pelos processos pacíficos e, exacerbados os antigos ódios entre brasileiros e portugueses, que já haviam levado Recife e Olinda à guerra fratricida, promoveram a revolução de 1817, na qual se sacrificaram tantas vidas. Foi quando apareceu em todo o Norte do país o famoso “Preciso”, redigido por Luís de Mendonça, que se viu ameaçado de fuzilamento. As comissões militares, designadas para reprimir o movimento ordenaram morticínio e crueldades que consternaram o coração do próprio rei, induzindo-o a mandar suspendê-las sem perda de tempo, a fim de que cessassem as arbitrariedades dos executores das ordens do Conde dos Arcos. A 6 de fevereiro de 1818, dia da sua coroação, o soberano concedeu anistia a todos os implicados.

Ismael e seus emissários conseguiram, com a proteção de Jesus, fazer desabrochar por toda parte os albores da paz, lançando os alicerces da emancipação do Brasil.

Em 1820, rebenta em Lisboa e no Porto a revolução constitucionalista. Portugal, reduzido a condição de colônia, desde a ocupação de Junot, reclamava a volta imediata da família real à metrópole portuguesa e o regime da constituição para a sua vida política. As próprias tropas, que estacionavam no Pará e na Bahia, aderiram ao movimento da Pátria. D. João VI busca procrastinar as suas decisões. Promete enviar o Príncipe D. Pedro para examinar a situação, mas todos ou quase todos os portugueses do Brasil protestam contra as atitudes tergiversantes do monarca. As tropas, aderindo ao movimento do reino, se reúnem no Largo do Róssio. O momento era dos mais delicados.

Os colaboradores invisíveis, no entanto, desdobram suas atividades conciliadoras junto de todos os elementos políticos presentes na cidade e D. Pedro, depois de algumas combinações necessárias e rápidas, corre ao Paço de São Cristóvão, de onde traz um decreto antedatado, com a assinatura do soberano, declarando que aceita e mandará cumprir a constituição da Junta Revolucionária de Lisboa.

Os militares e a população entregam-se então as mais ruidosas manifestações de alegria. Girândolas e bandeiras celebram nas ruas cariocas o acontecimento.

Entram, porém, em jogo os interesses de Portugal e do Brasil. A 7 de março de 1821, D. João VI torna conhecida a sua resolução de regressar a Lisboa. Logo os favoritos da sua corte lhe insinuam a supressão de todas as liberdades que ele havia outorgado à Pátria do Evangelho; mas, a mentalidade brasileira protesta pela voz dos seus homens mais eminentes.

O generoso soberano, cujo reinado transcorria num dos períodos mais críticos da História do mundo, foi obrigado a deixar no Brasil o filho, como príncipe regente.

No momento das despedidas profere ele a famosa recomendação:

— Pedro, se o Brasil se separar de Portugal, antes seja para ti, que me respeitarás, do que para algum desses aventureiros.

NO LIMIAR DA INDEPENDÊNCIA

Novamente em Portugal, D. João VI se deixa levar ao sabor das circunstâncias. Lisboa vivia então sob grande terror, devido aos julgamentos sumários que se haviam verificado contra todos os implicados no movimento que visava depor a ditadura de Beresford. Inúmeros fuzilamentos se executaram, sem que as sentenças de morte fossem bafejadas pela sanção régia, constituindo verdadeiros assassínios, com os mais hediondos requintes de crueldade.

O soberano, que trazia constantemente na memória a figura de Luís XVI colada à guilhotina, sujeita-se a todas as imposições dos revolucionários. Jura a Constituição portuguesa, sem o assentimento da Rainha D. Carlota, que é exilada para a Quinta do Ramalhão, onde ficará com o filho D. Miguel, urdindo novos planos inspirados pela sua desmesurada ambição.

Os portugueses influentes consideram o perigo da independência brasileira. A mais preciosa gema que se engastara à coroa da Casa de Bragança estava prestes a desprender-se, para sempre. Todas as providências contrárias à pretensão dos brasileiros são adotadas imediatamente. Um período agitado surge na política da época, entre os polos antagônicos do absolutismo e da democracia. As cortes portuguesas, com 130 deputados, impunham a sua vontade despótica aos 72 deputados brasileiros, que assistiam, com verdadeiro heroísmo, ao desenvolvimento dos projetos de franca hostilidade à direção do príncipe regente do Brasil, que, aos poucos, se ia inflamando ao calor das ideias liberais. Aqueles poucos deputados apresentam um projeto criando na América um congresso independente das câmaras organizadas na Europa, projeto que é recebido pelos portugueses como um insulto à dignidade nacional. Declara um dos parlamentares que D. Pedro deveria abandonar o Paço de São Cristóvão, onde respirava a peçonha da “bajulação dos inimigos do regime”, e voltar a Lisboa, a fim de aprimorar a sua educação em viagens pela Europa. As agitações se intensificam num crescendo espantoso. Alguns deputados brasileiros, como Araújo Lima e Antônio Carlos, agredidos pela população, se veem coagidos a emigrar para a Inglaterra.

A caravana de Ismael desvela-se pelo cultivo das ideias liberais no coração da pátria e, através de processos indiretos, procura espalhar por todos os setores da terra do Cruzeiro as sementes da fraternidade e do amor.

Ê então que a personalidade espiritual daquele que fora o Tiradentes procura o mensageiro de Jesus, solicitando-lhe o conselho esclarecido, quanto à solução do problema da independência:

— Anjo amigo — inquire ele — não será agora o instante decisivo para nossa atuação? Por toda parte há uma exaltação patriótica nos ânimos. As possibilidades estão dispersas, mas poderíamos reunir todas as forças, para o fim de derrubar as últimas muralhas que se opõem à liberdade da Pátria do Evangelho.

— Meu irmão —, pondera Ismael sabiamente — o momento da emancipação brasileira não tardará no horizonte de nossa atividade; todavia, precisamos articular todos os movimentos dentro da ordem construtiva, a fim de que não se percam as finalidades do nosso trabalho. O problema da liberdade é sempre uma questão delicada para todas as criaturas, porque todos os direitos adquiridos se fazem acompanhar de uma série de obrigações que lhes são correlatas. Cumpre considerar que toda elevação requer a plena consciência do dever a cumprir; daí a delicadeza da nossa missão, no sentido de repartir as responsabilidades. Precisamos difundir a educação individual e coletiva, dentro das nossas possibilidades, formando os Espíritos antes das obras. No problema em causa, temos de aproveitar a autoridade de um príncipe do mundo, para levar a efeito a separação das duas pátrias com o mínimo de lutas, sem manchar a nossa bandeira de redenção e de paz com o pungente espetáculo das lutas fratricidas. Cerquemos o coração desse príncipe das claridades fraternas da nossa assistência espiritual. Povoemos as suas noites de sonhos de amor à liberdade, desenvolvendo-lhe no espírito as noções da solidariedade humana. Individualmente considerado, não representa ele o tipo ideal, necessário à realização dos nossos projetos; voluntarioso e doente, não tem, para nós outros, um cérebro receptivo que facilite o nosso trabalho; mas, ele encarna o princípio da autoridade e temos de mobilizar todos os elementos ao nosso alcance, para evitar os desvarios criminosos de uma guerra civil. Trabalhemos mais um pouco, junto ao seu coração irrequieto, procurando, simultaneamente, abrir caminho novo à educação geral. Em breves dias, poderemos concentrar as forças dispersas, para a proclamação da independência e, após semelhante realização, enviaremos nosso apelo ao coração misericordioso de Jesus, implorando das suas bênçãos novo rumo para nossa tarefa, a fim de que a liberdade, bem aproveitada e bem dirigida, não constitua elemento de destruição na pátria dos seus sublimes ensinamentos.

As sábias ponderações de Ismael foram rigorosamente observadas por seus abnegados companheiros de ação espiritual. Os emissários invisíveis buscam, piedosamente, distribuir os elementos de paz e de concórdia geral, harmonizando todos os pensamentos para a edificação dos monumentos da liberdade.

As agitações, porém, se avolumam em movimentos espantosos, empolgando a nação inteira. Debalde Portugal procurava reprimir a ideia da independência, que se firmara em todos os corações.

Assim, enquanto os brasileiros discutiam e conspiravam secretamente, a frota do Vice-Almirante Francisco Maximiano de Sousa, sob o comando do Coronel Antônio Joaquim Rosado, com 1.200 homens, partia de Lisboa para o Rio de Janeiro, com ordem terminante de repatriar o Príncipe D. Pedro.

A INDEPENDÊNCIA

O movimento da emancipação percorria todos os departamentos de atividades políticas da pátria; mas, por disposição natural, era no Rio de Janeiro, cérebro do país, que fervilhavam as ideias libertárias, incendiando todos os espíritos. Os mensageiros invisíveis desdobravam sua ação junto de todos os elementos, preparando a fase final do trabalho da independência, através dos processos pacíficos.

Os patriotas enxergavam no Príncipe D. Pedro a figura máxima, que deveria encarnar o papel de libertador do reino do Brasil. O príncipe, porém, considerando as tradições e laços de família, hesitava ainda em optar pela decisão suprema de se separar, em caráter definitivo, da direção da metrópole.

Conhecendo as ordens rigorosas das Cortes de Lisboa, que determinavam o imediato regresso de D. Pedro a Portugal, reúnem-se os cariocas para tomarem as providências de possível execução e uma representação com mais de oito mil assinaturas é levada ao príncipe regente, pelo Senado da Câmara, acompanhado de numerosa multidão, a 9 de janeiro de 1822. D. Pedro, diante da massa de povo, sente a assistência espiritual dos companheiros de Ismael, que o incitam a completar a obra da emancipação política da Pátria do Evangelho, recordando-lhe, simultaneamente, as palavras do pai no instante das despedidas. Aquele povo já possuía a consciência da sua maioridade e nunca mais suportaria o retrocesso à vida colonial, integrado que se achava no patrimônio das suas conquistas e das suas liberdades. Em face da realidade positiva, após alguns minutos de angustiosa expectativa, o povo carioca recebia, por intermédio de José Clemente Pereira, a promessa formal do príncipe de que ficaria no Brasil, contra todas as determinações das Cortes de Lisboa, para o bem da coletividade e para a felicidade geral da nação.

Estava, assim, proclamada a independência do Brasil, com a sua audaciosa desobediência às determinações da metrópole portuguesa.

Todo o Rio de Janeiro se enche de esperança e de alegria. Mas, as tropas fiéis a Lisboa resolvem normalizar a situação, ameaçando abrir luta com os brasileiros, a fim de se fazer cumprirem as ordens da Coroa. Jorge de Avilez, comandante da divisão, faz constar, imediatamente, os seus propósitos, e, a 11 de janeiro, as tropas portuguesas ocupam o Morro do Castelo, que ficava a cavaleiro da cidade. Ameaçado de bombardeio, o povo carioca reúne as multidões de milicianos, incorpora-os às tropas brasileiras e se posta contra o inimigo no Campo de Santana.

O perigo iminente faz tremer o coração fraterno da cidade. Não fosse o auxílio do Alto, todos os propósitos de paz se teriam malogrado numa pavorosa maré de ruína e de sangue. Ismael açode ao apelo das mães desveladas e sofredoras e, com o seu coração angélico e santificado, penetra as fortificações de Avilez e lhe faz sentir o caráter odioso das suas ameaças à população. A verdade é que, sem um tiro, o chefe português obedeceu, com humildade, à intimação do Príncipe D. Pedro, capitulando a 13 de janeiro e retirando-se com as suas tropas para a outra margem da Guanabara, até que pudesse regressar com elas, para Lisboa.

Os patriotas, daí por diante, já não pensam noutra coisa que não seja a organização política do Brasil. Todas as câmaras e núcleos culturais do país se dirigem a D. Pedro em termos encomiásticos, louvando-lhe a generosidade e exaltando-lhe os méritos. Os homens eminentes da época, a cuja frente somos forçados a colocar a figura de José Bonifácio, como a expressão culminante dos Andradas, auxiliam o príncipe regente, sugerindo-lhe medidas e providências necessárias. Chegando ao Rio por ocasião do grande triunfo do povo, após a memorável resolução do “Fico”, José Bonifácio foi feito ministro do reino do Brasil e dos Negócios Estrangeiros. O patriarca da independência adota as medidas políticas que a situação exigia, inspirando, com êxito, o príncipe regente nos seus delicados encargos de governo.

Gonçalves Ledo, Frei Sampaio e José Gemente Pereira, paladinos da imprensa da época, foram igualmente grandes propulsores do movimento da opinião, concentrando as energias nacionais para a suprema afirmação da liberdade da pátria.

Todavia, se a ação desses abnegados condutores do povo se fazia sentir desde Minas Gerais até o Rio Grande do Sul, o predomínio dos portugueses, desde a Bahia até o Amazonas, representava sério obstáculo ao incremento e consolidação do ideal emancipacionista. O governo resolve contratar os serviços das tropas mercenárias de Lorde Cochrane, o cavaleiro andante da liberdade da América Latina. Muitas lutas se travam nas costas baianas e verdadeiros sacrifícios se impõem os mensageiros de Ismael, que se multiplicam em todos os setores com o objetivo de conciliar seus irmãos encarnados, dentro da harmonia e da paz, sempre com a finalidade de preservar a unidade territorial do Brasil, para que se não fragmentasse o coração geográfico do mundo.

José Bonifácio aconselha a D. Pedro uma viagem a Minas Gerais, a fim de unificar o sentimento geral em favor da independência e serenar a luta acerba dos partidarismos. Em seguida, outra viagem, com os mesmos objetivos, realiza o príncipe regente a São Paulo. Os bandeirantes, que no Brasil sempre caminharam na vanguarda da emancipação e da autonomia, recebem-no, com o entusiasmo da sua paixão libertária e com a alegria da sua generosa hospitalidade e, enquanto há música e flores nos teatros e nas ruas paulistas, comemorando o acontecimento, as falanges invisíveis se reúnem no Colégio de Piratininga. O conclave espiritual se realiza sob a direção de Ismael, que deixa irradiar a luz misericordiosa do seu coração. Ali se encontram heróis das lutas maranhenses e pernambucanas, mineiros e paulistas, ouvindo-lhe a palavra cheia de ponderação e de ensinamentos.

Terminando a sua alocução pontilhada de grande sabedoria, o mensageiro de Jesus sentenciou:

— A independência do Brasil, meus irmãos, já se encontra definitivamente proclamada. Desde 1808, ninguém lhe podia negar ou retirar essa liberdade. A emancipação da Pátria do Evangelho consolidou-se, porém, com os fatos verificados nestes últimos dias e, para não quebrarmos a força dos costumes terrenos, escolheremos agora uma data que assinale aos pósteros essa liberdade indestrutível.

Dirigindo-se ao Tiradentes, que se encontrava presente, rematou:

— O nosso irmão, martirizado há alguns anos pela grande causa, acompanhará D. Pedro em seu regresso ao Rio e, ainda na terra generosa de São Paulo, auxiliará o seu coração no grito supremo da liberdade. Uniremos assim, mais uma vez, as duas grandes oficinas do progresso da pátria, para que sejam as registradoras do inesquecível acontecimento nos fastos da história. O grito da emancipação partiu das montanhas e deverá encontrar aqui o seu eco realizador. Agora, todos nós que aqui nos reunimos, no sagrado Colégio de Piratininga, elevemos a Deus o nosso coração em prece, pelo bem do Brasil.

Dali, do âmbito silencioso daquelas paredes respeitáveis, saiu uma vibração nova de fraternidade e de amor.

Tiradentes acompanhou o príncipe nos seus dias faustosos, de volta ao Rio de Janeiro. Um correio providencial leva ao conhecimento de D. Pedro as novas imposições das Cortes de Lisboa e ali mesmo, nas margens do Ipiranga, quando ninguém contava com essa última declaração sua, ele deixa escapar o grito de “Independência ou Morte! ”, sem suspeitar de que era dócil instrumento de um emissário invisível, que velava pela grandeza da pátria.

Eis por que o 7 de setembro, com escassos comentários da história oficial que considerava a independência já realizada nas proclamações de 1.° de agosto de 1822, passou à memória da nacionalidade inteira como o Dia da Pátria e data inolvidável da sua liberdade. Esse fato, despercebido da maioria dos estudiosos, representa a adesão intuitiva do povo aos elevados desígnios do mundo espiritual.

D. PEDRO II

Definitivamente proclamada a independência do Brasil, Ismael leva ao Divino Mestre o relato de todas as conquistas verificadas, solicitando o amparo do seu coração compassivo e misericordioso para a organização política e social da Pátria do Evangelho.

Corriam os primeiros meses de 1824, encontrando-se a emancipação do país mais ou menos consolidada perante a metrópole portuguesa. As últimas tropas reacionárias já se haviam recolhido a Lisboa, sob a pressão da esquadra brasileira nas águas baianas.

No Rio de Janeiro, transbordavam esperanças em todos os corações; mas, os estadistas topavam com dificuldades para a organização estatal da terra do Cruzeiro. A Constituição, depois de calorosos debates e dos famosos incidentes dos Andradas, incidentes que haviam terminado com a dissolução da Assembleia Constituinte e com o exílio desses notáveis brasileiros, só fora aclamada e jurada, justamente naquela época, a 25 de março de 1824. Nesse dia, findava a mais difícil de todas as etapas da independência e o coração inquieto do primeiro imperador podia gabar-se de haver refletido, muitas vezes, naqueles dias turbulentos, os ditames dos emissários invisíveis, que revestiram as suas energias de novas claridades, para o formal desempenho da sua tarefa nos primeiros anos de liberdade da pátria.

Recebendo as confidências de Ismael, que apelava para a sua misericórdia infinita, considerou o Senhor a necessidade de polarizar as atividades do Brasil num centro de exemplos e de virtudes, para modelo geral de todos. Chamando Longinus à sua presença, falou com bondade:

— Longinus, entre as nações do orbe terrestre, organizei o Brasil como o coração do mundo. Minha assistência misericordiosa tem velado constantemente pelos seus destinos e, inspirando a Ismael e seus companheiros do Infinito, consegui evitar que a pilhagem das nações ricas e poderosas fragmentasse o seu vasto território, cuja configuração geográfica representa o órgão do sentimento no planeta, como um coração que deverá pulsar pela paz indestrutível e pela solidariedade coletiva e cuja evolução terá de dispensar, logicamente, a presença contínua dos meus emissários para a solução dos seus problemas de ordem geral. Bem sabes que os povos têm a sua maioridade, como os indivíduos, e se bem não os percam de vista os gênios tutelares do mundo espiritual, faz-se mister se lhes outorgue toda a liberdade de ação, a fim de aferirmos o aproveitamento das lições que lhes foram prodigalizadas. Sente-se o teu coração com a necessária fortaleza para cumprir uma grande missão na Pátria do Evangelho?

— Senhor — respondeu Longinus, num misto de expectativa angustiosa e de refletida esperança —, bem conheceis o meu elevado propósito de aprender as vossas lições divinas e de servir à causa das vossas verdades sublimes, na face triste da Terra. Muitas existências de dor tenho voluntariamente experimentado, para gravar no íntimo do meu espírito a compreensão do vosso amor infinito, que não pude entender ao pé da cruz dos vossos martírios no Calvário, em razão dos espinhos da vaidade e da impenitência, que sufocavam, naquele tempo, a minha alma. Assim, é com indizível alegria, Senhor, que receberei vossa incumbência para trabalhar na terra generosa, onde se encontra a árvore magnânima da vossa inesgotável misericórdia. Seja qual for o gênero de serviços que me forem confiados, acolherei as vossas determinações como um sagrado ministério.

— Pois bem — redarguiu Jesus com grande piedade —, essa missão, se for bem cumprida por ti, constituirá a tua última romagem pelo planeta escuro da dor e do esquecimento. A tua tarefa será daquelas que requerem o máximo de renúncias e devotamentos. Serás imperador do Brasil, até que ele atinja a sua perfeita maioridade, como nação. Concentrarás o poder e a autoridade para beneficiar a todos os seus filhos. Não é preciso encarecer aos teus olhos a delicadeza e sublimidade desse mandato, porque os reis terrestres, quando bem compenetrados das suas elevadas obrigações diante das leis divinas, sentem nas suas coroas efêmeras um peso maior que o das algemas dos forçados. A autoridade, como a riqueza, é um patrimônio terrível para os Espíritos inconscientes dos seus grandes deveres. Dos teus esforços se exigirá mais de meio século de lutas e dedicações permanentes. Inspirarei as tuas atividades; mas, considera sempre a responsabilidade que permanecerá nas tuas mãos. Ampara os fracos e os desvalidos, corrige as leis despóticas e inaugura um novo período de progresso moral para o povo das terras do Cruzeiro. Institui, por toda parte, o regime do respeito e da paz, no continente, e lembra-te da prudência e da fraternidade que deverá manter o país nas suas relações com as nacionalidades vizinhas. Nas lutas internacionais, guarda a tua espada na bainha e espera o pronunciamento da minha justiça, que surgirá sempre, no momento oportuno. Fisicamente consideradas, todas as nações constituem o patrimônio comum da humanidade e, se algum dia for o Brasil menosprezado, saberei providenciar para que sejam devidamente restabelecidos os princípios da justiça e da fraternidade universal. Procura aliviar os padecimentos daqueles que sofrem nos martírios do cativeiro, cuja abolição se verificará nos últimos tempos do teu reinado. Tuas lides terminarão ao fim deste século, e não deves esperar a gratidão dos teus contemporâneos; ao fim delas, serás alijado da tua posição por aqueles mesmos a quem proporcionares os elementos de cultura e liberdade. As mãos aduladoras, que buscarem a proteção das tuas, voltarão aos teus palácios transitórios, para assinar o decreto da tua expulsão do solo abençoado, onde semearás o respeito e a honra, o amor e o dever, com as lágrimas redentoras dos teus sacrifícios. Contudo, amparar-te-ei o coração nos angustiosos transes do teu último resgate, no planeta das sombras. Nos dias da amargura final, minha luz descerá sobre os teus cabelos brancos, santificando a tua morte. Conserva as tuas esperanças na minha misericórdia, porque, se observares as minhas recomendações, não cairá uma gota de sangue no instante amargo em que experimentares o teu coração igualmente trespassado pelo gládio da ingratidão. A posteridade, porém, saberá descobrir as marcas dos teus passos na Terra, para se firmar no roteiro da paz e da missão evangélica do Brasil.

Longinus recebeu com humildade a designação de Jesus, implorando o socorro de suas inspirações divinas para a grande tarefa do trono. Ele nasceria no ramo enfermo da família dos Braganças; mas, todas as enfermidades têm na alma as suas raízes profundas. Se muitas vezes parece permanecer a herança psicológica, é que o sagrado instituto da família, dentro da lei das afinidades, frequentemente se perpetua no infinito do tempo. Os antepassados e seus descendentes, espiritualmente considerados, são, às vezes, as mesmas figuras sob nomes vários, na árvore genealógica, obedecendo aos sábios dispositivos da lei de reencarnação. Foi assim que Longinus preparou a sua volta à Terra, depois de outras existências tecidas de abnegações edificantes em favor da humanidade, e, no dia 2 de dezembro de 1825, no Rio de Janeiro, nascia de D. Leopoldina, a virtuosa esposa de D. Pedro, aquele que seria no Brasil o grande imperador e que, na expressão dos seus próprios adversários, seria o maior de todos os republicanos de sua pátria.

FIM DO PRIMEIRO REINADO

Um dos traços característicos do povo brasileiro é o seu profundo amor à liberdade. A largueza da terra e o infinito dos horizontes dilataram os sentimentos de emancipação em todas as almas chamadas a viver sob a luz do Cruzeiro. Desde que se esboçaram os primeiros movimentos nativistas, a mentalidade geral do Brasil obedeceu a esse nobre imperativo de independência e, ainda hoje, todas as ações revolucionárias que se verificam no país, lamentavelmente embora, trazem no fundo esse anseio de liberdade como o seu móvel essencial.

A atitude de D. Pedro I, ordenando a dissolução da Constituinte, em 1823, tivera funda repercussão no espírito geral. Se bem ignorasse o que vinha a ser uma constituição boa e justa, o povo a reclamava, dentro do seu conhecimento intuitivo, acerca da transformação dos tempos.

O imperador, apesar das suas paixões tumultuárias e das suas fraquezas como homem, possuía notável acuidade, em se tratando de psicologia política. Os estudiosos, que viram na sua personalidade somente o amoroso insaciável, muitas vezes não lhe reconhecem o espírito empreendedor na direção das coisas públicas, inaugurando a era constitucional do Brasil e Portugal, com as suas valorosas iniciativas. São de lamentar os seus transviamentos amorosos e a tragédia da sua vida conjugal, quando ao seu lado tinha uma nobre mulher, cujas renúncias e dedicações se elevavam ao heroísmo supremo; mas, nos instantes em que seu coração se tocava das ideias generosas, criando-lhe no íntimo um estado receptivo propício às inspirações do mundo invisível, as falanges de Ismael aproveitavam o minuto psicológico para auxiliá-lo na tarefa de consolidação da liberdade da Pátria do Evangelho. Foi assim que muitos decretos saíram de suas mãos, objetivando, inegavelmente, a tranquilidade geral.

Como dizíamos, a sua resolução extrema de dissolver a Assembleia e exilar os Andradas cavara um abismo entre ele e a opinião pública, intransigentemente apaixonada pela emancipação do país. As lutas isoladas se multiplicavam assustadoramente. No Rio e nas províncias, tudo era um clamor surdo de protestos contra os atos de D. Pedro, que, aliás, não poderia manter outra atitude em face do ambiente confuso do país.

A Província de Pernambuco, onde se plantaram, inicialmente, as balizas dos grandes sentimentos da liberdade e da democracia sob a influência de Maurício de Nassau, alimentava, mais que nunca, o sentimento de independência e de autonomia. Todas as grandes ideias encontravam, no Recife, o clima apropriado ao seu desenvolvimento e foi justamente aí que as deliberações de D. Pedro feriram mais fundo. As 24 de julho de 1824 estalam, na terra pernambucana, os primeiros movimentos da Confederação do Equador, que se ramificava por toda a região do Norte a proclamar as generosas ideias republicanas. Paes de Andrade coloca-se à frente da ação revolucionária, com o fim de agir contrariamente ao imperador, a quem se atribuía o propósito de reunir as coroas do Brasil e de Portugal, reintegrando-se o primeiro na vida colonial. Mas, o governo central providencia energicamente. Lorde Cochrane e Lima e Silva são enviados com urgência para extinguir a insurreição. Em Pernambuco, o futuro Marquês do Recife, com todo o seu prestígio entre os lavradores, inicia a defesa do governo imperial e prestigia as tropas enviadas, que sufocam o movimento. Os republicanos são vencidos e presos.

Paes de Andrade refugia-se num navio inglês, conseguindo escapar à ação repressiva do Império; mas João Ratcliff e Frei Caneca pagam com a vida o sonho republicano. Executados militarmente, são eles o doloroso escarmento para os companheiros. Ambos iam, porém, associar-se aos trabalhos do Infinito, sob a direção de Ismael, cuja misericórdia alentava as energias da pátria brasileira.

Não terminaram, com o desaparecimento da Confederação do Equador, as agitações intestinas. Os reinóis, espalhados por todos os recantos do país, esperavam um golpe de unificação das duas pátrias, sonhando com o regresso à vida colonial, em benefício dos seus interesses econômicos. Os brasileiros, todavia, entravam em luta com os portugueses, constituindo esses movimentos uma ameaça constante à paz coletiva, durante vários anos.

O mundo invisível, porém, atua de maneira sensível entre os gabinetes políticos, para que a Província Cisplatina fosse reintegrada em sua liberdade, após a anexação indébita, levada a efeito pelas forças armadas de D. João VI, em 1821, por inspiração de D. Carlota Joaquina. A imposição para submetê-la era francamente impopular, porquanto, desde o início da civilização brasileira, os mensageiros de Jesus difundiram o mais largo conceito de fraternidade dentro da Pátria do Cruzeiro, onde todo o povo guarda a tradição da solidariedade e da autonomia. A realidade é que Ismael triunfa sempre. Apesar das primeiras vitórias das armas brasileiras, a Província Cisplatina, que não era produto elaborado pela Pátria do Evangelho nem fruto de trabalho dos portugueses, se separava definitivamente do coração geográfico do mundo, graças à mediação pacífica da Inglaterra, para formar o território que veio a constituir a República Oriental do Uruguai.

Enquanto se desenrolavam esses acontecimentos, a opinião pública do Brasil não abandonava a crítica a todos os atos e deliberações do imperador. D. Pedro, senhor da psicologia dos tempos novos, não ignorava quanta decisão reclamavam os afazeres penosos do governo. Seus ministérios, no Rio de Janeiro, se organizavam para se desfazerem em curtos períodos de tempo. O país andava agitado e apreensivo, temendo-lhe as resoluções e espreitando-lhe os menores gestos. As suas aventuras amorosas eram perfidamente comentadas pelas anedotas da malícia carioca. O povo, conhecendo alguma coisa da sua conduta particular, se encarregou de elaborar a maior parte de todas as histórias ridículas em torno da sua personalidade, que, se rude e sensual, não era diferente da generalidade dos homens da época e tinha, não raras vezes, rasgos generosos, que alcançavam os mais altos cumes do sentimento.

A imprensa instituída pelo Conde de Linhares, em 1808, sob a proteção de D. João VI, no casarão da Rua do Passeio, não o abandonou, transformando-se em sentinela dos seus menores pensamentos. O imperador era acusado de proteger, criminosamente, os interesses portugueses, a despeito das suas ações em contrário. Muitas vezes, em momentos de meditação, no Paço de São Cristóvão, já ao tempo de suas segundas núpcias, deixava ele vagar o espírito pelo mundo rico das suas experiências, acerca dos homens e da vida, para reconhecer que todo aquele ódio gratuito lhe advinha da condição de português nato. O Brasil era reconhecido ao seu feito, no que se referia à independência política, mas não tolerava a origem do seu imperador, em se tratando dos problemas da sua autonomia.

Dias após as “noites das garrafadas”, em que os partidos políticos se engalfinharam na praça pública, de 12 a 14 de março de 1831, D. Pedro compareceu a um Te-Déum na igreja de São Francisco, sendo recebido, depois da cerimônia religiosa, pelo povo que o rodeou, com algumas demonstrações de desagrado. Para aplacar os ânimos exaltados do partidarismo, D. Pedro organiza novo ministério, todo composto de homens de sua absoluta confiança. O povo, entretanto, divisando dentro do novo gabinete ministerial somente os que ele considerava os palacianos de São Cristóvão, reuniu-se no Campo de Santana, capitaneado por demagogos e, em poucos minutos, a revolução se alastrava pela cidade inteira.

Deputações populares são enviadas ao imperador, que as recebe com serenidade e indiferença. Entre os revoltosos estão os seus melhores amigos. Os senhores da situação eram os mesmos a quem o imperador havia amparado na véspera. O próprio exército, que organizara com imenso desvelo, se voltava contra ele naquela noite memorável. D. Pedro, depois de ouvir à meia-noite as explicações do Major Miguel de Frias, que viera a palácio em busca da sua decisão quanto às exigências do povo, que lhe impunha o antigo ministério, mandou chamar o chefe da guarda do regimento de artilharia, aquartelado em São Cristóvão, e lhe ordenou, com serena nobreza, que se reunisse com os seus homens às tropas revoltadas, acrescentando generosamente:

— Não quero que ninguém se sacrifique por minha causa.

Depois da meia-noite, preferiu ficar só, na quietude do seu gabinete. Ali, atentou no patrimônio das suas experiências. Através do silêncio e da sombra, a voz de seu pai, já na vida livre dos espaços, lhe falava brandamente ao coração. Os mensageiros de Ismael auxiliam-lhe o cérebro esgotado na solução do grande problema e, às duas horas da madrugada de 7 de abril de 1831, sem ouvir sequer os seus ministros e conselheiros, abdicava na pessoa do filho, D. Pedro de Alcântara, que contava então cinco anos, e ficaria sob a esclarecida tutela de José Bonifácio.

BEZERRA DE MENEZES

O século XIX, que surgira com as últimas agitações provocadas no mundo pela Revolução Francesa, estava destinado a presenciar extraordinários acontecimentos. No seu transcurso, cumprir-se-ia a promessa de Jesus, que, segundo os ensinamentos do seu Evangelho, derramaria as claridades divinas do seu coração sobre toda a carne, para que o Consolador reorganizasse as energias das criaturas, a caminho das profundas transições do século XX.

Mal não haviam terminado as atividades bélicas da triste missão de Bonaparte e já o espaço se movimentava, no sentido de renovar os surtos de progresso das coletividades. Assembleias espirituais, reunindo os gênios inspiradores de todas as pátrias do orbe, eram levadas a efeito, nas luzes do infinito, para a designação de missionários das novas revelações. Em uma de tais assembleias, presidida pelo coração misericordioso e augusto do Cordeiro, fora destacado um dos grandes discípulos do Senhor, para vir à Terra com a tarefa de organizar e compilar ensinamentos que seriam revelados, oferecendo um método de observação a todos os estudiosos do tempo. Foi assim que Allan Kardec, a 3 de outubro de 1804, via a luz da atmosfera terrestre, na cidade de Lião. Segundo os planos de trabalho do mundo invisível, o grande missionário, no seu maravilhoso esforço de síntese, contaria com a cooperação de uma plêiade de auxiliares da sua obra, designados particularmente para coadjuvá-lo, nas individualidades de João-Batista Roustaing, que organizaria o trabalho da fé; de Léon Denis, que efetuaria o desdobramento filosófico; de Gabriel Delanne, que apresentaria a estrada científica e de Camille Flammarion, que abriria a cortina dos mundos, desenhando as maravilhas das paisagens celestes, cooperando assim na codificação kardequiana no Velho Mundo e dilatando-a com os necessários complementos.

Ia resplandecer a suave luz do Espiritismo, depois de certificado o Senhor da defecção espiritual das igrejas mercenárias, que falavam no globo em seu nome. Todas as falanges do Infinito se preparam para a jornada gloriosa. As abnegadas coortes de Ismael trazem as suas inspirações para as grandes cidades do país do Cruzeiro, conseguindo interessar indiretamente grande número de estudiosos.

As primeiras experiências espiritistas, na Pátria do Evangelho, começaram pelo problema das curas. Em 1818, já o Brasil possuía um grande círculo homeopático, sob a direção do mundo invisível. O próprio José Bonifácio se correspondia com Frederico Hahnemann. Nos tempos do segundo reinado, os mentores invisíveis conseguem criar, na Bahia, no Pará e no Rio de Janeiro, alguns grupos particulares, que projetavam enormes claridades no movimento neo espiritualista do continente, talvez o primeiro da América do Sul.

Antes dessa época, quando prestes a findar o primeiro reinado, Ismael reúne no espaço os seus dedicados companheiros de luta e, organizada a venerável assembleia, o grande mensageiro do Senhor esclarece a todos sobre os seus elevados objetivos.

— Irmãos — expôs ele —, o século atual, como sabeis, vai ser assinalado pelo advento do Consolador à face da Terra. Nestes cem anos se efetuarão os grandes movimentos preparatórios dos outros cem anos que hão de vir. As rajadas de morticínio e de dor avassalarão a alma da humanidade, no século próximo, dentro dos imperativos das transições necessárias, que serão o sinal do fim da civilização precária do Ocidente. Faz-se mister amparemos o coração atormentado dos homens nessas grandes amarguras, preparando-lhes o caminho da purificação espiritual, através das sendas penosas. É preciso, pois, preparemos o terreno para a sua estabilidade moral nesses instantes decisivos dos seus destinos. Numerosas fileiras de missionários encontram-se disseminadas entre as nações da Terra, com o fim de levantar a palavra da Boa Nova do Senhor, esclarecendo os postulados científicos que surgirão neste século, nos círculos da cultura terrestre. Uma verdadeira renascença das filosofias e das ciências se verificará no transcurso destes anos, a fim de que o século XX seja devidamente esclarecido, como elemento de ligação entre a civilização em vias de desaparecer e a civilização do futuro, que assentará na fraternidade e na justiça, porque a morte do mundo, prevista na Lei e nos Profetas, não se verificará por enquanto, com referência à constituição física do globo, mas quanto às suas expressões morais, sociais e políticas. A civilização armada terá de perecer, para que os homens se amem como irmãos. Concentraremos, agora, os nossos esforços na terra do Evangelho, para que possamos plantar no coração de seus filhos as sementes benditas que, mais tarde, frutificarão no solo abençoado do Cruzeiro. Se as verdades novas devem surgir primeiramente, segundo os imperativos da lei natural, nos centros culturais do Velho Mundo, é na Pátria do Evangelho que lhes vamos dar vida, aplicando-as na edificação dos monumentos triunfais do Salvador. Alguns dos nossos auxiliares já se encontram na Terra, esperando o toque de reunir de nossas falanges de trabalhadores devotados, sob a direção compassiva e misericordiosa do Divino Mestre.

Houve na alocução de Ismael uma breve pausa.

Depois, encaminhando-se para um dos dedicados e fiéis discípulos, falou-lhe assim:

— Descerás às lutas terrestres com o objetivo de concentrar as nossas energias no país do Cruzeiro, dirigindo-as para o alvo sagrado dos nossos esforços. Arregimentarás todos os elementos dispersos, com as dedicações do teu espírito, a fim de que possamos criar o nosso núcleo de atividades espirituais, dentro dos elevados propósitos de reforma e regeneração. Não precisamos encarecer aos teus olhos a delicadeza dessa missão; mas, com a plena observância do código de Jesus e com a nossa assistência espiritual, pulverizarás todos os obstáculos, à força de perseverança e de humildade, consolidando os primórdios de nossa obra, que é a de Jesus, no seio da pátria do seu Evangelho. Se a luta vai ser grande, considera que não será menor a compensação do Senhor, que é o caminho, a verdade e a vida.

Havia em toda a assembleia espiritual um divino silêncio. O discípulo escolhido nada pudera responder, com o coração palpitante de doces e esperançosas emoções, mas as lágrimas de reconhecimento lhe caíam copiosamente dos olhos.

Ismael desfraldara a sua bandeira à luz gloriosa do Infinito, salientando-se a sua inscrição divina, que parecia constituir-se de sóis infinitésimos. Urna vibração de esperança e de fé fazia pulsar todos os corações, quando uma voz, terna e compassiva, exclamou das cúpulas radiosas do Ilimitado:

— Glória a Deus nas Alturas e paz na terra aos trabalhadores de boa-vontade!

Relâmpagos de luminosidade estranha e misericordiosa clareavam o pensamento de quantos assistiam ao maravilhoso espetáculo, enquanto uma chuva de aromas inundava a atmosfera de perfumes balsâmicos e suavíssimos.

Sob aquela bênção maravilhosa, a grande assembleia dos operários do Bem se dissolveu.

Daí a algum tempo, no dia 29 de agosto de 1831, em Riacho do Sangue, no Estado do Ceará, nascia Adolfo Bezerra de Menezes, o grande discípulo de Ismael, que vinha cumprir no Brasil uma elevada missão.

A OBRA DE ISMAEL

O grande movimento preparatório do Espiritismo em todo o mundo tinha no Brasil a sua repercussão, como era natural. Por volta de 1840, ao influxo das falanges de Ismael, chegavam dois médicos humanitários ao Brasil. Eram Bento Mure e Vicente Martins, que fariam da medicina homeopática verdadeiro apostolado. Muito antes da codificação kardequiana, conheciam ambos os transes mediúnicos e o elevado alcance da aplicação do magnetismo espiritual. Introduziram vários serviços de beneficência no Brasil e traziam por lema, dentro da sua maravilhosa intuição, a mesma inscrição divina da bandeira de Ismael — “Deus, Cristo e Caridade”. Indescritível foi o devotamente de ambos à coletividade brasileira, à qual se haviam incorporado, sob os altos desígnios do mundo espiritual.

Nas suas luminosas pegadas, seguiram, mais tarde, outros pioneiros da homeopatia e do Espiritismo, na Pátria do Evangelho. Foram eles, os médicos homeopatas, que iniciaram aqui os passes magnéticos, como imediato auxílio das curas. Hahnemann conhecia a fonte infinita de recursos do magnetismo espiritual e recomendava esses processos psicoterápicos aos seus seguidores.

Os primeiros fenômenos de Hydesville, na América do Norte, em 1848, não passaram despercebidos à corte do segundo reinado. A febre de experimentações que se lhes seguiu, nas grandes cidades europeias, incendiou, igualmente, no Rio de Janeiro, alguns cérebros mais destacados no meio social. Em 1853, a cidade já possuía um pequeno grupo de estudiosos, entre os quais se podia notar a presença do Marquês de Olinda e do Visconde de Uberaba. Em Salvador, esses núcleos de experimentação também existiam, em idênticas circunstâncias. Em 1860 surgem as primeiras publicações espiritistas. Em 1865, o Dr. Luís Olímpio Teles de Menezes, com alguns colegas, replicava pelo “Diário da Bahia” a um artigo algo irônico de um cientista francês, desfavorável ao Espiritismo, publicado na “Gazette Medícale” e transcrito no jornal referido. As publicações brasileiras não passaram despercebidas ao próprio Allan Kardec, que delas teve conhecimento, com a mais justa satisfação íntima.

A doutrina seguia marcha vitoriosa, através de todos os ambientes cultos da Europa e da América, quando o grande codificador se desprendeu dos laços que o retinham à vida material, em 1869. Justamente nesse ano surgira o primeiro periódico espírita brasileiro — “O Eco de Além-Túmulo”.

O desaparecimento do mestre deixara algo desorientado o campo geral da doutrina em organização. Em Paris, como nos grandes centros mundiais, quiseram inutilmente substituir-lhe a autoridade. As falanges de Ismael estavam vigilantes. Sugeriram aos espiritistas brasileiros a necessidade de criar, no Rio, um núcleo central das atividades, que ficasse como o órgão orientador de todos os movimentos da doutrina no Brasil. Um dos emissários de Ismael, que dispunha de maiores elementos no terreno das afinidades mediúnicas, para se comunicar nos grupos particulares organizados na cidade, adotou o pseudônimo de Confúcio, sob o qual transmitia instrutivas mensagens e valiosos ensinamentos. Em 1873 fundava-se, com estatutos impressos e demais formalidades exigidas, o “Grupo Confúcio”, que constituiria a base da obra tangível e determinada de Ismael, na terra brasileira. Por esse grupo passaram, na época, todos os simpatizantes da doutrina e, se efêmera foi a sua existência como sociedade organizada, memoráveis foram os seus trabalhos, aos quais compareceu pessoalmente o próprio Ismael, pela primeira vez, esclarecendo os grandes objetivos da sua elevada missão no país do Cruzeiro.

Nem todos os espiritistas modernos conhecem o fecundo labor daqueles humildes arroteadores dos terrenos inférteis da sociedade humana. A realidade é que eles lutaram denodadamente contra a opinião hostil do tempo, contra o anátema, o insulto e o ridículo e, sobretudo, contra as ondas reacionárias das trevas do mundo invisível, para levantarem bem alto a bandeira de Ismael, como manancial de luz para todos os espíritos e de conforto para todos os corações. As entidades da sombra trouxeram a obra ingrata da oposição ao trabalho produtivo da edificação evangélica no Brasil.

Bem sabemos que, assim como Aquiles possuía um ponto vulnerável no seu calcanhar, o homem em si, pela sua vaidade e fraqueza, também tem um ponto vulnerável em todos os escaninhos da sua personalidade espiritual, e os seres das trevas, se não conseguiram vencer totalmente os trabalhadores, conseguiram desuni-los no plano dos seus serviços à grande causa. O “Grupo Confúcio” teve uma existência de três anos rápidos. Os mensageiros de Ismael, triunfando da discórdia que destruía o grande núcleo nascente, fundavam sobre ele, em 1876, a “Sociedade de Estudos Espíritas Deus, Cristo e Caridade”, sob a direção esclarecida de Francisco Leite de Bittencourt Sampaio, grande discípulo do emissário de Jesus, que, juntamente com Bezerra, tivera a sua tarefa previamente determinada no Alto. A ele se reuniu Antônio Luiz Sayão, em 1878, para as grandes vitórias do Evangelho nas terras do Cruzeiro. O trabalho maléfico das trevas, no plano invisível, é arrojado e perseverante. No seio desse redil de almas humildes e simples, esclarecidas à luz dos princípios cristãos, onde militavam espíritas lúcidos e sábios como Bittencourt Sampaio, que abandonara os fulgores enganosos da sua elevada posição na literatura e na política para se apegar às claridades do ideal cristão, as entidades tenebrosas conseguem encontrar um médium, pronto para a dolorosa tarefa de fomentar a desarmonia e, estabelecida de novo a discórdia, os mensageiros de Ismael reorganizam as energias existentes, para fundarem, em 1880, a “Sociedade Espírita Fraternidade”, com a qual se carregava em triunfo o bendito lema do suave estandarte do emissário do Divino Mestre.

Em 1883, Augusto Elias da Silva, na sua posição humilde, lançava o “Reformador”, coadjuvado por alguns companheiros e com o apoio das hostes invisíveis. As mesmas reuniões do grupo humilde de Antônio Sayão e Bittencourt Sampaio continuam. Uma plêiade de médiuns curadores, notáveis pela abnegação, iniciam, no Rio, o seu penoso apostolado. Elias da Silva e seus companheiros notam, entretanto, que a situação se ia tornando difícil com as polêmicas esterilizadoras. A esse tempo, os emissários do Alto prescrevem categoricamente aos seus camaradas do mundo tangível:

— Chamem agora Bezerra de Menezes ao seu apostolado!

Elias bate, então, à porta generosa do mestre venerável, o que não era preciso, porque seu grande coração já se encontrava a postos, no sagrado serviço da Seara de Jesus, na face da Terra.

Bezerra de Menezes traz consigo a palma da harmonia, serenando todos os conflitos. Estabelece a prudência e a discrição entre os temperamentos mais veementes e combativos. A obra de Ismael, no que se referia às luzes sublimes do Consolador, estava definitivamente instalada na Pátria do Cruzeiro, apesar da precariedade do concurso dos homens. As divergências foram atenuadas, para que a tranquilidade voltasse a todos os centros de experimentação e de estudo. Os operários espalhavam-se pelo Rio, cada qual com a sua ferramenta, dentro do grande plano da unificação e da paz, nos ambientes da doutrina, plano esse que eles conseguiram relativamente realizar, mais tarde, organizando o aparelho central de suas diretrizes, que se consolidaria com a Federação Espírita Brasileira, onde seria localizada a sede diretora, no plano tangível, dos trabalhos da obra de Ismael no Brasil.

A REGÊNCIA E

O SEGUNDO REINADO

Ninguém, no Brasil, poderia supor que D. Pedro I abandonasse o país precipitadamente, como fez a 7 de abril de 1831. As forças conservadoras desejavam somente que ele regenerasse o seu ambiente, afastando-se de determinadas influências políticas. O resultado da inesperada abdicação foi a desordem, que se propagou a todos os recantos, provocando descontentamentos e sedições. Alguns políticos, no entanto, obedecendo a feliz inspiração do mundo invisível, organizaram uma regência que se incumbiu de manter a intangibilidade da ordem e das instituições. Essa regência interina, com imensos sacrifícios, iniciou o seu trabalho de pacificação na Bahia, em Minas e em Pernambuco, onde inúmeros portugueses eram assassinados, sob o pretexto de antigas desforras dos movimentos nativistas. Os distúrbios militares proliferavam em toda parte, exigindo a mais alta cota de sacrifícios e dedicações dos verdadeiros patriotas.

O exército, desde os acontecimentos de 7 de abril, caracterizava as suas atitudes pela revolta e pela indisciplina. O Norte do país vivia sob o regime do sangue e da morte. O povo de Pernambuco, humilhado pelas incursões da soldadesca amotinada, que lhe feriam os brios e as tradições, veio a campo, travando-se os mais fortes combates, em que pereceram, ou foram presos, muitas centenas de indisciplinados. Esses protestos e esses exemplos, todavia, não conseguiram eliminar a luta persistente e pavorosa. A guerra civil continuou, anos a fio, à sombra das matas, estendendo-se ao Pará com o seu rastilho de miséria e de sangue. Muitos governadores foram barbaramente trucidados pela caravana sinistra da confusão e da desordem. Jamais, a Pátria do Evangelho atravessara tão perigosa situação, sob o ponto de vista social e político. O partidarismo envenenava todos os ambientes com a vasa de suas paixões desenfreadas e, não fossem os mananciais do pensamento e da economia, fixados por Ismael nas regiões do Rio de Janeiro, de São Paulo e Minas, que asseguraram a própria estabilidade nacional, talvez não pudesse o Brasil resistir ao elemento embrutecedor, que suprimiria para sempre a sua unidade territorial. Depois de quatro anos de experimentações e lutas incessantes, a Regência é entregue a um dos homens mais enérgicos e prudentes da época, o eclesiástico Diogo Antônio Feijó, que iniciou a sua obra de honestidade e de civismo, sob a direção das falanges esclarecidas do Infinito. O grande paulista, porém, não conseguiu permanecer muito tempo à frente do governo. Em 1835 rebentava o movimento republicano do Rio Grande do Sul, chefiado por Bento Gonçalves, que se propunha organizar, naquela província, uma república separada do país. Esse movimento separatista iria consumir grande coeficiente das energias nacionais, porquanto só terminaria mais tarde sob a ação pacificadora do segundo reinado.

Em 1836 funda-se o Partido Conservador, com a aliança dos liberais e dos restauradores, caminhando a nação para o parlamentarismo. Feijó, porém, não se resignou com as providências levadas a efeito. A seu ver, não era possível governar eficientemente, dentro de um regime que se lhe afigurava de excessiva liberdade.

Renunciou nobremente ao cargo, chamando ao poder Araújo Lima, que era nesse tempo a autoridade suprema das forças oposicionistas. Então, a imprensa brasileira já não contava com a palavra de concórdia e conciliação de Evaristo da Veiga, que, depois de cumprir sua tarefa no país do Cruzeiro, regressara à pátria universal, incorporando-se às hostes esclarecidas do Infinito. A imprensa, hoje considerada como o sexto sentido dos povos e que, naqueles tempos, mal ensaiava os primeiros passos no Brasil, não podia, portanto, ser o órgão de esclarecimento geral da nação e a luta prosseguiu, ensanguentando o país, ao longo de todas as suas fronteiras. A fusão dos objetivos de liberais e conservadores constituiu a base da opinião livre, que embelezou o regime parlamentar no segundo reinado, estruturando-se a Câmara sob o modelo das praxes e dos costumes ingleses.

Percebendo, contudo, a exaltação dos espíritos em geral, os liberais solicitaram, em 1840, a declaração da maioridade do Imperador, que, na época, contava quinze anos incompletos. Semelhante acontecimento representava um golpe nos dispositivos constitucionais; mas, todos os políticos reconheciam no jovem imperante a mais elevada madureza de raciocínio e as qualidades que lhe exornavam o caráter. Uma comissão de homens influentes procura-o no paço imperial, obtendo o seu imediato assentimento. Dentro de poucos dias, foi D. Pedro II declarado maior, por entre as mais sãs esperanças do país e sob a confiança dos mentores do Alto, os quais seguiriam de perto a sua trajetória no trono.

A Regência ficava assinalada no tempo, como uma das mais belas escolas de honradez e de energia do povo brasileiro. Vivendo numa atmosfera de franca antipatia popular, pelas medidas de repressão que lhe cumpria executar; flutuando, como instrumento de conciliação, entre as marés bravias do separatismo no Sul, os vagalhões impetuosos da opinião partidária nas cidades centrais e as ondas tumultuarias das lutas ao Norte, todos aqueles homens que passaram pela Regência foram compelidos aos mais elevados atos de renúncia pelo bem coletivo, praticando com isso verdadeiro heroísmo, a fim de que se conservasse intacto, para as gerações do futuro, o patrimônio territorial e a escola das instituições, na objetivação luminosa da civilização do Evangelho, sob a luz cariciosa do Cruzeiro.

No ano de 1841, foi coroado o jovem imperador.

Não obstante a sua condição de adolescente, D. Pedro II, assistido pelas numerosas legiões do bem, que o rodeavam no plano invisível, tomava o cetro e a coroa consciente da responsabilidade gravíssima que lhe pesava sobre os ombros. A sua primeira preocupação administrativa foi pacificar o ambiente intoxicado de sedições e rebeldias. Prestigiando Caxias, consegue levantar a bandeira branca da paz nas Províncias de São Paulo e Minas, após os desfechos de Venda Grande e de Santa Luzia. Daí a algum tempo, com a sua política de moderação e tolerância, consegue estabelecer a tranquilidade geral em todo o Rio Grande do Sul, com a anistia plena e com o respeito às honras militares de todos os chefes da insurreição.

Depois dos esgotamentos a que o país inteiro fora conduzido pela ação corrosiva dos processos revolucionários, o Brasil ia regenerar suas forças orgânicas dentro de um largo período de paz, no qual as falanges esclarecidas de Ismael, inspirando a generosa autoridade do Imperador, argamassariam as bases do pensamento republicano, sobre as ideias de fraternidade e liberdade, a caminho das grandes realizações do porvir.

A GUERRA DO PARAGUAI

O segundo reinado, depois das angustiosas expectativas do período revolucionário, atravessava uma época de paz, em que se consolidavam as suas conquistas no terreno da ordem e da liberdade.

D. Pedro II, à medida que ia ampliando o patrimônio das suas experiências em contato com a vida e com os homens, amadurecia, cada vez mais, as belas qualidades do seu coração e da sua inteligência. Suas virtudes morais granjearam para a sua personalidade mais que a simpatia popular, pois o generoso imperador, de cuja dotação se beneficiavam tantos pobres e se educavam inúmeros estudiosos sem recursos, vivia aureolado pela veneração carinhosa das multidões. Dado à arte e à filosofia, sua notoriedade, nesse sentido, alcançou os próprios ambientes da cultura europeia, onde seu nome se impunha à admiração de todos os pensadores do século.

No problema constitucional, todavia, o imperador muitas vezes se abstraía dos textos legais para consultar os interesses gerais da nação, norteando-se muito mais pela imprensa que pela opinião pessoal dos seus ministros, o que desgostava profundamente os políticos da época, que encaravam essas atitudes como impertinências do monarca republicano da América, afigurando-se-lhes que ele se deixava atrair pelas resoluções ilegais. A verdade, contudo, é que o Brasil nunca atravessou um período de tamanha liberdade de opinião. Somente as nacionalidades de origem saxônia gozavam, a esse tempo, no planeta, da mesma independência e das mesmas liberdades públicas. Numerosas conquistas, nesse particular, se consolidaram sob a administração do imperador generoso e liberalíssimo. Em 1850 iniciava-se a plena supressão do tráfico negro, realizando-se a abolição, por etapas altamente significativas. Em 1843, Dom Pedro II desposara D. Teresa Cristina Maria, princesa das Duas Sicílias, que viria partilhar com ele, no sagrado instituto da família, da mesma abnegação e amor pelo bem do Brasil.

No mundo invisível, as falanges de Ismael não se descuravam da Pátria do Evangelho, enviando para a administração do segundo reinado os elevados Espíritos que seriam colaboradores do grande imperador na solução dos relevantes problemas da abolição, da economia e da liberdade. Foi assim que, naquela época de organização da pátria, apareceram homens e artistas extraordinários, como Rio Branco e Mauá, Castro Alves e Pedro Américo, que vinham com elevada missão ideológica, nos quadros da evolução política e social da Pátria do Cruzeiro.

O homem, porém, terá de constituir o patrimônio do seu progresso e iluminar o caminho da sua redenção à custa dos próprios esforços e sacrifícios, na senda pedregosa da experiência individual. Ora, em meio dessas lutas, o poder moderador da Coroa não conseguiu eliminar certo fundo de vaidade, que se foi estratificando na alma nacional, fazendo-lhe sentir a sua supremacia sobre as demais nações americanas do Sul. Dentro dessas ideias perigosas da vaidade coletiva, sentia-se o Brasil, erradamente, com o direito de interferir nos negócios dos Estados vizinhos, em benefício dos nossos interesses. É verdade que os países de colonização espanhola sempre tratavam o Brasil com mal disfarçada hostilidade, desejando reviver no Novo Mundo os antagonismos raciais da velha península; não competia, porém, à política brasileira exorbitar das suas funções, no intuito de assumir a direção da casa dos seus vizinhos.

De 1849 a 1852, o Brasil interferiu nas questões da Argentina e do Uruguai, contra a influência de Rosas e Oribe. O caudilho Ortiz de Rosas trazia a civilização platina sob um regime de crueldade e tirania; diversas vezes provocara o Brasil com o seu ânimo despótico, que chegou a fazer no Prata mais de vinte mil vítimas e, irrefletidamente, o Império prestigiou a Urquiza, outro caudilho, que governava Entre-Rios, a fim de eliminar o tirano. Pela influência dos seus militares mais dignos, as tropas brasileiras depuseram Oribe e no combate de Monte Caseros destruíram para sempre a influência do déspota, que humilhava Buenos Aires. Enquanto as bandeiras do Brasil regressam triunfantes com o Conde de Porto Alegre e o povo festeja a vitória das suas armas, os países da América do Sul olham desconfiadamente para a supremacia arrogante da política brasileira, no propósito de se colocarem a salvo das suas indébitas intervenções.

Após uma das festas que comemoravam os acontecimentos, D. Pedro II se retira silenciosamente para o recanto do seu oratório particular. Com o espírito em prece, contempla o Crucificado, cuja imagem parece fitá-lo cheia de piedade e doçura. Nas asas brandas do sono, o grande imperador é então conduzido a uma esfera de beleza esplêndida e inenarrável. Parece-lhe conhecer as disposições particulares daquele sítio de doces encantamentos. Aos seus olhos atônitos surge, então, o Divino Mestre, que lhe fala como nos maravilhosos dias da ressurreição, após os martírios indizíveis do Calvário, assinalando as suas palavras com sublime brandura:

— Pedro, guarda a tua espada na bainha, pois quem com ferro fere com ferro será ferido. A tua indecisão e a tua incerteza lançaram a Pátria do Evangelho numa sinistra aventura. As nações, como os indivíduos, têm a sua missão determinada e não é justo sejam coagidas no terreno das suas liberdades. O lamentável precedente da invasão efetuada pelo Brasil no Uruguai terá dolorosa repercussão para a sua vida política. Não descanses sobre os louros da vitória, porque o céu está cheio de nuvens e deves fortificar o coração para as tempestades amargas que hão de vir. Auxiliarei a tua ação, através dos mensageiros de Ismael, que se conservam vigilantes no desenvolvimento dos trabalhos sob a tua responsabilidade no país do Cruzeiro; mas, que as tristes provações gerais, em perspectiva, sejam guardadas como lição inesquecível e como roteiro de experiência proveitosa para as tuas atividades no trono.

D. Pedro II, depois daquele sono curto, na intimidade do oratório, sono preparado pelas forças invisíveis que o rodeavam, recolheu-se ao leito, cheio de angústia e de ansiosa expectativa.

Os anos não tardaram a confirmar as advertências do Senhor, que é a luz misericordiosa do mundo. Em 1865, quando o Brasil procurava interferir novamente nos negócios do Uruguai, impondo a sua vontade em Montevidéu, o Paraguai se sentiu ameaçado na sua segurança e se declarou contra o Brasil, ferindo-se então a guerra que durou cinco longos anos de martírios e derrames de sangue fraterno.

O Paraguai, como os outros países vizinhos, vivia reduzido à condição de feudo militar. A lei marcial imperava ali sistematicamente e Solano López não receou arrastar o seu povo àquela terrível aventura. Sua personalidade, como político, não era inferior à dos caudilhos do tempo e grandes valores poderiam ser incorporados às suas tradições de chefe, muitas vezes apresentado como tirano cheio de crueldades nefandas, se os frequentes desastres das armas paraguaias e os triunfos do Brasil não acabassem por desorientá-lo inteiramente, levando-o a queimar o último cartucho da sua amargurada desesperação e a perder a posição nobre que a História indubitavelmente lhe reservaria.

Aliando-se aos seus amigos da Argentina e do Uruguai, o Brasil afirmou, com a vitória, a sua soberania. O próprio imperador visitou o campo de operações bélicas em Uruguaiana, onde assistiu à rendição de seis mil inimigos. Os militares brasileiros ilustram o nome da sua terra em gloriosos feitos, que ficaram inesquecíveis. Mas, o país do Evangelho sempre foi infenso às glórias sanguinolentas. Estero Belaco, Curupaiti, Lomas Valentinas, Tuiuti, Curuzu, Itororó, Riachuelo e tantos outros teatros de luta e de triunfo, em verdade não passaram de etapas dolorosas de uma provação coletiva, que o povo brasileiro jamais poderá esquecer.

A realidade, entretanto, é que o Brasil retirou desse patrimônio de experiências os mais altos benefícios para a sua política externa e para a sua vida organizada, sem exigir um vintém dos proventos de suas vitórias. A diplomacia brasileira encarou de mais perto o arbítrio inviolável dos países vizinhos e uma nova tradição de respeito consolidou-se na administração da terra do Cruzeiro. Nunca mais o Brasil praticou uma intervenção indevida, trazendo em testemunho da nossa afirmativa a primorosa organização da nacionalidade argentina que, apesar da inferioridade da sua posição territorial, comparada com a extensão do Brasil, é hoje um dos países mais prósperos e um dos núcleos mais importantes da civilização americana em face do mundo.

O MOVIMENTO ABOLICIONISTA

O Brasil prosseguia na sua marcha evolutiva sob a carinhosa direção de D. Pedro II Estadistas notáveis pelo seu amor à causa pública assistiam o imperador em seus nobres afazeres, caracterizando as suas atitudes e atos com o mais sagrado interesse pelo bem coletivo.

Haviam terminado os movimentos bélicos da guerra com o Paraguai e o país voltava a respirar os ares da esperança. Então, nessa época e nos anos posteriores, todos os Espíritos cultos da pátria se levantaram com desassombro, para amparar o movimento abolicionista.

Os gênios tutelares do mundo espiritual inspiravam a todos os políticos e escritores e, se havia fazendeiros constituindo o mais sério sustentáculo da escravidão, dentro das classes conservadoras, inúmeros outros elementos existiam, como no Amazonas e no Ceará, que alforriavam os seus servidores, nos mais belos gestos de filantropia.

As falanges de Ismael contavam colaboradores decididos no movimento libertador, quais Castro Alves, Luiz Gama, Rio Branco e Patrocínio. A própria Princesa Isabel, cujas tradições de nobreza e bondade jamais serão esquecidas no coração do Brasil, viera ao mundo com a sua tarefa definida no trabalho abençoado da abolição. Os Espíritos em prova no cárcere da carne têm a sua bagagem de sofrimentos expiatórios e depuradores, mas têm igualmente a possibilidade necessária para o cumprimento de deveres meritórios, aos olhos misericordiosos do Altíssimo.

Todos os ânimos se inflamavam ao contato das grandes ideias de liberdade. Publicações e discursos, com a amplitude que a opinião da crítica conquistara nos tempos do Império, exortavam as classes conservadoras ao movimento de emancipação de todos os cativos. D. Pedro se reconfortava com essas doutrinações das massas, no seu liberalismo e na sua bondade de filósofo. Desejaria antecipar-se ao movimento ideológico, decretando a liberdade plena de todos os escravos; mas, os terríveis exemplos da guerra civil que ensanguentara os Estados Unidos da América do Norte durante longos anos, na campanha abolicionista, faziam-no recear a luta das multidões apaixonadas e delinquentes. Foi, pois, com especial agrado, que acompanhou a deliberação de sua filha, de sancionar, a 28 de setembro de 1871, a Lei do Ventre Livre que garantia no Brasil a extinção gradual do cativeiro, mediante processos pacíficos. Seu grande coração, no âmbito das suas impressões divinatórias, sentia que a abolição se faria nos derradeiros anos do seu governo.

Com efeito, a Lei do Ventre Livre não bastara aos espíritos exaltados no sentimento de amor pela abolição completa. Quase todas as energias intelectuais da nação se encontravam mobilizadas a serviço dos escravos sofredores. O ambiente geral era de perspectiva angustiosa e de profundas transições na ordem política. A ideia republicana se consolidava cada vez mais no espírito da nacionalidade inteira. O bondoso imperador nunca lhe cortara os voos prodigiosos no coração das massas populares; aliás, alimentava-os com os seus alevantados exemplos de democracia.

Nos espaços, Ismael e suas falanges procuravam orientar os movimentos republicanos e abolicionistas, com alta serenidade e esclarecida prudência, no propósito de evitar os abomináveis derramamentos de sangue por desvarios fratricidas. A esse tempo, já Ismael possuía a sua célula construtiva da obra do Evangelho no Brasil, célula que hoje projeta a sua luz de dentro da Federação Espírita Brasileira, e de onde, espiritualmente, junto dos seus companheiros desvelados, procurava unir os homens na grandiosa tarefa da evangelização.

Esperando o ensejo de se fixar na instituição venerável, que lhe guarda as tradições e continua o seu santificado labor ao lado das criaturas, a célula referida permanecia com Antônio Luiz Sayão e Bittencourt Sampaio, desde 24 de setembro de 1885, até que Bezerra de Menezes, com os seus grandes sacrifícios e indescritíveis devotamentos, eliminasse as mais sérias divergências e aplainasse obstáculos, utilizando as suas inesgotáveis reservas de paciência e de humildade e consolidando a Federação para que se formasse uma organização federativa. Enquanto, lá fora, muitos companheiros da caravana espiritual se deixavam levar por inovações e experiências estranhas aos preceitos evangélicos, o Grupo Ismael esperava uma época de compreensão mais elevada e harmoniosa para o desdobramento de suas preciosas atividades. Todavia, nas lutas pesadas do mundo, Bezerra de Menezes era o impávido desbravador, no seu apostolado de preparação, fraternizando com todos os grupos para conduzi-los, suavemente, à sombra da bandeira do grande emissário de Jesus.

Ismael trazia então a sua atenção carinhosa voltada para a solução do problema abolicionista, que deveria resolver-se dentro da harmonia de todos os interesses e estreme do sangue das guerras civis. Confiando ao Senhor as suas expectativas, falou-lhe o Mestre: — Ismael, o sonho da liberdade de todos os cativos deverá concretizar-se agora, sem perda de tempo. Prepararás todos os corações, a fim de que as nuvens sanguinolentas não manchem o solo abençoado da região do Cruzeiro. Todos os emissários celestes deverão conjugar esforços nesse propósito e, em breve, teremos a emancipação de todos os que sofrem os duros trabalhos do cativeiro na terra bendita do Brasil.

O grande enviado redobrou suas atividades nos bastidores da política administrativa.

A estatística oficial de 1887 acusava a existência de mais de setecentos e vinte mil escravos em todo o país. O ambiente geral era de apreensão em todas as classes, ante a expectativa da promulgação da lei que extinguiria a escravidão para sempre, o que constituiria duro golpe na fortuna pública do Brasil. Mas, Ismael articula do Alto os elementos necessários à grande vitória. O generoso imperador é afastado do trono, nos primeiros meses de 1888, sob a influência dos mentores invisíveis da pátria, voltando a Regência à Princesa Isabel, que já havia sancionado a lei benéfica de 1871. Sob a inspiração do grande mensageiro do Divino Mestre, a princesa imperial encarrega o Senador João Alfredo de organizar novo ministério, que veio a compor-se de Espíritos nobilíssimos do tempo. Os abolicionistas compreendem que lhes chegara a possibilidade maravilhosa e a 13 de maio de 1888 é apresentada à regente a proposta de lei para imediata extinção do cativeiro, lei que D. Isabel, cercada de entidades angélicas e misericordiosas, sanciona sem hesitar, com a nobre serenidade do seu coração de mulher.

Nesse dia inesquecível, toda uma onda de claridades compassivas descia dos céus sobre as vastidões do Norte e do Sul da Pátria do Evangelho. Ao Rio de Janeiro afluem multidões de seres invisíveis, que se associam às grandiosas solenidades da abolição. Junto do espírito magnânimo da princesa, permanece Ismael com a bênção da sua generosa e tocante alegria. Foi por isso que Patrocínio, intuitivamente, no arrebatamento do seu júbilo, se arrastou de joelhos até aos pés da princesa piedosa e cristã. Por toda parte, espalharam-se alegrias contagiosas e comunicativas esperanças. O marco divino da liberdade dos cativos erguia-se na estrada da civilização brasileira, sem a maré incendiaria da metralha e do sangue.

Os negros e os mestiços do Brasil sentiram no coração o prodigioso potencial de energias da sub-raça, com que realizariam gloriosos feitos de trabalho e de heroísmo, na formação de todos os patrimônios da Pátria do Evangelho, olhando o caminho infinito do futuro. E, nessa noite, enquanto se entoavam hosanas de amor no Grupo Ismael e a princesa imperial sentia, na sua grande alma, as comoções mais ternas e mais doces, os pobres e os sofredores, recebendo a generosa dádiva do céu, iam reunir-se, nas asas cariciosas do sono, aos seus companheiros da imensidade, levando às Alturas o preito do seu reconhecimento a Jesus que, com a sua misericórdia infinita, lhes outorgara a carta de alforria, incorporando-se, para sempre, ao organismo social da pátria generosa dos seus sublimes ensinamentos.

A REPÚBLICA

Se a monarquia, embora todas as liberdades públicas que desenvolvera, espíritos avançados do Brasil a consideravam como a derradeira recordação da influência portuguesa, a República era considerada pela comunidade brasileira como a fórmula de governo compatível com a evolução do país e com a posição cultural do seu povo.

Essa ideia, genuinamente nativista, alcançara todas as inteligências, e a garantia do seu êxito se patenteara aos olhos de todos, após a Lei de 13 de maio, que ferira os interesses particulares de todas as classes conservadoras. Por essa razão os anos de 1888 e 1889 assinalaram os derradeiros tempos do único império das plagas americanas. Por toda parte e em todos os ambientes civis e militares acendiam-se os fachos do idealismo republicano, sob o palio da generosidade da Coroa.

No mundo invisível, reúne o Senhor as falanges benditas de Ismael e dos seus dedicados colaboradores e, enquanto as luzes tênues douravam o éter da imensidade, que se enfeitava de luminosas flores dos jardins do Infinito, falou a sua voz, como no crepúsculo admirável do Sermão da Montanha:

— “Irmãos, a Pátria do Evangelho atinge agora a sua maioridade coletiva. Profundas transições assinalarão a sua existência social e política. Uma nação que alcança a sua maioridade é a responsável legítima e direta por todos os atos comuns que pratica, no concerto dos povos do planeta. Necessário é separemos agora o organismo político do Brasil dos alvitres permanentes e constantes do mundo espiritual, para que todos os seus empreendimentos sejam devidamente valorizados. À maneira dos indivíduos, as pátrias têm, igualmente, direito a mais ampla liberdade de ação, uma vez atingido o plano dos seus raciocínios próprios. Acompanharemos, indiretamente, o Brasil, onde as sementes do Evangelho foram jorradas a mancheias, a fim de que o seu povo, generoso e fraternal, possa inscrever mais tarde a sua gloriosa missão espiritual nas mais belas páginas da civilização, em o livro de ouro dos progressos do mundo. Seus votos evolutivos, no que se refere às instituições sociais e políticas, serão carinhosamente observados por nós, de maneira a não serem obstadas as deliberações das suas autoridades administrativas no plano tangível da matéria terrestre; mas, como o reino do amor integral e da verdade pura ainda não é do orbe terreno, urge reformemos também as nossas atividades, concentrando-as na obra espiritual da evangelização de todos os espíritos localizados na região do Cruzeiro.

“Consolidareis o templo de Ismael, para que do seu núcleo possam expandir-se, por toda a extensão territorial da pátria brasileira, as claridades consoladoras da minha doutrina de redenção, de piedade e de misericórdia. Ensinareis aos meus novos discípulos encarnados a paciência e a serenidade, a humildade e o amor, a paz e a resignação, para que a luta seja vencida pela luz e pela verdade. Abrireis para a caravana do Evangelho, que marcha ao longo dos caminhos da sombra, a estrada da revolução interior, cujo objetivo único é a reforma de cada um, sob o fardo das provas, sem o recurso à indisciplina perante as leis estatuídas no mundo e sem o auxílio das armas homicidas.

“A Nova Revelação não é dada para que se opere a conversão compulsória de César às coisas de Deus, mas para que César esclareça o seu próprio coração, edificando-se no exemplo dos seus subordinados e tornando divina a sua imperfeita obra terrestre. Conduzireis, portanto, aos meus discípulos encarnados o estandarte da fé e da caridade, com o programa da renúncia e do desprendimento dos bens humanos, dentro dos sagrados imperativos da sua grandiosa missão.

“A proclamação da República Brasileira, como índice da maioridade coletiva da nação do Evangelho, há de fazer-se sem derramamento de sangue, como se operaram todos os grandes acontecimentos que afirmaram, perante o mundo, a Pátria do Cruzeiro, os quais se desenvolveram sob a nossa imediata atenção. Doravante, o Brasil político será entregue à sua responsabilidade própria. As transições se realizarão acima de todos os cultos religiosos, para que todas as conquistas se verifiquem fora de qualquer eiva de sectarismo. Os discípulos do Evangelho sofrerão, certamente, os efeitos dolorosos da borrasca em perspectiva; estaremos, porém, a postos, sustentando o Brasil espiritual, que, de ora em diante, passará a ser o nosso precioso patrimônio. Articularemos todas as possibilidades e energias em favor do Evangelho, no país inteiro, e a obra de Ismael derramará as bênçãos fulgurantes do céu sobre todos os corações, na estrada de todos os felizes e de todos os tristes da Terra.

“Acordemos a alma brasileira para a luminosa alvorada desse novo dia!

“No capítulo das instituições humanas, os esforços que despendemos até agora estão mais ou menos encerrados; compete-nos, todavia, em todos os dias do porvir, conservar e desenvolver a melhor parte, espiritualizando essas mesmas instituições, dentro das grandes finalidades de todos os labores das esferas elevadas do plano espiritual.

“Bem-aventurados todos os trabalhadores da seara divina da verdade e do amor, pois deles é o reino imortal da suprema ventura! ”

As falanges do Infinito, sob as bondosas determinações do Divino Mestre preparam, então, o último acontecimento político, que se verificaria com o seu amparo direto e que constituiria a proclamação da República. Todas as grandes cidades do país, com o Rio de Janeiro na vanguarda, se entregam à propaganda aberta das ideias republicanas. Os Espíritos mais eminentes do país preparam o grande acontecimento. Entre os seus organizadores, preponderam os elementos positivistas, para que as novas instituições não pecassem pelos excessos da paixão sanguinolenta dos sectarismos religiosos, e, a 15 de Novembro de 1889, com a bandeira do novo regime nas mãos de Benjamin Constant, Quintino Bocaiúva, Lopes Trovão, Serzedelo Corrêa, Rui Barbosa e toda uma plêiade de inteligências cultas e vigorosas, o Marechal Deodoro da Fonseca proclama, inopinadamente, no Rio de Janeiro, a República dos Estados Unidos do Brasil.

O grande imperador recebe a notícia com amarga surpresa. Deodoro, que era íntimo do seu coração e da sua casa, voltava-se agora contra as suas mãos generosas e paternais. Todos os ambientes monárquicos pesam esse ato de ingratidão clamorosa; mas, a verdade é que todos os republicanos eram amigos íntimos de D. Pedro; quem não lhe devia, no Brasil, o patrimônio de cultura e liberdade?

Os instantes de surpresa, contudo, foram rápidos. O nobre monarca repeliu todas as sugestões que lhe eram oferecidas pelos Espíritos apaixonados da Coroa, no sentido da reação. Confortado pelas luzes do Alto, que o não abandonaram em toda a vida, D. Pedro II não permitiu que se derramasse uma gota de sangue brasileiro, no imprevisto acontecimento. Preparou, rapidamente, sua retirada com a família imperial para a Europa, obedecendo às imposições dos revolucionários e, com lágrimas nos olhos, rejeita as elevadas somas de dinheiro que o Tesouro Nacional lhe oferece, para aceitar somente um travesseiro de terra do Brasil, a fim de que o amor da Pátria do Cruzeiro lhe santificasse a morte, no seu exílio de saudade e pranto.

Jesus, porém, consoante à sua promessa, lhe santificaria os cabelos brancos. Uma tranquila paciência caracterizou o seu inenarrável martírio moral.

O grande imperador retirou-se do Brasil deixando, não um império perecível e transitório do mundo, mas uma família ilimitada, que hoje atinge a soma de quase cinquenta milhões de almas.

Visitado pelo Visconde de Ouro Preto, no mesmo dia em que este chegava à capital portuguesa, o imperador lhe declara com serena humildade:

— Em suma, estou satisfeito...

E, referindo-se à sua deposição, acrescenta:

— Fiz a minha carta de alforria. Agora posso ir aonde quiser.

Naqueles amargurados dias, o generoso velhinho se encontrava às vésperas do seu regresso à pátria da luz e da imortalidade.

No Brasil, iam ser continuadas as suas tradições de amor e de liberdade, pelas forças militares, que, a seu turno, as entregariam aos grandes presidentes paulistas. Nunca a sua figura de chefe da família brasileira foi esquecida no altar das lembranças da Pátria do Evangelho, e não foi só o Brasil quem lhe reconheceu a inesquecível superioridade espiritual.

Conta-nos Mucio Teixeira, então Cônsul-Geral do Brasil em Caracas, que ao chegarem até lá as notícias dos acontecimentos de 15 de novembro, desenrolados no Rio de Janeiro, ao entrar no Palácio do Governo da República vizinha, ao qual, logo depois, solicitou o seu exequatur (Em sentido literal: execute-se.), o Dr. Rojas Paul, eminente político sul-americano, encaminhou-se ao seu encontro, exclamando:

— Senhor Cônsul-Geral do Brasil, peça a Deus que a sua pátria, que foi governada durante meio século por um sábio, não seja doravante levada pelo tacão do primeiro ditador que se lhe apresente.

E, abraçando-o, sensibilizado, concluiu:

— Acabou-se a única República que existia na América: o Império do Brasil.

A FEDERAÇÃO ESPÍRITA BRASILEIRA

Logo após a proclamação da República, Ismael volta a concentrar seu esforço na consolidação da sua obra terrestre. Seu primeiro cuidado foi examinar todos os elementos, procurando reafirmar, no seio dos ambientes espiritistas, a necessidade da obra evangélica, no sentido de que ressurgisse a doutrina de tolerância e de amor, de piedade e perdão, do Crucificado. Todo um campo de trabalho se desdobrava aos olhos de suas abnegadas falanges, aguardando o esforço dos arroteadores para a esperançosa semeadura. Seu coração angélico e misericordioso, sob a égide do Divino Mestre, já havia distribuído as noções evangélicas a todos os Espíritos sedentos das claridades do Consolador e a Doutrina dos Espíritos, no Brasil, sob a sua influência, se tocava da luz divina da caridade e da crença, pressagiando as mais sublimes edificações morais.

O abnegado mensageiro do Mestre, começando o movimento de organização nos primeiros dias de 1889, preparara o ambiente necessário para que todos os companheiros do Rio ouvissem a palavra póstuma de Allan Kardec, que, através do médium Frederico Júnior, forneceu as suas instruções aos espiritistas da capital brasileira, exortando-os ao estudo, à caridade e à unificação.

Bezerra de Menezes, que já militava ativamente nos labores doutrinários, recebeu a palavra do Alto com a alma fremente de júbilo e de esperança, e considerou, no campo de suas meditações e de suas preces, a necessidade de se reunir a família espiritista brasileira sob o lábaro bendito de Ismael, a fim de que o mundo conhecesse o Cristianismo restaurado. Existiam, no Rio, sociedades prestigiosas, mas cada qual com o seu programa particular, descentralizando a ação renovadora que as instruções do plano invisível traziam, logicamente, a todos os corações que militavam no sagrado labor da doutrina.

A Federação Espírita Brasileira, fundada desde o Ano-Bom de 1884, por Elias da Silva, Manuel Fernandes Figueira, Pinheiro Guedes e outros companheiros do ideal espiritualista, no Rio de Janeiro, esperava, sob a proteção de Ismael, a época propícia para desempenhar a sua elevada tarefa junto de todos os grupos do país, no sentido de federá-los, coordenando-lhes as atividades dentro das mais sadias expressões da doutrina. Bezerra de Menezes, desde 1887, iniciara uma série de trabalhos magistrais pelas colunas de “O Paiz”, oferecendo a todos as mais belas e produtivas sementes do Cristianismo. A palavra de Max, pseudônimo que ele havia adotado, inundava de esperança e de fé o coração dos seus leitores, iniciando-se, desse modo, uma das mais prodigiosas sementeiras do Espiritismo no Brasil. Desde 1885, igualmente funcionava o Grupo Ismael, com Sayão e Bittencourt Sampaio, célula de evangelização, cujas claridades divinas tocariam todos os corações.

Em breve, os mensageiros do Senhor conseguiram agremiar a caravana dispersa. No templo de Ismael iam reunir-se, enfim, os operários da grande oficina do Evangelho: Bezerra, Sayão, Bittencourt, Frederico, Filgueiras, Richard, Albano do Couto, Zeferino Campos e outros elementos da vanguarda cristã.

O tempo, todavia, era de transição e de incertezas. A República, com as suas ideologias novas, filhas do positivismo mais avançado, criara os mais sérios embaraços ao desenvolvimento da doutrina. O novo Código Penal incluíra o Espiritismo nos seus textos e o ambiente era obscuro, sentindo todas as correntes espiritistas a necessidade imediata de união para a defesa comum e, enquanto se balbuciavam protestos a medo, a Federação, com a sua prudência e a sua serenidade, iniciou a defesa pacífica da doutrina, dirigindo uma “Carta Aberta” ao Ministro da Justiça do Governo Provisório, em que esclarecia devidamente a situação. Os mensageiros invisíveis cuidaram, então, de organizar os novos planos de unificação de todos os elementos.

Atendendo aos seus rogos reiterados, a palavra do Mestre se faz ouvir, esclarecendo o seu emissário dileto:

— Ismael — disse-lhe o Senhor —, concentraremos agora todos os nossos esforços a fim de que se unifiquem os meus discípulos encarnados, para a organização da obra impessoal e comum que iniciaste na Terra. Na pátria dos meus ensinamentos, o Espiritismo será o Cristianismo revivido na sua primitiva pureza, e faz-se mister coordenar todos os elementos da causa generosa da Verdade e da Luz, para os triunfos do Evangelho. Procurarás, entre todas as agremiações da doutrina, aquela que possa reunir no seu seio todos os agrupamentos; colocarás aí a tua célula, a fim de que todas as mentalidades postas na direção dos trabalhos evangélicos estejam afinadas pelo diapasão da tua serenidade e do teu devotamento à minha seara. E como as atividades humanas constituem, em todos os tempos, um oceano de inquietudes, a caridade pura deverá ser a âncora da tua obra, ligada para sempre ao fundo dos corações, no mar imenso das instabilidades humanas. A caridade valerá mais que todas as ciências e filosofias, no transcurso das eras, e será com ela que conseguirás consolidar a tua Casa e a tua obra.

O abnegado mensageiro do Alto regressou ao trabalho, cheio de coragem e segurança no seu grandioso apostolado. As energias dissolventes das trevas do mundo invisível lutaram contra ele e contra o Evangelho. Forças terríveis de separatividade pesaram sobre os seus esforços no ano de 1893, quando o próprio Bezerra, incansável e abnegado missionário, foi obrigado a paralisar os seus escritos nas páginas de “O Paiz”, depois de quase sete anos de doutrinação ininterrupta e brilhante, num apelo a Jesus, com as mais comovedoras lágrimas da sua crença e do seu sacrifício.

Ismael, porém, não abandonou os seus devotados colaboradores; reuniu os companheiros mais afins com as suas ideias generosas e reorganizou a sua obra. As ordens e observações de Jesus foram por ele integralmente cumpridas. Escolheu as reservas preciosas da Federação e assentou, dentro dela, a sua tenda de trabalho espiritual. Consolidou a Assistência aos Necessitados, fundada em 1890, que radicou a sua obra no coração da coletividade carioca, e a caridade foi e será sempre o inabalável esteio da venerável instituição que hoje se ergue na Avenida Passos (Em 1967, a FEB transferiu sua sede administrativa para Brasília, ficando o endereço da Avenida Passos, número 30, como sede histórica.) Com essas providências, levadas a efeito numa das noites memoráveis de julho de 1895, Bezerra de Menezes assumia a sua posição de diretor de todos os trabalhos de Ismael no Brasil, coordenando os elementos para a evangelização e deixando a Federação como o porto luminoso de todas as esperanças, entre o Grupo Ismael, que constitui o seu santuário de ligação com os trabalhadores do Infinito, e a Assistência aos Necessitados, que a vincula, na Terra, a todos os corações infortunados e sofredores e representa, de fato, até hoje, a sua âncora de conservação no mesmo programa evangélico, no seio das ideologias novas e das perigosas ilusões do campo social e político.

Bezerra desprendeu-se do orbe, tendo consolidado a sua missão para que a obra de Ismael pudesse ser livremente cultivada no século XX. E essa obra prossegue sempre. Podem as inquietações da Terra separar, muitas vezes, os trabalhadores humanos no seu terreno de ação; mas, a sociedade benemérita, onde se ergue a flâmula luminosa — “Deus, Cristo e Caridade” — permanece no seu porto de paz e de esclarecimento. A sua organização federativa é o programa ideal da doutrina no Brasil, quando chegar a ser integralmente compreendido por todas as agremiações de estudos evangélicos, no país.

A realidade é que, considerada às vezes como excessivamente conservadora, pela inquietação do século, a respeitável e antiga instituição é, até hoje, a depositária e diretora de todas as atividades evangélicas da Pátria do Cruzeiro. Todos os grupos doutrinários, ainda os que se lhe conservam infensos, ou indiferentes, estão ligados a ela por laços indissolúveis no mundo espiritual. Todos os espiritistas do país se lhe reúnem pelas mais sacrossantas afinidades sentimentais na obra comum, e os seus ascendentes têm ligações no plano invisível com as mais obscuras tendas de caridade, onde entidades humildes, de antigos africanos, procuram fazer o bem aos seus semelhantes.

As forças das sombras alimentam, muitas vezes, o personalismo e a vaidade dos homens, mesmo daqueles que se encontram reunidos nas tarefas mais sagradas; mas, a direção suprema do trabalho do Evangelho se processa no Alto e a Federação Espírita Brasileira, dentro da sua organização baseada nos ensinamentos do Mestre, está sempre segura do seu labor junto das almas e dos corações, cultivando os mais belos frutos de espiritualidade na seara de Jesus, consciente da sua responsabilidade e da sua elevada missão.

O ESPIRITISMO NO BRASIL

Consolidadas as primeiras construções basilares de Ismael na Pátria do Cruzeiro, o Espiritismo derramou seus frutos sazonados e doces no coração da coletividade brasileira. Em seu seio, nas grandes sociedades e nos lugarejos obscuros, a doutrina consoladora apresentou sempre as mais belas expressões de caridade e de fraternidade.

Jesus, com as suas mãos meigas e misericordiosas, fez reviver no país abençoado dos seus ensinamentos as curas maravilhosas dos tempos apostólicos. Abnegados médiuns curadores, desde os primórdios da organização da obra de Ismael nas terras do Brasil, espalharam, como instrumentos da verdade, as mais fartas colheitas de bênçãos do céu, iluminando todos os corações. Curando os enfermos, os novos discípulos do Senhor restabeleciam o espírito geral para a grande tarefa; vestindo os andrajosos, tocavam as almas de uma nova roupagem de esperança.

Enquanto na Europa a ideia espiritualista era somente objeto de observações e pesquisas nos laboratórios, ou de grandes discussões estéreis no terreno da filosofia, não obstante os primores morais da codificação kardequiana, o Espiritismo penetrava o Brasil com todas as suas características de Cristianismo redivivo, levantando as almas para uma nova alvorada de fé. Aí, todas as suas instituições se alicerçavam no amor e na caridade. As próprias agremiações científicas que, de vez em quando, aparecem para cultivá-lo, na sua rotulagem de Metapsíquica, são absorvidas no programa cristão, sob a orientação invisível e indireta dos emissários do Senhor. Todas as possibilidades e energias são por Ismael aproveitadas para o bem comum e para a tarefa de todos os trabalhadores, e é por isso que todos os grupos sinceros do Espiritismo, no país, têm as suas águas fluidificadas, a terapêutica do magnetismo espiritual, os elementos da homeopatia, a cura das obsessões, os auxílios gratuitos no serviço de assistência aos necessitados, dentro do mais alto espírito evangélico, dando-se de graça aquilo que se recebeu como esmola do céu. Não é raro vermos caboclos, que engrolam a gramática nas suas confortadoras doutrinações, mas que conhecem o segredo místico de consolar as almas, aliviando os aflitos e os infelizes, ou, então, médiuns da mais obscura condição social, e nas mais humildes profissões, a se constituírem instrumentos admiráveis nas mãos piedosas dos mensageiros do Senhor.

A Europa recebeu a Nova Revelação sem conseguir aclimá-la no seu coração atormentado pelas necessidades mais duras. As próprias sessões mediúnicas são ali geralmente remuneradas, como se esses fenômenos se processassem tão somente pelas disposições estipuladas num contrato de representações, enquanto que, no Brasil, todos os espiritistas sinceros repelem o comércio amoedado, nas suas sagradas relações com o plano invisível, conservando as intenções mais puras no hostiário da sua fé.

A obra de Ismael prossegue em sua marcha através de todos os centros de estudo e de cultura do país. Todavia, temos de considerar que um trabalho dessa natureza, pelo seu caráter grandioso e sublime, não poderia desenvolver-se sem os ataques inconscientes das forças reacionárias do próprio mundo invisível, e, como a Terra não é um paraíso e nem os homens são anjos, as entidades perturbadoras se aproveitam dos elementos mais acessíveis da natureza humana, para fomentar a discórdia, o demasiado individualismo, a vaidade e a ambição, desunindo as fileiras que, acima de tudo, deveriam manter-se coesas para a grande tarefa da educação dos Espíritos, dentro do amor e da humildade. A essas forças, que tentam a dissolução dos melhores esforços de Ismael e de suas valorosas falanges do Infinito, deve-se o fenômeno das excessivas edificações particularistas do Espiritismo no Brasil, particularismos que descentralizam o grande labor da evangelização. Mas, examinando semelhante anomalia, somos forçados a reconhecer que Ismael vence sempre. Construídas essas obras, que se levantam com pronunciado sabor pessoal, o grande mensageiro do Divino Mestre as assinala imediatamente com o selo divino da caridade, que, de fato, é o estandarte maravilhoso a reunir todos os ambientes do Espiritismo no país, até que todas as forças da doutrina, pela experiência própria e pela educação, possam constituir uma frente única de espiritualidade, acima de todas as controvérsias.

É para essa grande obra de unificação que todos os emissários cooperam no plano espiritual, objetivando a vitória de Ismael nos corações. E os discípulos encarnados bem poderiam atenuar o vigor das dissensões esterilizadoras, para se unirem na tarefa impessoal e comum, apressando a marcha redentora. Nas suas fileiras respeitáveis, só a desunião é o grande inimigo, porque, com referência ao Catolicismo, os padres romanos, com exceção dos padres cristãos, se conservam onde sempre estiveram, isto é, no banquete dos poderes temporais, incensando os príncipes do mundo e tentando inutilizar a verdadeira obra cristã. Os espiritistas bem sabem que se eles constituem sérios empecilhos à marcha da luz, todos os obstáculos serão, um dia, removidos para sempre, do caminho ascensional do progresso. Além disso, temos de considerar que a Igreja Católica se desviou da sua obra de salvação, por um determinismo histórico que a compeliu a colaborar com a política do mundo, em cujas teias perigosas a sua instituição ficou encarcerada e que, examinada a situação, não é possível desmontar-se a sua máquina de um dia para outro. Sabemos, porém, que a sua fase de renovação não está muito distante. Nas suas catedrais confortáveis e solitárias e nos seus conventos sombrios, novos inspirados da Úmbria virão fundar os refúgios amenos da piedade cristã.

Depreende-se, portanto, que a principal questão do espiritualismo é proclamar a necessidade da renovação interior, educando-se o pensamento do homem no Evangelho, para que o lar possa refletir os seus sublimados preceitos. Dentro dessa ação pacífica de educação das criaturas, aliada à prática genuína do bem, repousam as bases da obra de Ismael, cujo objetivo não é a reforma inopinada das instituições, impondo abalos à Natureza, que não dá saltos; é, sim, a regeneração e o levantamento moral dos homens, a fim de que essas mesmas instituições sejam espontaneamente renovadas para o progresso comum.

A tarefa é vagarosa, mas, de outra forma, seria a destruição e o esforço insensato. A obra da revolução espiritual, no Evangelho de Jesus, não se compadece com as agitações do século. Os que desejarem impor, no seu compreensível entusiasmo de crentes, os preceitos do Mestre às instituições estritamente humanas, talvez ainda não tenham ponderado que a obra cristã espera, há dois milênios, a compreensão do mundo.

Todos os que lutaram por ela de armas na mão e quantos pretenderam utilizar-se dos processos da força para a imposição dos seus ensinamentos, no transcurso dos séculos, tarde reconheceram a sua ilusão, redundando seus esforços no mais franco desvirtuamento das lições do Salvador, porque essas lições têm de começar no coração, para conseguirem melhorar e regenerar o planeta.

É dentro dessa serenidade, sob a luz da humildade e do amor, que os espiritistas do Brasil devem reunir-se, a caminho da vitória plena de Ismael em todos os corações. Está claro que a doutrina não poderá imitar as disciplinas e os compromissos rijos da instituição romana, porque, nas suas características liberais, o pensamento livre, para o estudo e para o exame, deve realizar uma das suas melhores conquistas e nem é possível dispensar, totalmente, â discussão no labor de aclaramento geral. A liberdade não exclui a fraternidade e a fraternidade sincera é o primeiro passo para a edificação comum.

Dentro, pois, do Brasil, a grande obra de Ismael tem a sua função relevante no organismo social da Pátria do Cruzeiro, vivificando a seara da educação espiritual. E não tenhamos dúvida. Superior às funções dos transitórios organismos políticos, é essa obra abençoada, de educação genuinamente cristã, o ascendente da nação do Evangelho e o elemento que preparará o seu povo para os tempos do porvir.

Com a República, atingiu o Brasil a sua maioridade coletiva e as falanges do Infinito, naturalmente, concentraram as suas possibilidades e esforços no desenvolvimento da obra de Ismael no país do Cruzeiro. Seus maiores eventos puramente políticos não deixaram, no entanto, de ser acompanhados pelos mensageiros do Bem, objetivando a tranquilidade comum e a evolução geral.

Todavia, com o grande feito de 15 de novembro de 1889, terminamos este escorço, à guisa de história. Outros, por certo, consultando as razões dos fatos relacionados no tempo, poderão apresentar trabalho mais pormenorizado e melhor, no domínio dos estudos transcendentes do psicólogo e do historiador, onde se emaranham as causas profundas dos menores acontecimentos, englobando as atividades de quantos, ainda encarnados, se encontram em evidência no país e são suscetíveis de apresentar, de futuro, mais amplos esclarecimentos.

Nosso objetivo, trazendo alguns apontamentos à história espiritual do Brasil, foi tão somente encarecer a excelência da sua missão no planeta, demonstrando, simultaneamente, que cada nação, como cada indivíduo, tem sua tarefa a desempenhar no concerto dos povos. Todas elas têm seus ascendentes no mundo invisível, de onde recebem a seiva espiritual necessária à sua formação e conservação. E um dos fins principais do nosso escorço foi examinar, aos olhos de todos, a necessidade da educação pessoal e coletiva, no desdobramento de todos os trabalhos do país. Porque, a realidade é que o Brasil, na sua situação especialíssima e com o seu patrimônio imenso de riquezas, não poderá insular-se do resto do mundo ou acastelar-se na sua posição de Pátria do Evangelho, embora a época seja de autarquias detestáveis, neste período de decadência e transição de todos os sistemas sociais.

O maior problema é o da educação nacional, para que os filhos das outras terras, necessários e indispensáveis ao progresso econômico da nação, não se sintam dispostos a reviver, no Brasil, as taras de suas antigas organizações e sim, absorvidos no círculo espiritual do país do Evangelho, possam integrar as suas fileiras de fraternidade e evolução.

Apesar da recente filosofia do “bastar-se a si mesmo”, nenhum país do mundo pode viver independente da comunidade internacional. Toda a grandeza material de um povo repousa na regularidade dos fenômenos da troca e todas as guerras, quase sempre, têm origem na desarmonia do comércio entre as nações. No Brasil, a chamada contribuição estrangeira é indispensável; e o único recurso, contra a incursão do elemento nocivo ou ameaçador da estabilidade das instituições brasileiras, é a educação ampla do povo, em cujos labores sagrados deveriam viver todos os programas do bom nacionalismo.

Se muitas escolas existem no Sul, onde somente se ensina o idioma alemão, em muitos casos é porque os professores do Brasil não se decidiram a enfrentar as surpresas da região, a fim de zelarem pelo patrimônio intelectual dos novos operários da pátria. Se algumas dezenas de agrônomos vieram diretamente de Tóquio para os riquíssimos vales do Amazonas, é que os agrônomos brasileiros não se animaram a trabalhar no sertão hostil, receosos do sacrifício. Entretanto, não faltariam Espíritos abnegados e corajosos, no seio do povo fraterno que floresce no coração geográfico do mundo, ansiosos por participarem da grande obra construtiva de organização cultural e econômica da terra em que se desenvolvem numa grande tarefa de amor, se os ambientes universitários, com as suas habilitações oficiais, não estivessem abertos somente à aristocracia do ouro. A palavra de um mestre custa uma fortuna, apenas suscetível de ser remunerada pelas famílias mais abastadas e mais favorecidas, e nem sempre nesses ambientes confortáveis se encontram as almas apaixonadas pela luta em prol do progresso comum.

Nesta época de confusão e amargura, quando, com as mais justas razões, se tem, por toda parte, a triste organização do homem econômico da filosofia marxista, que vem destruir todo o patrimônio de tradições dos que lutaram e sofreram no pretérito da humanidade, as medidas de repressão e de segurança devem ser tomadas a bem das coletividades e das instituições, a fim de que uma onda inconsciente de destruição e morticínio não elimine o altar de esperanças da pátria. Que o capitalismo, visando à própria tranquilidade coletiva, seja chamado pelas administrações ao debate, a incentivar com os seus largos recursos a campanha do livro, do saneamento e do trabalho, em favor da concórdia universal.

Não nos deteremos a falar, depois da República, de quantos se encontram ainda no cenáculo das atividades e dos feitos do país, porquanto semelhante ação de nossa parte constituiria uma intervenção indébita nas iniciativas e empreendimentos dos “vivos”. Jesus, que é a suprema personificação de toda a misericórdia e de toda a justiça, auxiliará a cada qual, no desdobramento dos seus esforços para glória da nacionalidade.

O Brasil está cheio de ideologias novas, refletindo a paisagem do século; cabe aos bons operários do Evangelho concentrar suas atividades no esclarecimento das almas e na educação dos Espíritos.

Todas as fórmulas humanas, dentro das concepções que exprimam, por mais alevantadas que se afigurem, são perecíveis e transitórias. A política sofrerá, no curso dos séculos, as alternativas do direito da força e da força do direito, até que o planeta possa atingir relativa perfeição social, com a cultura generalizada. A Ciência, como a Filosofia e as escolas sectárias, viverá entre dúvidas e vacilações, assentando seus feitos na areia instável das convenções humanas. Só o legítimo ideal cristão, reconhecendo que o reino de Deus ainda não é deste mundo, poderá, com a sua esperança e o seu exemplo, espiritualizar o ser humano, espalhando com os seus labores e sacrifícios as sementes produtivas na construção da sociedade do futuro.

Conhecedores dessa grande verdade, supliquemos a Jesus se digne derramar do orvalho de seu amor sobre os vermes da Terra. Que as falanges de Ismael possam, aliadas a quantos se desvelam pela sua obra divina, reunir o material disperso e que a Pátria do Evangelho mais ascenda e avulte no concerto dos povos, irradiando a paz e a fraternidade que alicerçam, indestrutivelmente, todas as tradições e todas as glórias do Brasil.

 

 

 

 

Espírito Humberto de Campos, que seria o falecido escritor brasileiro Humberto de Campos (1886-1934), é um dos autores associados às psicografias do médium brasileiro Francisco Cândido Xavier, através de várias obras publicadas ao longo dos anos, entre elas o famoso Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho.

Irmão X é o pseudônimo utilizado por este espírito em diversas crônicas e livros psicografados pelo mesmo médium.

O primeiro contato do Espírito do falecido Humberto de Campos com Francisco Cândido Xavier teria supostamente ocorrido três meses após o falecimento do primeiro, em março de 1935. Este encontro teria ocorrido durante o sono do corpo físico do então jovem médium, conforme declaração deste, quando o Espírito do escritor se destacou de uma multidão e se apresentou ao médium. Um pouco mais tarde, em março daquele mesmo ano, teriam sido psicografadas as primeiras páginas, tendo o primeiro texto sido intitulado de "A Palavra dos Mortos".[1], tendo como assunto a descrição do intenso trabalho da espiritualidade pelo progresso humano.

É polêmica antiga no meio jurídico o valor probatório da psicografia. O caso mais famoso indubitavelmente foi o de Humberto de Campos. A partir de 1937, três anos após a morte de Campos, várias crônicas e romances atribuídos ao escritor começaram a ser psicografados pelo médium brasileiro Chico Xavier. Entre as obras, todas editadas pela Federação Espírita Brasileira, a de maior notoriedade entre os espíritas brasileiros foi Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho. No ano de 1944, a viúva de Humberto de Campos, em conjunto com os três filhos do casal, ingressou em juízo, movendo um processo contra a Federação Espírita Brasileira e Francisco Cândido Xavier, no sentido de obter uma declaração, por sentença, de que essa obra mediúnica "era ou não do 'Espírito' de Humberto de Campos", e que em caso afirmativo, que ela obtivesse os direitos autorais da obra. O assunto causou muita polêmica e, durante um bom tempo, ocupou espaço nos principais periódicos do País. A Autora, D. Catarina Vergolino de Campos, foi julgada carecedora da ação proposta, por sentença de 23 de agosto de 1944, do Dr. João Frederico Mourão Russell, juiz de Direito em exercício na 8º Vara Cível do antigo Distrito Federal. Tendo ela recorrido dessa sentença, o Tribunal de Apelação do antigo DF manteve-a por seus jurídicos fundamentos, tendo sido relator o Ministro Álvaro Moutinho Ribeiro da Costa.[2]

A opção pela utilização do pseudônimo Irmão X deu-se após esse processo iniciado em 1944. Embora a decisão judicial à época tenha sido desfavorável à autora, por precaução o Espírito passou a assinar os seus textos sob este pseudônimo, evitando novos dissabores.

Posteriormente, o trabalho da defesa neste processo resultou no clássico "A Psicografia Perante os Tribunais", do advogado Miguel Timponi.

Desse modo, os primeiros cinco livros publicados pela editora da FEB vieram a público atribuídos ao espírito de Humberto de Campos. A partir do sexto, publicado em 1945, passaram a ser atribuídos ao espírito "Irmão X". As décadas seguintes revelariam uma contribuição importante para a divulgação do movimento espírita no país. A obra "Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho" (1938) continuou a ter grande repercussão no meio espírita, a que se somaram diversas crônicas e contos com fundo moral e textos que elucidavam sobre passagens do Evangelho.

As psicografias de Chico Xavier atribuídas a Humberto de Campos foram estudadas pelo pesquisador Alexandre Caroli Rocha em uma notória tese de Doutorado em Teoria e História Literária pela Unicamp, em que concluiu que o autor dos livros mediúnicos possuía um amplo conhecimento das obras de Campos e foi capaz de reproduzir o estilo e o caráter deste. Um outro aspecto interessante da pesquisa é a demonstração de que algumas das informações psicografadas fazem referências a escritos de Campos que não eram de domínio público quando os textos mediúnicos foram produzidos. Como por exemplo, o "Diário Secreto" de Campos, que foi mantido inacessível em um cofre da Academia Brasileira de Letras até 1954, vinte anos após a morte do escritor.[3][4]

 

RESUMO

Entre 1937 e 1969, publicaram-se 12 livros que o médium Francisco Cândido Xavier atribuiu ao escritor Humberto de Campos e a Irmão X. O objetivo desta tese é estudar o funcionamento autoral desses textos. Ela foi dividida em cinco capítulos: uma apresentação de Humberto de Campos; um breve histórico da mencionada atribuição de autoria; uma análise da construção de um autor espiritual; uma leitura de cinco textos do conjunto mediúnico; e uma interpretação das noções autorais despertadas por tais livros.

 

Humberto de Campos Veras nasceu na pequena cidade maranhense de Miritiba, em 25 de outubro de 1886. Lá viveu até os seis anos, idade em que ficou órfão de pai. Rumou então à capital São Luís e pouco depois a Parnaíba, no Piauí, onde permaneceu com sua mãe, suas duas irmãs (a mais velha, por parte de pai) e outros familiares. Frequentou pequenas escolas, onde se alfabetizou. E por conta dos escassos recursos da família, ingressou no mundo do trabalho como aprendiz de alfaiate e, depois, assumiu a função de balconista na loja de seu tio Emídio. Não por muito tempo, pois perdeu esse emprego e teve de auxiliar sua mãe na confecção de meias em sua casa. Ainda em Parnaíba, foi aprendiz de tipógrafo, mas, por falta de perspectivas profissionais na cidade, aceitou o convite de seu tio Franklin, que o levou para São Luís. Com 13 anos, Humberto de Campos perambulou pela capital maranhense em busca de serviço; foi aceito numa tipografia. Nesse período, continuou a oscilar de emprego; voltou ao comércio, retornou à tipografia e, logo, ao comércio novamente. Solitário fora do expediente, começou a frequentar a biblioteca pública e a se interessar pela leitura de ficção; Júlio Verne era seu autor favorito. Não cogitava, porém, um futuro como literato; sonhava com uma ascensão social pelo comércio. Em 1901, balconista em São Luís, Humberto de Campos recebeu a visita de seu tio Antoninho, que se propôs a ajudá-lo a encontrar uma ocupação mais promissora no Pará. Humberto se entusiasmou com a ideia; abandonou o emprego e voltou a Parnaíba, onde 11 As principais fontes que utilizei para escrever essa parte do capítulo, além dos livros de Humberto de Campos, foram: Bezerra, 1979; Lebert, 1956; Oliveira, 1990; Reis, 1986. 12 Oito dias após a morte do escritor, sua cidade natal passou a chamar-se Humberto de Campos (Espindola, 2005, p. 63-64). 22 ficou na expectativa de uma oportunidade mais concreta para a nova mudança. Antoninho tardou o cumprimento da promessa ao sobrinho, que se arrependeu de ter voltado à casa materna e ficou sem emprego por dois meses. Depois disso, voltou a trabalhar na loja de seu tio Emídio. Foi nessa época que Humberto de Campos identificou o surgimento de sua paixão literária. Começou a conhecer alguns escritores contemporâneos, lendo jornais e almanaques literários, como o Almanaque de Lembranças e o Almanaque de Pernambuco. Tomou gosto por poetas locais e arriscou-se a escrever seus primeiros poemas. A prosa de Coelho Neto o encantou, mas também o marcaram as leituras dos positivistas, evolucionistas e materialistas, tão em voga naquele início de século, tais como Comte, Spencer, Haeckel e Büchner. Essas leituras lhe provocaram uma sensação de rompimento com sua educação católica. Em 1903, após novo incentivo de seu tio Antoninho, embarcou para Belém. Lá, no início de sua estada, viveu situação crítica, pois não encontrou o emprego prometido e, em penúria, sofria de neurastenia. Conseguiu o encargo de revisor num jornal em decadência, até que lhe surgiu a proposta de ser administrador de seringais em Mapuá, nas fronteiras do Pará com o Amazonas. Trabalhou nessa região durante um ano e meio, e porque contraiu febre palustre teve de voltar a Belém, onde foi contratado como redator do jornal Folha do Norte. Foi o início de sua carreira jornalística. Em tom de denúncia, escrevia especialmente sobre a deplorável situação a que eram submetidos os seringueiros. Seus artigos ganharam repercussão e, em 1907, foi contratado como redator-chefe do jornal Província do Pará. Antônio Lemos, proprietário do periódico, era o prefeito da capital, e também contratou o jovem cronista como secretário da prefeitura. Humberto de Campos exerceu essas duas funções até 1912, quando houve em Belém um levante armado cujo desfecho foi a destituição do prefeito e o empastelamento de seu jornal. Ameaçado, Humberto precisou fugir da cidade. Embarcou para o Rio de Janeiro, a então capital federal. Em 1910, publicara seu primeiro livro, Poeira..., de poesia, editado em Portugal. Catharina Vergolino, noiva do escritor, permaneceu em Belém. Foi morar no Rio de Janeiro em 1913, após seu casamento por procuração. Tiveram três filhos: Maria de Lourdes, Henrique e Humberto. 23 Recém-chegado ao Rio de Janeiro, Humberto de Campos visitou o também maranhense Coelho Neto, com quem, dali em diante, manteve permanente amizade. Trabalhou para a Gazeta de Notícias e, posteriormente, para O Imparcial, jornal onde atuavam vários conhecidos escritores da época, tais como Goulart de Andrade, Rui Barbosa, Olavo Bilac, Paulo Barreto, Emílio de Menezes e João Ribeiro. Humberto escrevia uma seção política, chamada “Ecos”, e começou também a produzir contos humorísticos – estes sob o pseudônimo de Conselheiro XX –, que deram ao escritor uma enorme popularidade, só superada pelas crônicas dos primeiros anos da década de 30 assinadas com seu verdadeiro nome, nas quais Humberto, gravemente enfermo, torna-se o principal personagem de si mesmo. Em 1918, publicou seu primeiro livro de crônicas, Da seara de Booz, e no mesmo ano, seu primeiro da série Conselheiro XX, Vale de Josaphat. Dos seus livros, que totalizaram cerca de 45 títulos, a maioria foi formada com textos selecionados entre os publicados na imprensa pelo escritor. Foi por meio desta que Humberto de Campos ganhou prestígio e grande público. Aos 33 anos, foi eleito membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), e em 1920 passou a ocupar a vaga que fora de Emílio de Menezes. Com a fama, mas obrigado a trabalhar ininterruptamente como escritor para sustentar a família, Humberto escrevia para diversos jornais do país. Em 1927 foi eleito deputado federal pelo Maranhão; três anos depois foi reeleito, mas no mesmo ano perdeu o mandato por causa da Revolução de 1930, que encerrou o período da Primeira República. Embora adversários políticos, o escritor foi nomeado em 1931 por Getúlio Vargas para ser Inspetor Federal de Ensino; nesta função, viajou ao Uruguai e à Argentina. Em 1933 publicou Memórias, seu livro de maior repercussão. No final do mesmo ano o escritor foi nomeado diretor da Casa de Rui Barbosa, função que exerceu por poucos meses. Em 5 de dezembro de 1934, durante uma cirurgia, morreu na Casa de Saúde Dr. Eiras, no Rio de Janeiro. Estava no auge de sua notoriedade; era um dos autores mais lidos do Brasil. 24 Como a maioria dos escritores mais comentados de seu tempo, já faz algumas décadas que Humberto de Campos caiu em esquecimento. Ele conhecia as contingências da história literária e sabia que, pouco depois de sua morte, sua obra não mais despertaria interesse no público e na crítica

 

HUMBERTO DE CAMPOS NAS PÁGINAS DE CHICO XAVIER 1. PRIMEIRAS ANOTAÇÕES SOBRE A SÉRIE MEDIÚNICA Sobre Francisco Cândido Xavier (1910-2002), mais conhecido como Chico Xavier, existem atualmente centenas de livros26, revistas, DVDs que registram traços de sua história. Nos últimos anos, embora em pequena escala, ele vem sendo estudado em algumas pesquisas acadêmicas27. Sua singular atuação como médium espírita, ao longo de 70 anos, transformou-o numa das personalidades mais populares do Brasil do século XX. Principal expoente do espiritismo brasileiro, publicou cerca de 400 livros, que foram atribuídos a centenas de autores “mortos”. Em 1981, concorreu ao Prêmio Nobel da Paz. Nasceu em 2 de abril de 1910, em Pedro Leopoldo, pequena cidade de Minas Gerais próxima de Belo Horizonte. Seus pais – João Cândido, vendedor de bilhetes de loteria, e Maria João de Deus, dona-de-casa e lavadeira – tiveram nove filhos. A mãe de Chico Xavier morreu quando ele tinha cinco anos. A perda provocou a distribuição dos filhos a parentes e a amigos, porque, sem a esposa, João Cândido não tinha condições de criá-los. O menino, então, passou dois anos sob os cuidados de sua madrinha, período durante o qual, ele conta, começou a ver o espírito de sua mãe, com quem conversava. “No quintal da casa em que eu morava, via frequentemente minha mãe desencarnada em 1915 e outros Espíritos, mas as pessoas que me cercavam então não conseguiam compreender minhas visões e notícias e acreditavam francamente que eu estivesse mentindo ou que estivesse sob perturbação mental. ”28 (Apud Barbosa, 1997, p. 26-27) 26 Ver, entre outros, Barbosa, 1997; Souto Maior, 2003; Machado, 2006. 27 Ver Aubrée e Laplantine, 1990; Lewgoy, 2000, 2004; Lignani, 2000; Fernandes, 2001; Rocha, 2001; Stoll, 2003. 28 Passagem de entrevista concedida em 1967. 76 João Cândido casou-se novamente, em 1917; sua esposa exigiu que os filhos dele voltassem para a casa, que mais tarde receberia seis novas crianças do casal. Com nove anos, Chico Xavier ingressou na escola primária, onde também relatava manter contato com pessoas vistas somente por ele; por isso, era chacoteado pelos colegas. “Desde muito cedo, na atual reencarnação, achei-me diante dos amigos desencarnados. Muitas vezes em aula, quando criança, ouvia vozes dos espíritos ou sentia mãos sobre as minhas, mãos que eu sentia vivas, guiando meus movimentos de escrita, sem que os outros as vissem. Isso me criava muitos constrangimentos. ”29 (Apud Barbosa, 1997, p. 14-15). Em casa, seu alegado convívio com os mortos não era bem recebido: sua família era católica; contrariado com as afirmações do filho, João Cândido cogitava interná-lo num sanatório. Porém, o padre Sebastião Scarzelli, com quem Chico Xavier se confessava, interveio; além das penitências que prescrevia ao garoto, explicou a sua família que Chico Xavier fantasiava e que duas medidas deveriam ser tomadas: deixá-lo longe de livros, jornais e revistas30, provável fonte de suas criações mentais, e ocupar-lhe o tempo livre com um emprego. A recomendação foi cumprida: o pai armou uma fogueira onde queimou as folhas impressas, e, aos dez anos, o garoto conseguiu um emprego na fábrica de tecidos da cidade. De manhã, frequentava a escola; das 15h à uma da manhã, era servente de fiação, num ambiente de trabalho insalubre que lhe provocou problemas pulmonares. Concluiu o curso primário em 1923, encerrando sua experiência escolar. Pouco depois, mudou de emprego: assumiu a função de servente de cozinha no “Bar do Dove”, onde trabalhava das 7h às 20h. Aos 15 anos, trocou novamente de serviço: tornou-se balconista de um pequeno armazém, onde cumpria um expediente similar ao de sua ocupação anterior. No armazém, trabalhou por cerca de dez anos. Em 1933, começou a 29 Trecho de entrevista concedida em 1967. 30 Apesar de seu restrito acesso à cultura letrada na juventude, Chico Xavier demonstrava grande interesse pela leitura e pela literatura (cf. Barbosa, 1997; Fernandes, 2001). Quanto a seus eventuais conhecimentos dos escritos de Humberto de Campos, perguntei a Elias Barbosa, que foi amigo do médium mineiro, em entrevista por e-mail em abril de 2006: “Chico Xavier era leitor de Humberto de Campos? ” Ele respondeu: “Não. [...] em 1935, o próprio repórter Clementino de Alencar, que o jornal O Globo mandou para seguir os passos de Chico Xavier em Pedro Leopoldo, verificou que não existia nenhum livro de Humberto de Campos, ou mesmo uma enciclopédia sequer, na casa do médium. ” 77 trabalhar como auxiliar de serviço na Fazenda Modelo, pertencente ao Ministério da Agricultura31, do qual foi funcionário até 1961, quando se aposentou como escriturário. O motivo que levou Chico Xavier a se afastar do catolicismo decorreu da doença que acometeu uma de suas irmãs, em 1927; ela tinha sintomas de perturbação mental e os médicos não conseguiram curá-la. A família, então, pediu ajuda a um casal de espíritas, que a socorreu. O sucesso da intervenção despertou o interesse de Chico Xavier e de alguns familiares pelo espiritismo. No mesmo ano, fundaram o centro espírita Luiz Gonzaga, o primeiro da cidade. O rapaz gostou da mudança, pois, naquele novo espaço, suas relações com o invisível passaram a ser aceitas e, com base na teoria de Allan Kardec, foram compreendidas como mediunidade. Aos 17 anos, começou a praticar a psicografia. “Quando escrevo psicograficamente, vejo, ouço e sinto o Espírito desencarnado que está trabalhando, por meu braço, e, muitas vezes, registro a presença do comunicante sem tomar qualquer conhecimento da matéria sobre a qual está ele escrevendo.”32 (Apud Barbosa, 1997, p. 121) Em 1931, segundo seus relatos, houve um importante encontro: surgiu-lhe um espírito, chamado Emmanuel, que se propôs a orientar seus trabalhos mediúnicos, caso ele consentisse e se comprometesse a ser extremamente disciplinado. O acordo foi feito. No ano seguinte, já com dezenas de poemas atribuídos a célebres poetas de língua portuguesa, Chico Xavier apresentou o trabalho à Federação Espírita Brasileira (FEB), que publicou seu primeiro livro: Parnaso de além-túmulo. Humberto de Campos tomou conhecimento de Chico Xavier em 1932, ano em que escreveu duas crônicas a respeito de Parnaso de além-túmulo. Foram publicadas na primeira página do Diário Carioca: “Poetas do outro mundo”33, no dia 10 de julho, e, dois 31 Entre 1933 e 1935, embora seu principal emprego fosse na Fazenda Modelo, ele ainda prestava serviços no armazém (Barbosa, 1997). 32 Resposta de Chico Xavier à seguinte pergunta: “Conscientemente, como registra o fenômeno da psicografia? ”, em entrevista concedida em 1967. 33 eis uma passagem dessa crônica: “O primeiro pensamento que assalta o leitor, antes de examinar o merecimento literário da obra, é a ideia de que, nem no outro mundo, estará livre dos poetas. A 78 dias depois, “Como cantam os mortos”34. Nelas, ressaltava que traços característicos dos poetas apareciam nos versos mediúnicos e, com uma ironia que lhe era típica, lamentava a ideia de que, post-mortem, continuassem a poetar, e de um modo muito semelhante a como escreviam em vida, o que não seria uma grata revelação35. O cronista morreu em dezembro de 1934. Em fevereiro de 193536, Chico Xavier sonhou com Humberto de Campos. Relatou seu sonho em carta de 30 de março de 1935, dirigida a Manuel Quintão – um dos principais responsáveis pela primeira aceitação dos escritos do médium mineiro pela FEB. Não sei se o amigo recebeu a minha última carta, mas, mesmo sem saber se o estou aborrecendo, envio-lhe outra, acompanhada de duas produções mediúnicas recebidas por mim nesta semana. Peço-lhe a sua opinião muito franca sobre elas, desejando que me escreva em breves dias. Há mais de um mês tive um sonho engraçado. Sonhei que uma pessoa me apresentou Humberto de Campos, num lugar de céu muito azul e brilhante e no chão havia uma espécie de vegetação que não me deixava ver a terra. Não vi casa alguma. O que me impressionou mais é que as pessoas que eu via estavam sob uma árvore muito grande e tão branca que, quando o sol batia nas suas frondes de folhas muito delgadas, parecia uma grande árvore de cristal. Ele veio então ao meu lado e me estendeu a mão com bondade, dizendo: “Você é o menino do Parnaso? ” Disse-me mais coisas das quais não me posso recordar. Poesia é uma predestinação de tal modo fatal, irremediável, que a vítima não se livra dessa maldição nem, mesmo, depois da morte. ” (Campos, 1932a) 34 Dessa outra, eis o último parágrafo: “O Parnaso de Além-Túmulo merece, como se vê, a atenção dos estudiosos, que poderão dizer o que há, nele, de sobrenatural ou de mistificação. No primeiro caso, o outro mundo deve ser insuportável, com os poetas que lá se acham. E pior será, ainda, se houver, também, por lá, declamadoras...” (Campos, 1932b) 35 As objeções de Humberto de Campos ao livro de poemas psicografados foram rebatidas no texto mediúnico “Aos críticos do ‘Parnaso de além-túmulo’”, escrito por Chico Xavier e atribuído a Eça de Queirós (cf. Xavier, 1933). 36 Também em 1935, foi publicado o segundo livro de Chico Xavier, Cartas de uma morta, atribuído a Maria João de Deus, sua mãe. 79. Que diz o amigo de tudo isto? Seria a minha imaginação? Não sei. Em todo o caso, mando estas páginas para o senhor ler. Estão certas as citações? (Apud Barbosa, 1997, p. 39) Essas duas produções enviadas a Quintão eram, provavelmente, os primeiros textos de Chico Xavier atribuídos a Humberto de Campos, visto que “A palavra dos ‘mortos’”37 e “De um casarão de outro mundo” são datados de 27 de março de 1935, e “Carta aos que ficaram”, de 28 de março de 1935. Portanto, o intervalo entre a morte do escritor e o início dos textos mediúnicos a ele atribuídos foi de quase quatro meses. De Pedro Leopoldo, Chico Xavier enviava seus textos ao Rio de Janeiro. Grande parte da série Humberto de Campos foi publicada primeiramente no Reformador38 – revista da FEB, fundada em 1883 – e, depois, em livros: Crônicas de além-túmulo, em 1937; Brasil, coração do mundo, pátria do Evangelho, em 1938; Novas mensagens, em 1940; Boa nova, em 1941; Reportagens de além-túmulo, o último atribuído a Humberto de Campos, em 1943; Lázaro redivivo, o primeiro assinado por Irmão X39, em 1945; Luz acima, em 1948; Pontos e contos, em 1951; Contos e apólogos, em 1958; Contos desta e doutra vida, em 1964; Cartas e crônicas, em 1966; e Estante da vida, em 1969. Os livros de Chico Xavier têm grande circulação no Brasil desde os anos 30, quando começaram a ser publicados. É o que registra, por exemplo, o escritor R. Magalhães Júnior, no seguinte trecho de seu artigo publicado no jornal A Noite de 24 de maio de 1944: [...] a verdade é que esses livros têm público numeroso. E deles se tiram edições sucessivas, que talvez não cheguem a alcançar alguns dos editados por José Olímpio, 37 A data atribuída ao prefácio do livro Palavras do infinito gera dúvida, uma vez que apenas uma pequena parte do livro é anterior a 27 de março de 1935, e o prefácio se refere, supostamente, a um material que já estaria pronto. 38 sobre o surgimento da revista Reformador e o contexto em que ocorreu, ver Giumbelli, 1997. 39. Como veremos adiante, por causa de um problema judicial, em 1944, o nome Humberto de Campos foi substituído pelo nome Irmão X, no prosseguimento da série mediúnica. 80 embora este livreiro seja um dos campeões dos best sellers nacionais. Não os leem os literatos, nem os eruditos, mas o povo os devora. Mesmo pessoas que se dizem católicas – e quantas conheço nesse rol! – consomem essa literatura espírita. Os livros atribuídos a Humberto de Campos têm sido um verdadeiro sucesso de livraria, vendendo-se hoje por todo o Brasil. Os poemas assinados por poetas do Além e ditados ao médium Chico Xavier encontram público tão grande quanto as Espumas Flutuantes, de Castro Alves, ou os Cantos do Exílio, de Gonçalves Dias. Ou maior, talvez. [...] (Apud Timponi, 1978, p. 84) inexistem pesquisas sobre o perfil dos leitores de livros mediúnicos, que poderiam ser confrontadas com as conjecturas de Magalhães Júnior. Atualmente (2008), centenas de títulos de Chico Xavier continuam sendo reeditados e tendo alta circulação. Sua obra de maior sucesso de livraria, Nosso lar, atribuída a André Luiz, já superou a tiragem de 1,5 milhão de exemplares. Quanto à série Humberto de Campos/Irmão X, os três volumes mais vendidos são: Brasil, coração do mundo, pátria do evangelho (294 mil exemplares); Boa nova (251 mil exemplares); Crônicas de além-túmulo (100 mil exemplares). A soma das tiragens de todos os livros da série ultrapassa 1,3 milhão de exemplares, cifra que, provavelmente, supera o número de exemplares vendidos dos livros de Humberto de Campos.

 

Fazê-lo, como Chico Xavier o costuma, de improviso, numa elaboração e redação instantâneas, sem segundos sequer de meditação para coordenar ideias, passando em sucessão ininterrupta da prosa ao verso, da página de ficção para a de filosofia, ou moral; trasladando a composição para o papel em escrita manual vertiginosa que qualquer não consegue em trabalho de cópia ou quando reproduz um assunto que tenha de cor – é alguma coisa de inexplicável, que não está ao alcance de qualquer imitador de estilos ou amadores de contrafação literária. Mas, vá que tal maravilha seja admissível: imita-se o estilo; a técnica do verso; o rimário preferido; o meneio da frase; a escolha do vocabulário; a feição e natureza das imagens. Mas, e as manifestações de cultura, de erudição, nos mais diversos assuntos, que o contexto revela? Também isso se pode imitar, improvisar? Como explicar, dentro da imitação do estilo, as citações certas e adequadas de datas e fatos históricos; de acontecimentos e personalidades; os a propósitos elucidativos do tema; as referências, comparações e conceitos científicos, críticos, filosóficos, literários, que somente um lastro de conhecimentos variados, sedimentados e sistematizados no tempo permitem e só dominados por leituras e estudos pregressos, devidamente meditados? Tudo isso é passível de imitação, de improvisação? Improvisar cultura, erudição, conhecimento, é crer em “ciência infusa”; é admitir sabedoria de “geração espontânea”; é conceber erudição congênita ou hereditária. Não. O subconsciente recebe, registra, acumula e reproduz, fiel ou deformado, mas somente o que passou pela porta crítica da consciência. Não cria do nada. Conhecimento não se improvisa; adquire-se. 88 É precisamente o aspecto da erudição, a evidenciação de conhecimentos, o que mais ressalta, muito acima do estilo, e nos moldes culturais do autor, na obra póstuma do glorioso escritor maranhense [Humberto de Campos], como em outras páginas de prosa e particularmente nas poesias de Junqueiro, de Antero de Quental, de Hermes Fontes e mesmo de Augusto dos Anjos e vários outros. (Apud Timponi, 1978, p. 314-316) perceba-se que, nas observações de Melo Teixeira, existem alusões à sua leitura dos textos psicografados (nível 1), mas predomina a discussão sobre a gênese da criação literária de Chico Xavier (nível 2). Ainda que não defenda uma explicação para o caso, o psiquiatra descarta a alternativa do pastiche. A reprodução do estilo, por ele entendido como o conjunto das preferências literárias – mais superficiais e apreensíveis – de um escritor, é colocada em segundo plano. O que mais lhe chamava a atenção, nos textos de Chico Xavier, eram as faces de erudição, irredutíveis à imitação. O desembargador Mário Matos expunha uma outra apreciação. Foi publicada em 2 de agosto de 1944, no mesmo Diário da Tarde – que na época fazia enquetes com intelectuais, a respeito das páginas de Chico Xavier. Não há dúvida para mim de que o estilo das Crônicas de Além-Túmulo é semelhante ao que o autor revelava em vida. Estilo linear, com todas as regras de sintaxe, cheio das mil e uma maneiras técnicas de Humberto de Campos. Estilo que segue todas as normas do bem escrever, segundo o critério ginasial de Albalat. E a semelhança se acusa tanto nas partes externas como nas intrínsecas. Sob este último critério, é admirável o comportamento jovial do prosador, através da escrita, traço característico da mentalidade do morto, quando era vivo. Aparece o gosto, que ele tinha, tanto da imagem como da comparação. Há a mesma natureza de cultura e a mesma similaridade de erudição. Citações bíblicas, citações históricas, aplicação de casos e episódios ao assunto de que discorre. Sucedem-se igualmente as frases substantivas. Não sei se foi porque li as Crônicas astrais em hora propícia, mas verdade que achei o estilo do morto muito mais vivo. 89 Entretanto, similaridade de estilo, de cultura e de erudição não é prova “específica” de identidade, de autenticidade. Mas impressiona, de fato. [...] O professor Melo Teixeira declarou que assistiu a Francisco Xavier psicografar Humberto e que ele o fez a tratar de coisas diferentes. Isto me parece inexplicável. A atenção não se biparte quando concentrada em qualquer assunto. Quem escreve ou fala não pode pensar em coisa diferente da sobre que escreve ou está falando. Se Xavier psicografa assim, certamente que não é ele quem está atuando mentalmente. É outro. Principalmente, como diz Melo Teixeira, se o faz com vertiginosidade. Aqui há um fenômeno, estranho. Mas eu resolvo a complicação cá ao meu modo. Os espíritas o solucionam pelo deles. Para eles, é o Humberto quem está ditando as ideias. Para mim, é o Diabo. Sempre o Diabo as arma. Sua finalidade diabólica é a de confundir e apoquentar os homens. Para ele se disfarçar em Humberto, em Victor Hugo ou em Antero de Quental, é coisa facílima. E como nunca realiza obra perfeita, a maior parte das imitações é inferior às obras dos autores imitados, já conhecidas por nós. É por isso que faz Junqueiro escrever versos de pés quebrados e estropia de vez em quando sonetos do Quental. Este é o sinal de suas obras. É decalquista de sua própria natureza. (Apud Timponi, 1978, p. 332-333). As considerações de Mário Matos são um claro exemplo dos dois níveis de leitura a que venho me referindo. O primeiro parágrafo citado acima examina os textos de Crônicas de além-túmulo, relacionando-os com a obra de Humberto de Campos (nível 1). Os outros parágrafos discutem a gênese das páginas de Chico Xavier (nível 2). Com base em sua leitura e nas informações de Melo Teixeira, o desembargador apresenta seu parecer sobre quem concebera os textos. Para Mário Matos, o verdadeiro autor dos escritos de Chico Xavier era o diabo49, capaz de decalcar os escritores, mas deixando um rastro de imperfeição, a denunciar a sua natureza. Como se vê, as psicografias acionavam um variado repertório de convicções. E quando estas escapavam de territórios mais palpáveis – 49 Sobre a ideia demonista em relação à psicografia de Chico Xavier, a partir de opiniões do escritor católico Tristão de Athaíde, ver Bertolli Filho, 1997. 90 como os do pastiche, que prescinde de consciências extracorpóreas –, as representações do além vinham à tona. Na revista espírita Reformador de agosto de 1944, Marcílio Gonzaga publicou o artigo “Palavras de Humberto de Campos”. Ele retoma a crônica “Poetas do outro mundo” – sobre o Parnaso de além-túmulo –, na qual o escritor maranhense protesta contra a concorrência dos autores espirituais. E comenta: Por aquele tempo, Humberto de Campos ainda não percebia que o seu talento representava missão sagrada e não simples recurso de ganhar o pão de cada dia para si e sua família; que era um sacerdócio para o serviço de Deus, como todos os talentos geniais. Três meses apenas depois de transpor o limiar da outra vida, compreendeu tudo e voltou, não mais se importando de fazer concorrência aos outros literatos e até a si mesmo, segundo se deve depreender da ação que anda em juízo, movida pelos seus herdeiros. É que já progrediu mais e agora percebe sua missão divina de ajudar os homens a elevar-se para Deus. Foi muito feliz! (Gonzaga, 1944) Além de uma noção particular de literatura, entendida como sagrada missão, destaca-se nesse parágrafo a assimilação, que vai ao encontro da teoria kardecista, de que o autor da série é o espírito de Humberto de Campos (nível 2). Em 12 de agosto de 1944, O Estado de S. Paulo publicou o artigo “Chico Xavier”, do romancista Mário Donato. Seguem os dois últimos parágrafos do texto: Dei-me ao trabalho de examinar grande número de “mensagens psicografadas” por Chico Xavier e vários outros médiuns; e, francamente, como não posso admitir que um homem, por mais ilustrado que seja, consiga “pastichar” tão magnificamente autores como Humberto de Campos, Antero de Quental, Augusto dos Anjos, Guerra Junqueiro e, se não 91 me engano, Victor Hugo e Napoleão Bonaparte50, opto pela explicação do sobrenatural, que não satisfaz à minha consciência, é verdade, mas apazigua a minha humaníssima vaidade de literato. Pode lá um homem avultar tantos palmos, por suas próprias forças, sobre a cabeça dos demais? Pode lá plagiar, velozmente como o faz o Chico, Humberto, Antero e outros do mesmo naipe, a quem não se “pasticha” senão depois de larga experiência literária e trabalhosa noite de insônia? Não, absolutamente. É milagre. Coisas assim não podem ser senão milagre, puro milagre. Há qualquer intervenção sobre-humana no fato; não porque o diz Chico Xavier, mas porque assim o exige a nossa arrogância. O dedo do Diabo, dir-se-ia nos velhos tempos em que a Inquisição delimitava o conhecimento segundo a própria estupidez; o dedo de Deus, dizemos hoje, mais dispostos a atribuir ao Senhor, e não ao Tinhoso, a responsabilidade pela confusão em que anda o mundo e seu conteúdo. O que, no fundo, revela que a nossa explicação é menos bem-intencionada que a dos inquisidores... positivamente não aceito a autoria de Chico Xavier, e aceito a de Humberto, como a de Antero, Napoleão, Dumas e qualquer outro que, do lado de lá, tenha o mau gosto de praticar literatura. E creio que essa é a atitude mais humana, a mais condizente com a nossa falta de humildade. É milagre, e o milagre, não explicando nada, explica tudo. Pois se não admitirmos que o caso é milagroso, temos que levar o Chico Xavier à Academia Brasileira de Letras – e, naturalmente, estamos mais dispostos a reconhecer-lhe amizades no Céu que direitos literários ao Petit Trianon. (Apud Timponi, 1978, p. 348-349) O autor de Presença de Anita alude à sua avaliação dos textos mediúnicos (nível 1) para expor sua opinião a respeito da gênese dos escritos de Chico Xavier (nível 2). Ciente de que, ao falar dessa complexa atribuição de autoria, fala também de suas próprias convicções, e, portanto, de si, Mário Donato graceja com sua condição de escritor. Ele diz preferir uma explicação sobrenatural para a autoria daqueles textos, porque sua vaidade de literato seria ferida caso aceitasse Chico Xavier como seu legítimo concorrente. Desse 50 O autor se enganou nesta passagem: foi o médium português Fernando de Lacerda, e não Chico Xavier, quem atribuiu textos a Victor Hugo e a Napoleão (cf. Lacerda, 1990). 92 modo, para uma melhor divisão de espaços, mais apropriado seria aceitar as amizades celestes do médium. As relações entre as leituras de nível 1 e nível 2, no entanto, nem sempre eram amistosas. O gracejo com as próprias convicções era limitado. Um significativo exemplo de conflito por causa de um texto mediúnico ocorreu com o crítico Agrippino Grieco. Em 30 de julho de 1939, ele participou de uma sessão espírita pública, em Belo Horizonte, ao lado de Chico Xavier, que psicografou, na ocasião, um poema atribuído a Augusto dos Anjos e uma carta assinada por Humberto de Campos e dirigida a Agrippino, que fora seu conhecido. Em entrevista ao Diário da Noite de 21 de setembro de 1939, disse o crítico: [...] não podendo aceitar sem maior exame a certeza de um pastiche, de uma paródia, tive, como crítico literário que há trinta anos estuda a mecânica dos estilos, a sensação instantânea de percorrer um manuscrito inédito do memorialista glorioso. Eram em tudo os processos de Humberto de Campos, a sua amenidade, a sua vontade de parecer austero, o seu tom entre ligeiro e conselheiral. Alusões à Grécia e ao Egito, à Acrópole, a Tirésias, ao véu de Isis muito ao agrado do autor dos Carvalhos e Roseiras. Uma referência a Sainte-Beuve, crítico predileto de nós ambos, mestre de gosto e clareza que Humberto não se cansava de exaltar em suas palestras, que não me canso de exaltar em minhas palestras. Conjunto bem articulado. Uma crônica, em suma, que, dada a ler a qualquer leitor de mediana instrução, logo lhe arrancaria este comentário: “É Humberto puro! ” Fiquei naturalmente aturdido... depois disso, já muitos dias decorreram e não sei como elucidar o caso. Fenômeno nervoso? Intervenção extra-humana? Faltam-me estudos especializados para concluir. Além do mais, recebi educação católica e sou um entusiasta dos gênios e heróis que tanto prestígio asseguram à religião que produziu um Santo Antônio de Pádua e um Bossuet. Meu livro São Francisco de Assis e a Poesia Cristã aí se encontra, a testemunhar quanto venero a ética e a estética da Igreja. Mas – repito-o com a maior lealdade – a mensagem subscrita por Humberto de Campos profundamente me impressionou... (Apud Timponi, 1978, p. 67-68). Observe-se que a existência de um texto mediúnico que cumpra uma expectativa de autoria não é suficiente para a identificação de quem o ideou. Para a atribuição autoral, são necessários fatores externos ao texto. No presente caso, o fato de a autoria reivindicada remeter-nos a um escritor “morto” representa, para grande parte dos leitores, um impedimento de natureza externa ao texto, que tem a ver com noções de realidade. A tensão que se observa na fala de Agrippino advém do conflito entre sua interpretação da carta que recebera (nível 1) e sua tentativa de compreender como se dera a concepção daquele texto (nível 2). Na leitura do crítico, a expectativa de autoria fora cumprida, mas o fato de o amigo que assinava a carta estar morto há mais de quatro anos impunha o dilema. Sem uma resposta definitiva, Agrippino levantava algumas possibilidades explicativas: pastiche; paródia; fenômeno nervoso; intervenção extra-humana. E fazia questão de reafirmar suas convicções católicas, uma vez que a ordem de problemas levantada pela psicografia esbarrava em domínios religiosos. Em ficção, a série mediúnica aparece no livro A vaca e o hipogrifo (1977), de Mario Quintana, em um pequeno texto intitulado “Perversidade”: Alguém me disse, com a voz embargada, que agora sim, estava convencido da existência de Deus, porque os trabalhos psicografados de Humberto de Campos eram evidentemente dele mesmo. – Mas isto não prova a existência de Deus.... Prova apenas a existência de Humberto de Campos. (Quintana, 1977, p. 51) nessa narrativa, Quintana brinca com os limites da leitura de mundo suscitada pelos textos atribuídos a Humberto de Campos. O primeiro leitor, convencido de que o verdadeiro autor dos escritos era o próprio Humberto de Campos, também inferiu a imortalidade do espírito e a existência de Deus. O segundo leitor, menos propenso a silogismos envolvendo representações do além, interpretou os textos mediúnicos como prova da existência de Humberto de Campos (apenas enquanto texto?); não mais que isso.

 

. O CASO HUMBERTO DE CAMPOS Em 1944 ocorreu o caso Humberto de Campos: os detentores dos direitos autorais da obra do escritor – a viúva Catharina Vergolino de Campos e os filhos do casal – ingressaram na Justiça com uma ação declaratória contra Chico Xavier e a FEB 51. Alegavam que, após a morte do autor de Sombras que sofrem, produções literárias atribuídas ao “Espírito de Humberto de Campos”, psicografadas por Chico Xavier, começaram a ser editadas pela FEB. Até aquele ano, a série era composta por cinco volumes: Crônicas de além-túmulo; Brasil, coração do mundo, pátria do evangelho; Novas mensagens; Boa nova e Reportagens de além-túmulo. Os familiares do escritor argumentavam que esses livros tinham sucesso de venda porque eram atribuídos a Humberto de Campos, que detinha “grande popularidade entre o público brasileiro de todos os níveis intelectuais” (Apud Timponi, 1978, p. 11). Dizia-se na ação que, ante a celeuma provocada por tais livros, a família do escritor vinha se mantendo em silêncio, aguardando que críticos e cientistas proferissem a última palavra sobre o fenômeno da psicografia. A polêmica, no entanto, que parecia não ter fim, gerava o constrangimento da família em relação aos editores da W.M. Jackson, que tinham contrato com os Campos e se sentiam prejudicados com a concorrência das obras mediúnicas. Por conseguinte, esse prejuízo atingia a família do escritor. A partir dessas considerações, a ação pedia que a Justiça examinasse a hipótese espírita, através de todas as provas científicas possíveis, e declarasse se o autor dessa obra literária era ou não o “Espírito de Humberto de Campos”. Se a conclusão fosse negativa, requeriam-se a apreensão dos exemplares em circulação e as devidas punições aos responsáveis pelos livros. Se positiva, requeria-se uma decisão quanto aos direitos autorais da obra mediúnica: se pertenceriam à família do escritor ou à FEB. 51 A principal referência sobre o caso Humberto de Campos é o livro de Miguel Timponi A psicografia ante os tribunais, ainda publicado pela FEB.  A ação requisitava ainda a presença, para depoimento, dos representantes legais da FEB, de Chico Xavier e, inclusive, do “Espírito de Humberto de Campos”, que, através do médium, deveria demonstrar sua sobrevivência e operosidade. Os suplicantes, porém, reconheciam as dificuldades de ordem legal para o julgamento do caso, uma vez que a legislação não contemplava esse tipo de disputa. Em 23 de agosto de 1944, o juiz João Frederico Mourão Russell considerou inepta a ação declaratória. Os principais argumentos para a decisão foram: 1. Ao morrer, o indivíduo deixa de possuir direitos civis, de modo que, morto, Humberto de Campos não poderia readquiri-los52;2. Os direitos autorais herdáveis se limitam aos referentes às obras do escritor produzidas antes de sua morte53; 3. Uma ação declaratória deve requerer a simples declaração de existência ou inexistência de uma relação jurídica; isso não ocorria na ação em pauta, que requisitava a declaração da Justiça sobre a existência ou não de um fato, do qual, hipoteticamente, pudessem surgir relações jurídicas. A ação, portanto, resumia-se à mera consulta, função que não cabe ao Poder Judiciário. A família do escritor recorreu da decisão, mas a Justiça reafirmou a impropriedade da ação declaratória, em 3 de novembro de 1944. O caso Humberto de Campos, por causa de sua singularidade, teve grande repercussão na imprensa, ao longo do andamento do processo. Para Humberto de Campos e Chico Xavier, não era inédita a discussão sobre direitos autorais de obras mediúnicas atribuídas a escritores renomados. Ela aparece lê-se no despacho saneador: “Ora, nos termos do artigo 10 do Código Civil ‘a existência da pessoa natural termina com a morte’; por conseguinte, com a morte se extinguem todos os direitos, e, bem assim, a capacidade jurídica de os adquirir. No nosso direito é absoluto o alcance da máxima ‘mors omnia solvit’. Assim, o grande escritor Humberto de Campos, depois de sua morte, não poderia ter adquirido direito de espécie alguma e, consequentemente, nenhum direito autoral poderá da pessoa dele ser transmitido para seus herdeiros e sucessores. ” (Apud Timponi, 1978, p. 209) Prossegue o juiz: “Nossa legislação protege a propriedade intelectual, em favor dos herdeiros, até certo limite de tempo, após a morte, mas, o que considera, para esse fim, como propriedade intelectual, são as obras produzidas pelo ‘de cujus’ em vida. O direito a estas é que se transmite aos herdeiros. Não pode, portanto, a suplicante pretender direitos autorais sobre supostas produções literárias atribuídas ao ‘espírito’ do autor. ” Sobre as questões jurídicas e as lacunas da legislação brasileira quanto aos direitos autorais de obras psicografadas, ver o livro Direito autoral na obra psicografada (Mota Júnior, 1999). 96 primeiramente em 10 de julho de 1932, em crônica daquele. Após comentar alguns traços de estilo nos poemas de Parnaso de além-túmulo, Humberto lançou a seguinte afronta: “Se eles [os poetas mortos] voltam a nos fazer concorrência com os seus versos perante o público e, sobretudo, perante os editores, dispensando-lhes o pagamento de direitos autorais, que destino terão os vivos que lutam, hoje, com tantas e tão poderosas dificuldades? Quebre, pois, cada espírito a sua lira na tábua do caixão em que deixou o corpo. Ou, então, encarne-se outra vez, e venha fazer a concorrência aqui em cima da terra, com o feijão e o arroz pela hora da vida55. Do contrário, não vale. ”56 Escritor profissional, a principal fonte de renda de Humberto de Campos eram seu salário como cronista e os direitos autorais de seus livros. Não é, pois, de se estranhar sua observação deveras “terrena” com relação aos potenciais concorrentes do outro mundo. O problema dos direitos autorais, agora sob outro ponto de vista, é retomado em 1937, no prefácio do livro de Chico Xavier Crônicas de além-túmulo, atribuído a Humberto de Campos: 55 Em Lázaro redivivo, primeiro livro assinado por Irmão X, encontramos o seguinte comentário sobre o Parnaso de além-túmulo, que alude a reações como essa de Humberto de Campos: “Porque alguns poetas e escritores desencarnados, de Portugal e do Brasil, se lembraram dos amigos, escrevendo-lhes algumas páginas de gratidão e saudade, alguns vivos da Terra, habituados ao jogo dos raciocínios palavrosos, reagiram fervorosamente, lançando reptos aos Espíritos do “outro mundo”, como os cavalheiros medievais, que atrevidamente lançavam a luva em desafio. Os desencarnados, porém, ouviram e sorriram, impassíveis, porque, de fato, não se sentiam na posição de contendores. Não haviam surrupiado dinheiro nem desrespeitado as leis vigentes; não escreveram palavras torpes, nem roubaram segredos dos grandes magnatas da indústria; não trouxeram invenções destruidoras, nem instituíram ódios políticos e raciais. Em suma, não chegaram nem mesmo a pedir aos amigos que acreditassem em suas palavras sinceras e fraternais. ” (Xavier, 1995b, p. 198) 56 Humberto de Campos tinha especial interesse na defesa dos direitos dos autores, em disputa com os editores. Na crônica “Manifesto à nação”, apresentou o seu “decálogo”, cujo oitavo mandamento é este: “Não farás contrato de edição de teus livros sem que os exemplares sejam numerados. Todos os editores são honradíssimos. Mas eles estão ricos e os escritores estão pobres. ” (Campos, 1960k, p. 116). Quando deputado federal, apresentou um projeto, em setembro de 1927, que dispunha sobre a propriedade literária. Este projeto, que recebeu parecer contrário da Comissão de Justiça, estabelecia um prazo máximo de dez anos para que os editores que comprassem os direitos de uma obra a publicassem. Caso não fosse publicada dentro desse período, os direitos voltariam a pertencer aos escritores (cf. Oliveira, 1990, p. 65-66). 97. Desta vez, não tenho necessidade de mandar os originais de minha produção literária a determinada casa editora, obedecendo a dispositivos contratuais, ressalvando-se a minha estima sincera pelo meu grande amigo José Olímpio. A lei já não cogita mais da minha existência, pois, do contrário, as atividades e os possíveis direitos dos mortos representariam séria ameaça à tranquilidade dos vivos. Enquanto aí consumia o fosfato do cérebro para acudir aos imperativos do estômago, posso agora dar o volume sem retribuição monetária. O médium está satisfeito com a sua vida singela, dentro da pauta evangélica do “dai de graça o que de graça recebeste” e a Federação Espírita Brasileira, instituição venerável que o Prefeito Pedro Ernesto reconheceu de utilidade pública, cuja Livraria vai imprimir o meu pensamento, é sobejamente conhecida no Rio de Janeiro, pelas suas respeitáveis finalidades sociais [...]. (Xavier, 1998a, p. 13-14) Nesse trecho, que serve como exemplo da configuração autoral da série mediúnica, o autor empírico (Chico Xavier) torna-se personagem do autor espiritual (Humberto de Campos), que, em primeira pessoa, pronuncia-se do além-túmulo. Sua justificativa para a comercialização das páginas psicografadas envolve uma referência a Chico Xavier, que abria mão dos direitos autorais de seus livros57, e outra à editora, cujas “respeitáveis finalidades sociais” seriam beneficiadas com a venda dos escritos mediúnicos. Em 15 de julho de 1944, Chico Xavier psicografou um texto, também assinado por Humberto de Campos, a respeito do processo judicial que estava em andamento. O escrito, antes inédito, foi publicado no livro de Miguel Timponi. Após lamentar o sensacionalismo em torno da demanda, comentou: 57 Em entrevista ao jornalista Valentim Lorenzetti, em 1967, disse Chico Xavier, a respeito dos direitos autorais de seus livros: “Nunca recebi cousa alguma pela venda dos livros de nossos Amigos Espirituais, por intermédio de minhas faculdades mediúnicas, de vez que esses livros são de autoria deles, cabendo-me tão-somente a alegria de cooperar com eles, os amigos da Vida Maior, na função de intermediário, durante as horas de cada dia que posso dar ao serviço mediúnico.” (Apud Barbosa, 1997, p. 138) 98 Esqueci-me de que o pseudônimo é o refúgio dos escritores incompreendidos e, como a legislação de meu País não decretou, até agora, qualquer medida de restrição ao uso do nome dos “mortos”, por eles mesmos, acreditei na possibilidade do esforço perseverante e tranquilo, continuando a usar o meu no intercâmbio com os famintos da felicidade, com quem fiz causa comum, desde muitos anos. Eis, porém, que comparecem meus filhos58 diante da Justiça, reclamando uma sentença declaratória. Querem saber, por intermédio do Direito humano, se eu sou eu mesmo, como se as leis terrestres, respeitabilíssimas embora, pudessem substituir os olhos do coração. Abre-se o mecanismo processual e o escândalo jornalístico acende a fogueira da opinião pública. Exigem meus filhos a minha patente literária e, para isso, recorrem à petição judicial. Não precisavam, todavia, movimentar o exército dos parágrafos e atormentar o cérebro dos juízes. Que é semelhante reclamação para quem já lhes deu a vida da sua vida? Que é um nome, simples ajuntamento de sílabas, sem maior significação? Ninguém conhece, na Terra, os nomes dos elevados cooperadores de Deus, que sustentam as leis universais; entretanto, são elas executadas sem esquecimento de um til. (Apud Timponi, 1978, p. 56). Essa provocadora passagem toca em problemas de variada ordem, como as consequências jurídicas e familiares da atribuição de autoria a textos mediúnicos; a noção de autoridade relacionada ao uso de nomes civis anônimos e públicos; as relações entre um autor e os textos por ele produzidos. Quanto a este último, a família do escritor solicitava que a Justiça reconhecesse ou rejeitasse a “patente literária” de Humberto de Campos nos textos escritos por Chico Xavier. Mas os próprios autos do processo demonstravam que a questão não era passível de um objetivismo cartorial. A parte literária da primeira defesa da FEB à ação declaratória, intitulada “Os dois Humbertos: um só estilo, uma só alma, um só sentimento” (Timponi, 1978, p. 177-205), foi elaborada pelo jornalista Indalício Mendes. Ele selecionou trechos 58 Note-se a flagrante omissão à viúva, provavelmente a principal responsável pela ação. Na extensa série mediúnica, encontrei apenas uma referência, indireta, a ela. 99 de três livros de “Humberto de Campos, homem” – Sombras que sofrem; Lagartas e libélulas; Um sonho de pobre – e dos quatro primeiros livros de “Humberto de Campos, Espírito”. As passagens da série mediúnica foram misturadas com as outras e os temas semelhantes foram aproximados. Ao todo, eram 5citações enumeradas, cujas referências foram reveladas apenas na última página. De acordo com o título da seção, o objetivo de Indalício era sugerir que um mesmo autor escrevera todos aqueles trechos, visto que, com base somente nas citações, parecia bem difícil decidir quais passagens provinham de textos de Humberto de Campos e quais procediam dos livros de Chico Xavier. Na etapa inicial da ação declaratória, os herdeiros de Humberto de Campos pleiteavam que o mérito literário dos textos mediúnicos, sobre o qual não se pronunciavam, fosse examinado por especialistas, que deveriam definir quem era o autor daqueles escritos. No entanto, essa tática foi modificada após a primeira decisão da Justiça, que considerou improcedente a ação. No agravo apresentado contra o resultado judicial, a família resolveu emitir uma opinião a respeito da série mediúnica: “A obra é profundamente inferior. E não só está eivada de imperdoáveis vícios de linguagem e profundo mau gosto literário, como é paupérrima de imaginação e desprovida de qualquer originalidade. Além disso, o que é aproveitável não passa de grosseiro plágio, não só de ideias existentes na obra publicada em vida do escritor, como de trechos inteiros, o que é de fácil verificação. ” (Apud Timponi, 1978, p. 221) O parecer deixava claro que, nessa nova fase do processo, a família do escritor decidira sustentar que era falsa aquela atribuição de autoria. O anexo do agravo continha as ocorrências dos tais “vícios de linguagem”. Eram 24 trechos que teriam problemas de cacofonia; por exemplo: nossa ação; vossa ação; tolher-lhes aí; abriga-se aí; amargas tocam; larga ação; toda uma ação; tua ação; dessa ação; uma ação; fala assim; for por ti; expôs ele; marco divino; longos anos; nunca atravessou. Do outro lado, a defesa da FEB contra-atacava. Dizia que aquelas passagens não feriam o ouvido de ninguém e, por sua vez, apresentava exemplos de cacófatos na obra de escritores consagrados da língua portuguesa, e também em livros de Humberto de Campos. 100 as três ocorrências apresentadas como plágio provinham de passagens de O Brasil anedótico, livro organizado por Humberto de Campos. De fato, este era um ponto curioso, uma vez que o plágio pressupõe a existência de dois escritores: o plagiador e o plagiado. Mas a ação declaratória pedia justamente que a Justiça decidisse se o autor da série mediúnica era ou não o próprio Humberto de Campos. De qualquer forma, fosse quem fosse, o autor reivindicava para si a “paternidade” intelectual dos escritos de Humberto de Campos, e por isso fazia questão de demonstrar que possuía conhecimentos do repertório literário do autor. Definitivamente, não haveria acordo com relação à autoria dos textos debatidos. No Diário da tarde de 28 de julho de 1944, o já mencionado psiquiatra J. Melo Teixeira resumiu a motivação mais evidente do caso Humberto de Campos e uma de suas implicações: A questão, ora em foco, da autoria real das obras de além-túmulo, publicadas sob o nome de Humberto de Campos, no fundo, não passa de uma mera disputa de lucros comerciais, em que o editor dos livros de Humberto vivo se vê prejudicado pela concorrência que lhe estão fazendo os editores de Humberto de além-túmulo. Quem deve exultar com o caso é o mundo espírita, pois, se a Justiça terrena reconhecer que à família e ao editor privilegiado cabem os direitos autorais dos trabalhos psicografados por Chico Xavier, implicitamente ficará reconhecida por sentença judiciária – que coisa gozada! – A existência do mundo invisível em atividades tangíveis neste mísero planeta em que habitamos. (Apud Timponi, 1978, p. 312). Chama a atenção, nas observações de Melo Teixeira, como dois problemas de ordem aparentemente tão diversa cruzavam-se nas discussões sobre o processo. Aliás, a implicação espiritualista, embora só existisse no horizonte de determinada decisão judicial, tocava em fronteiras religiosas. E com relação a este problema, o Diário da Noite de 29 de 59 Sobre as características do plágio, ver a tese de doutorado de Christofe, 1996. 101 julhos de 1944 publicou uma entrevista com Galdino Moreira, então presidente do Sínodo Central Presbiteriano Brasileiro. O repórter solicitou a opinião do líder religioso sobre o “rumoroso processo” que estava em andamento. Ele respondeu: O amigo [...] acaba de empregar, sobre este assunto, a frase – “rumoroso processo”. Encaro-o, porém, sob aspecto bem mais sério e mais grave do que parece. Rumoroso caso, concordo, pelo inédito que o cerca. Curioso, será, ainda, pela natureza própria da questão. Quanto ao aspecto puramente jurídico, em face do direito positivo, julgo-o nulo “ab initio”. Quero crer que, em face do atestado de óbito que existe, certo e autêntico, desde 5 de dezembro de 1934, dia saudoso quando faleceu neste mundo o famoso escritor maranhense Humberto de Campos, encerrou-se para as lides e tribunais humanos a existência objetiva do notável escritor. A sobrevivência ou não de seu espírito no mundo espiritual e o fato ou não-fato das possibilidades de agir esse espírito, desta ou daquela maneira, sob tais ou quais condições “sui-generis”, já não são mais assunto para exame e foro terrenos, e sim matéria essencialmente metafísica, caso de fé, de doutrina e teoria totalmente sujeita ao critério da livre escolha dos indivíduos. Vê, pois, o meu redator que, inicialmente, não vejo no processo ora em andamento base alguma para solução jurídica eficaz, convincente e regulamentar. É de si próprio, este assunto, de todo em todo, problema fora da alçada dos tribunais e do direito positivo. (Apud Timponi, 1978, p. 287) A consideração de que o processo era bem mais “grave” do que parecia se justificava – na continuação da entrevista – pela possibilidade de a Justiça extrapolar os seus limites, interferindo em domínios metafísicos concernentes às religiões. No entendimento de Galdino Moreira, se os juízes sentenciassem sobre a verdadeira autoria dos textos de Chico Xavier, a liberdade de consciência e de crença, garantida pela Constituição, poderia ser ferida. E, por consequência, o precedente poderia também ameaçar a liberdade de crença em outras religiões, como a de Galdino.

 

. O CASO HUMBERTO DE CAMPOS Em 1944 ocorreu o caso Humberto de Campos: os detentores dos direitos autorais da obra do escritor – a viúva Catharina Vergolino de Campos e os filhos do casal – ingressaram na Justiça com uma ação declaratória contra Chico Xavier e a FEB 51. Alegavam que, após a morte do autor de Sombras que sofrem, produções literárias atribuídas ao “Espírito de Humberto de Campos”, psicografadas por Chico Xavier, começaram a ser editadas pela FEB. Até aquele ano, a série era composta por cinco volumes: Crônicas de além-túmulo; Brasil, coração do mundo, pátria do evangelho; Novas mensagens; Boa nova e Reportagens de além-túmulo. Os familiares do escritor argumentavam que esses livros tinham sucesso de venda porque eram atribuídos a Humberto de Campos, que detinha “grande popularidade entre o público brasileiro de todos os níveis intelectuais” (Apud Timponi, 1978, p. 11). Dizia-se na ação que, ante a celeuma provocada por tais livros, a família do escritor vinha se mantendo em silêncio, aguardando que críticos e cientistas proferissem a última palavra sobre o fenômeno da psicografia. A polêmica, no entanto, que parecia não ter fim, gerava o constrangimento da família em relação aos editores da W.M. Jackson, que tinham contrato com os Campos e se sentiam prejudicados com a concorrência das obras mediúnicas. Por conseguinte, esse prejuízo atingia a família do escritor. A partir dessas considerações, a ação pedia que a Justiça examinasse a hipótese espírita, através de todas as provas científicas possíveis, e declarasse se o autor dessa obra literária era ou não o “Espírito de Humberto de Campos”. Se a conclusão fosse negativa, requeriam-se a apreensão dos exemplares em circulação e as devidas punições aos responsáveis pelos livros. Se positiva, requeria-se uma decisão quanto aos direitos autorais da obra mediúnica: se pertenceriam à família do escritor ou à FEB. 51 A principal referência sobre o caso Humberto de Campos é o livro de Miguel Timponi A psicografia ante os tribunais, ainda publicado pela FEB. 95 A ação requisitava ainda a presença, para depoimento, dos representantes legais da FEB, de Chico Xavier e, inclusive, do “Espírito de Humberto de Campos”, que, através do médium, deveria demonstrar sua sobrevivência e operosidade. Os suplicantes, porém, reconheciam as dificuldades de ordem legal para o julgamento do caso, uma vez que a legislação não contemplava esse tipo de disputa. Em 23 de agosto de 1944, o juiz João Frederico Mourão Russell considerou inepta a ação declaratória. Os principais argumentos para a decisão foram. Ao morrer, o indivíduo deixa de possuir direitos civis, de modo que, morto, Humberto de Campos não poderia readquiri-los52;2. Os direitos autorais herdáveis se limitam aos referentes às obras do escritor produzidas antes de sua morte53; 3. Uma ação declaratória deve requerer a simples declaração de existência ou inexistência de uma relação jurídica; isso não ocorria na ação em pauta, que requisitava a declaração da Justiça sobre a existência ou não de um fato, do qual, hipoteticamente, pudessem surgir relações jurídicas. A ação, portanto, resumia-se à mera consulta, função que não cabe ao Poder Judiciário. A família do escritor recorreu da decisão, mas a Justiça reafirmou a impropriedade da ação declaratória, em 3 de novembro de 1944. O caso Humberto de Campos, por causa de sua singularidade, teve grande repercussão na imprensa, ao longo do andamento do processo para Humberto de Campos e Chico Xavier, não era inédita a discussão sobre direitos autorais de obras mediúnicas atribuídas a escritores renomados. Ela aparece lê-se no despacho saneador: “Ora, nos termos do artigo 10 do Código Civil ‘a existência da pessoa natural termina com a morte’; por conseguinte, com a morte se extinguem todos os direitos, e, bem assim, a capacidade jurídica de os adquirir. No nosso direito é absoluto o alcance da máxima ‘mors omnia solvit’. Assim, o grande escritor Humberto de Campos, depois de sua morte, não poderia ter adquirido direito de espécie alguma e, consequentemente, nenhum direito autoral poderá da pessoa dele ser trans (Apud Timponi, 1978, p. 209). Prossegue o juiz: “Nossa legislação protege a propriedade intelectual, em favor dos herdeiros, até certo limite de tempo, após a morte, mas, o que considera, para esse fim, como propriedade intelectual, são as obras produzidas pelo ‘de cujus’ em vida. O direito a estas é que se transmite aos herdeiros. Não pode, portanto, a suplicante pretender direitos autorais sobre supostas produções literárias atribuídas ao ‘espírito’ do autor. ” (Apud Timponi, 1978, p. 209) 54 Sobre as questões jurídicas e as lacunas da legislação brasileira quanto aos direitos autorais de obras psicografadas, ver o livro Direito autoral na obra psicografada (Mota Júnior, 1999).  Primeiramente em 10 de julho de 1932, em crônica daquele. Após comentar alguns traços de estilo nos poemas de Parnaso de além-túmulo, Humberto lançou a seguinte afronta: “Se eles [os poetas mortos] voltam a nos fazer concorrência com os seus versos perante o público e, sobretudo, perante os editores, dispensando-lhes o pagamento de direitos autorais, que destino terão os vivos que lutam, hoje, com tantas e tão poderosas dificuldades? Quebre, pois, cada espírito a sua lira na tábua do caixão em que deixou o corpo. Ou, então, encarne-se outra vez, e venha fazer a concorrência aqui em cima da terra, com o feijão e o arroz pela hora da vida55. Do contrário, não vale. ” Escritor profissional, a principal fonte de renda de Humberto de Campos eram seu salário como cronista e os direitos autorais de seus livros. Não é, pois, de se estranhar sua observação deveras “terrena” com relação aos potenciais concorrentes do outro mundo. O problema dos direitos autorais, agora sob outro ponto de vista, é retomado em 1937, no prefácio do livro de Chico Xavier Crônicas de além-túmulo, atribuído a Humberto de Campos:  Em Lázaro redivivo, primeiro livro assinado por Irmão X, encontramos o seguinte comentário sobre o Parnaso de além-túmulo, que alude a reações como essa de Humberto de Campos: “Porque alguns poetas e escritores desencarnados, de Portugal e do Brasil, se lembraram dos amigos, escrevendo-lhes algumas páginas de gratidão e saudade, alguns vivos da Terra, habituados ao jogo dos raciocínios palavrosos, reagiram fervorosamente, lançando reptos aos Espíritos do “outro mundo”, como os cavalheiros medievais, que atrevidamente lançavam a luva em desafio. Os desencarnados, porém, ouviram e sorriram, impassíveis, porque, de fato, não se sentiam na posição de contendores. Não haviam surrupiado dinheiro nem desrespeitado as leis vigentes; não escreveram palavras torpes, nem roubaram segredos dos grandes magnatas da indústria; não trouxeram invenções destruidoras, nem instituíram ódios políticos e raciais. Em suma, não chegaram nem mesmo a pedir aos amigos que acreditassem em suas palavras sinceras e fraternais. ” (Xavier, 1995b, p. 198) Humberto de Campos tinha especial interesse na defesa dos direitos dos autores, em disputa com os editores. Na crônica “Manifesto à nação”, apresentou o seu “decálogo”, cujo oitavo mandamento é este: “Não farás contrato de edição de teus livros sem que os exemplares sejam numerados. Todos os editores são honradíssimos. Mas eles estão ricos e os escritores estão pobres. ” (Campos, 1960k, p. 116). Quando deputado federal, apresentou um projeto, em setembro de 1927, que dispunha sobre a propriedade literária. Este projeto, que recebeu parecer contrário da Comissão de Justiça, estabelecia um prazo máximo de dez anos para que os editores que comprassem os direitos de uma obra a publicassem. Caso não fosse publicada dentro desse período, os direitos voltariam a pertencer aos escritores (cf. Oliveira, 1990, p. 65-66).  Desta vez, não tenho necessidade de mandar os originais de minha produção literária a determinada casa editora, obedecendo a dispositivos contratuais, ressalvando-se a minha estima sincera pelo meu grande amigo José Olímpio. A lei já não cogita mais da minha existência, pois, do contrário, as atividades e os possíveis direitos dos mortos representariam séria ameaça à tranquilidade dos vivos. Enquanto aí consumia o fosfato do cérebro para acudir aos imperativos do estômago, posso agora dar o volume sem retribuição monetária. O médium está satisfeito com a sua vida singela, dentro da pauta evangélica do “dai de graça o que de graça recebeste” e a Federação Espírita Brasileira, instituição venerável que o Prefeito Pedro Ernesto reconheceu de utilidade pública, cuja Livraria vai imprimir o meu pensamento, é sobejamente conhecida no Rio de Janeiro, pelas suas respeitáveis finalidades sociais [...]. (Xavier, 1998a, p. 13-14) nesse trecho, que serve como exemplo da configuração autoral da série mediúnica, o autor empírico (Chico Xavier) torna-se personagem do autor espiritual (Humberto de Campos), que, em primeira pessoa, pronuncia-se do além-túmulo. Sua justificativa para a comercialização das páginas psicografadas envolve uma referência a Chico Xavier, que abria mão dos direitos autorais de seus livros57, e outra à editora, cujas “respeitáveis finalidades sociais” seriam beneficiadas com a venda dos escritos mediúnicos. Em 15 de julho de 1944, Chico Xavier psicografou um texto, também assinado por Humberto de Campos, a respeito do processo judicial que estava em andamento. O escrito, antes inédito, foi publicado no livro de Miguel Timponi. Após lamentar o sensacionalismo em torno da demanda, comentou:  Em entrevista ao jornalista Valentim Lorenzetti, em 1967, disse Chico Xavier, a respeito dos direitos autorais de seus livros: “Nunca recebi cousa alguma pela venda dos livros de nossos Amigos Espirituais, por intermédio de minhas faculdades mediúnicas, de vez que esses livros são de autoria deles, cabendo-me tão-somente a alegria de cooperar com eles, os amigos da Vida Maior, na função de intermediário, durante as horas de cada dia que posso dar ao serviço mediúnico.” (Apud Barbosa, 1997, p. 138) Esqueci-me de que o pseudônimo é o refúgio dos escritores incompreendidos e, como a legislação de meu País não decretou, até agora, qualquer medida de restrição ao uso do nome dos “mortos”, por eles mesmos, acreditei na possibilidade do esforço perseverante e tranquilo, continuando a usar o meu no intercâmbio com os famintos da felicidade, com quem fiz causa comum, desde muitos anos. Eis, porém, que comparecem meus filhos58 diante da Justiça, reclamando uma sentença declaratória. Querem saber, por intermédio do Direito humano, se eu sou eu mesmo, como se as leis terrestres, respeitabilíssimas embora, pudessem substituir os olhos do coração. Abre-se o mecanismo processual e o escândalo jornalístico acende a fogueira da opinião pública. Exigem meus filhos a minha patente literária e, para isso, recorrem à petição judicial. Não precisavam, todavia, movimentar o exército dos parágrafos e atormentar o cérebro dos juízes. Que é semelhante reclamação para quem já lhes deu a vida da sua vida? Que é um nome, simples ajuntamento de sílabas, sem maior significação? Ninguém conhece, na Terra, os nomes dos elevados cooperadores de Deus, que sustentam as leis universais; entretanto, são elas executadas sem esquecimento de um til. (Apud Timponi, 1978, p. 56). Essa provocadora passagem toca em problemas de variada ordem, como as consequências jurídicas e familiares da atribuição de autoria a textos mediúnicos; a noção de autoridade relacionada ao uso de nomes civis anônimos e públicos; as relações entre um autor e os textos por ele produzidos. Quanto a este último, a família do escritor solicitava que a Justiça reconhecesse ou rejeitasse a “patente literária” de Humberto de Campos nos textos escritos por Chico Xavier. Mas os próprios autos do processo demonstravam que a questão não era passível de um objetivismo cartorial. A parte literária da primeira defesa da FEB à ação declaratória, intitulada “Os dois Humbertos: um só estilo, uma só alma, um só sentimento” (Timponi, 1978, p. 177-205), foi elaborada pelo jornalista Indalício Mendes. Ele selecionou trechos 58 Note-se a flagrante omissão à viúva, provavelmente a principal responsável pela ação. Na extensa série mediúnica, encontrei apenas uma referência, indireta, a ela de três livros de “Humberto de Campos, homem” – Sombras que sofrem; Lagartas e libélulas; Um sonho de pobre – e dos quatro primeiros livros de “Humberto de Campos, Espírito”. As passagens da série mediúnica foram misturadas com as outras e os temas semelhantes foram aproximados. Ao todo, eram 55 citações enumeradas, cujas referências foram reveladas apenas na última página. De acordo com o título da seção, o objetivo de Indalício era sugerir que um mesmo autor escrevera todos aqueles trechos, visto que, com base somente nas citações, parecia bem difícil decidir quais passagens provinham de textos de Humberto de Campos e quais procediam dos livros de Chico Xavier. Na etapa inicial da ação declaratória, os herdeiros de Humberto de Campos pleiteavam que o mérito literário dos textos mediúnicos, sobre o qual não se pronunciavam, fosse examinado por especialistas, que deveriam definir quem era o autor daqueles escritos. No entanto, essa tática foi modificada após a primeira decisão da Justiça, que considerou improcedente a ação. No agravo apresentado contra o resultado judicial, a família resolveu emitir uma opinião a respeito da série mediúnica: “A obra é profundamente inferior. E não só está eivada de imperdoáveis vícios de linguagem e profundo mau gosto literário, como é paupérrima de imaginação e desprovida de qualquer originalidade. Além disso, o que é aproveitável não passa de grosseiro plágio, não só de ideias existentes na obra publicada em vida do escritor, como de trechos inteiros, o que é de fácil verificação. ” (Apud Timponi, 1978, p. 221) O parecer deixava claro que, nessa nova fase do processo, a família do escritor decidira sustentar que era falsa aquela atribuição de autoria. O anexo do agravo continha as ocorrências dos tais “vícios de linguagem”. Eram 24 trechos que teriam problemas de cacofonia; por exemplo: nossa ação; vossa ação; tolher-lhes aí; abriga-se aí; amargas tocam; larga ação; toda uma ação; tua ação; dessa ação; uma ação; fala assim; for por ti; expôs ele; marco divino; longos anos; nunca atravessou. Do outro lado, a defesa da FEB contra-atacava. Dizia que aquelas passagens não feriam o ouvido de ninguém e, por sua vez, apresentava exemplos de cacófatos na obra de escritores consagrados da língua portuguesa, e também em livros de Humberto de Campos. 100. As três ocorrências apresentadas como plágio provinham de passagens de O Brasil anedótico, livro organizado por Humberto de Campos. De fato, este era um ponto curioso, uma vez que o plágio pressupõe a existência de dois escritores: o plagiador e o plagiado59. Mas a ação declaratória pedia justamente que a Justiça decidisse se o autor da série mediúnica era ou não o próprio Humberto de Campos. De qualquer forma, fosse quem fosse, o autor reivindicava para si a “paternidade” intelectual dos escritos de Humberto de Campos, e por isso fazia questão de demonstrar que possuía conhecimentos do repertório literário do autor. Definitivamente, não haveria acordo com relação à autoria dos textos debatidos. No Diário da tarde de 28 de julho de 1944, o já mencionado psiquiatra J. Melo Teixeira resumiu a motivação mais evidente do caso Humberto de Campos e uma de suas implicações: A questão, ora em foco, da autoria real das obras de além-túmulo, publicadas sob o nome de Humberto de Campos, no fundo, não passa de uma mera disputa de lucros comerciais, em que o editor dos livros de Humberto vivo se vê prejudicado pela concorrência que lhe estão fazendo os editores de Humberto de além-túmulo. Quem deve exultar com o caso é o mundo espírita, pois, se a Justiça terrena reconhecer que à família e ao editor privilegiado cabem os direitos autorais dos trabalhos psicografados por Chico Xavier, implicitamente ficará reconhecida por sentença judiciária – que coisa gozada! – a existência do mundo invisível em atividades tangíveis neste mísero planeta em que habitamos. (Apud Timponi, 1978, p. 312) Chama a atenção, nas observações de Melo Teixeira, como dois problemas de ordem aparentemente tão diversa cruzavam-se nas discussões sobre o processo. Aliás, a implicação espiritualista, embora só existisse no horizonte de determinada decisão judicial, tocava em fronteiras religiosas. E com relação a este problema, o Diário da Noite de 29 de 59 Sobre as características do plágio, ver a tese de doutorado de Christofe, 1996.  Julho de 1944 publicou uma entrevista com Galdino Moreira, então presidente do Sínodo Central Presbiteriano Brasileiro. O repórter solicitou a opinião do líder religioso sobre o “rumoroso processo” que estava em andamento. Ele respondeu: O amigo [...] acaba de empregar, sobre este assunto, a frase – “rumoroso processo”. Encaro-o, porém, sob aspecto bem mais sério e mais grave do que parece. Rumoroso caso, concordo, pelo inédito que o cerca. Curioso, será, ainda, pela natureza própria da questão. Quanto ao aspecto puramente jurídico, em face do direito positivo, julgo-o nulo “ab initio”. Quero crer que, em face do atestado de óbito que existe, certo e autêntico, desde 5 de dezembro de 1934, dia saudoso quando faleceu neste mundo o famoso escritor maranhense Humberto de Campos, encerrou-se para as lides e tribunais humanos a existência objetiva do notável escritor. A sobrevivência ou não de seu espírito no mundo espiritual e o fato ou não-fato das possibilidades de agir esse espírito, desta ou daquela maneira, sob tais ou quais condições “sui-generis”, já não são mais assunto para exame e foro terrenos, e sim matéria essencialmente metafísica, caso de fé, de doutrina e teoria totalmente sujeita ao critério da livre escolha dos indivíduos. Vê, pois, o meu redator que, inicialmente, não vejo no processo ora em andamento base alguma para solução jurídica eficaz, convincente e regulamentar. É de si próprio, este assunto, de todo em todo, problema fora da alçada dos tribunais e do direito positivo. (Apud Timponi, 1978, p. 287) A consideração de que o processo era bem mais “grave” do que parecia se justificava – na continuação da entrevista – pela possibilidade de a Justiça extrapolar os seus limites, interferindo em domínios metafísicos concernentes às religiões. No entendimento de Galdino Moreira, se os juízes sentenciassem sobre a verdadeira autoria dos textos de Chico Xavier, a liberdade de consciência e de crença, garantida pela Constituição, poderia ser ferida. E, por consequência, o precedente poderia também ameaçar a liberdade de crença em outras religiões, como a de Galdino.

 

MAIS UM CASO PROBLEMÁTICO DE ATRIBUIÇÃO DE AUTORIA Acompanhemos agora uma consequência do problema judicial de 1944, paralela à série Humberto de Campos/Irmão X. Refiro-me à atribuição de autoria ao livro Voltei e, para tal, à relação entre Chico Xavier e Frederico Figner (ou Fred Figner). Nascido em 1866 na Boêmia, atual República Checa, filho de israelitas, foi Figner quem implantou e divulgou no Brasil o fonógrafo, aparelho inventado por Thomas Edison. Em 1900, fundou no Rio de Janeiro a Casa Edison, ponto inicial do mercado musical brasileiro; em poucos anos, tornou-se milionário. No início do século XX, converteu-se ao espiritismo; participava diariamente do auxílio mediúnico a enfermos, na FEB, da qual chegou à vice-presidência. Manteve no Correio da Manhã75 uma coluna de crônicas espíritas. Morreu em 19 de janeiro de 1947, deixando três filhas76. Figner e Chico Xavier eram amigos; trocaram correspondências por dezessete anos consecutivos (Schubert, 1991). Em carta de 30 de janeiro de 1947, Chico Xavier conta a Wantuil que ele fora informado, pelas filhas de Figner, de que este lhe destinara um legado de cem mil cruzeiros. Chico Xavier diz então a Wantuil que não aceitaria para si o dinheiro, o qual deveria ser doado diretamente à FEB, para financiar a “instalação de novas oficinas para o livro espírita” (Apud Schubert, 1991, p. 124). Esta seria, segundo Chico Xavier, a melhor homenagem que ele poderia prestar a Figner. Em carta de 22 de novembro de 1947, escreve a Wantuil: “Tenho estado com o nosso estimado Sr. Figner em espírito. Está contente e tranquilo, não obstante mais pensativo. Vejo-o remoçado e forte e tem conversado longamente comigo, o que me tem trazido grande emoção. No caso de recebermos alguma coisa dele, como agiremos? 5 Jornal, aliás, em que Humberto de Campos manteve a seção “Vida literária”, entre 1928 e 1930.  Para maiores informações sobre Frederico Figner, ver os artigos de Zêus Wantuil e de Viriato Correia (Wantuil, 1990, p. 340-354); o livro A Casa Edison e seu tempo (Franceschi, 2002); e os verbetes “Fred Figner” e “Casa Edison” no site http://www.dicionariompb.com.br/.  A respeito da prática de Chico Xavier de não aceitar para si doações e presentes vultosos, como o legado de Figner, ou de pouco valor material, ver a interpretação de Lewgoy (2004, p. 73-89): “Vivendo entre dois mundos: antropologia de uma santidade espírita”.  Precisamos de autorização da família para dar-lhe publicidade à palavra? Que dizes? Penso nisso, de antemão, porque ele promete escrever por meu intermédio e temo complicações. ” (Apud Schubert, 1991, p. 197) Três anos após o término do caso Humberto de Campos, Chico Xavier ainda teme a repetição de uma contenda semelhante. É digna de nota, no trecho acima, a extensão de suas projeções. Ele diz que está mantendo contato com o espírito de Figner, que planeja escrever por seu intermédio. A partir disso, pensa não apenas no futuro manuscrito, mas também no livro, que a FEB certamente publicaria, e no problema da atribuição da autoria, visto que a família de Figner poderia não autorizar que o nome do fundador da Casa Edison figurasse como “autor espiritual” de um livro mediúnico. Em 4 de janeiro de 1948, ele volta ao assunto: Queria guardar a surpresa, entretanto, não posso. Receba-a, pois. Estou recebendo as primeiras impressões do nosso amigo Sr. Figner, no além. É pensamento dele constituir delas um livro pequeno, tamanho “Lázaro Redivivo”78. São páginas de muito sabor para o meu coração. Peço-te para que esta notícia fique, por enquanto, entre nós dois, Ismael e o Sr. Gaio. Quando o trabalho ficar pronto, é minha intenção pedir-te dá-lo a conhecer à senhora filha dele, antes da publicação, para sabermos se ela consente em que o nome do pai figure na capa. Que achas? Tenho encontrado muito interesse e reconforto nas narrativas do nosso amigo que passou em janeiro findo. (Apud Schubert, 1991, p. 204) ainda preocupado com a reação da família de Figner, Chico Xavier diz a Wantuil que pretende dar-lhe a incumbência de levar o futuro texto mediúnico a uma filha do amigo que morrera há quase um ano. A propósito, as informações referentes a datas parecem ter grande relevância na produção de Chico Xavier. Em texto que ele psicografou em 7 de janeiro de 1948, assinado por Emmanuel, há a seguinte passagem: “Quanto ao trabalho do 78 Lázaro redivivo tem 263 páginas (Xavier, 1995b). Voltei, resultado do livro em projeto, terá 200 páginas (Xavier, 1997b). Nosso amigo Figner, desejamos seja o mesmo terminado até o dia 19 do corrente, dia que lhe comemora as núpcias com a liberdade espiritual. Assim desejamos proceder em homenagem ao companheiro que há dez anos nos oferecia mão forte à luta e que há um ano nos possibilitou a reafirmação do nosso amor à missão do livro. ” (Xavier, 2007, p. 377- 378) Com base em nova carta, de 18 de março de 1948, sabemos que, antes desta data, os escritos já haviam sido concluídos e datilografados; o original estava com as filhas de Figner: “Anotei o que dizes referentemente às Senhoras Figner. Caso não nos autorizem a fixação do nome de nosso amigo no trabalho, rogo-te devolver-nos o original datilográfico, a fim de ouvirmos o plano espiritual para o reajustamento necessário. Isto, depois que as Senhoras te restituírem o documento. Também creio que elas não nos darão a licença desejada. Espero os resultados da visita que a elas fará o nosso estimado Rocha Garcia. ” (Apud Schubert, 1991, p. 213) A provável fonte de Chico Xavier, quando diz que não crê na autorização das filhas de Figner, é um texto de 10 de março de 1948, assinado por Emmanuel, em que este, valendo-se de uma pretendida percepção de maior alcance, fala das repercussões do original entre as herdeiras: “as filhas do nosso amigo e irmão Figner, perplexas, hesitam ante a leitura das páginas paternais. Esperavam que ele não encontrasse, além da morte, outro esforço senão o de transpor a entrada do ‘Paraíso’. ” (Xavier, 2007, p. 385). Outro trecho da carta nos dá a impressão de que nem Chico Xavier nem Wantuil haviam providenciado uma cópia do original, que fora emprestado às filhas de Figner. No entanto, se levarmos em conta algumas recomendações expressas em texto de Emmanuel, em 18 de fevereiro de 1948, e dirigidas a Chico Xavier, é provável que houvesse uma cópia. Ficaríamos satisfeitos se puderdes remeter ao Rio o trabalho do nosso irmão Fred Figner. Cremos aconselhável a seguinte medida preliminar: confiareis a primeira via ao irmão Wantuil, que se incumbirá de levá-lo ao conhecimento das filhas do prezado companheiro, presentemente conosco, tentando obter da parte delas o necessário consentimento para que o nome paterno figure na apresentação do trabalho. Caso concordem, o Voltei poderá correr os caminhos normais. Todavia, na hipótese negativa, o nosso irmão Figner adotará um ‘nome universal’ para a nova luta em que se acha interessado. Enviareis, assim, a segunda via ao nosso amigo [Manuel] Quintão, explicando a ele a contingência em que nos achamos, perante a incerteza de uma aprovação ou de um veto familiar. Consideramos, por isso, mais acertado que as filhas do nosso companheiro leiam o trabalho paterno na cópia número um. (Xavier, 2007, p. 383) Esses cuidados, com vistas ao consentimento da família Figner, decorrem dos problemas enfrentados por Chico Xavier e pela FEB em 1944, no caso Humberto de Campos. De volta à carta a Wantuil, observe-se a importância que davam à atribuição da autoria: se as filhas realmente negassem a permissão, Chico Xavier deveria ouvir o plano espiritual para tomar novas decisões. Mas as herdeiras tardavam a resposta. Por meio da carta de 9 de abril de 1948, na qual Chico Xavier menciona o título do livro, sabemos que, até esta data, elas não haviam dado resposta: “Sobre o ‘Voltei’, penso que devemos esperar pela decisão das Senhoras Figner. Emmanuel é de opinião que não devemos precipitar e sim aguardar o tempo, de vez que não nos convém abrir luta de modo algum. ” (Apud Schubert, 1991, p. 218) A precaução continua. No trecho acima, surge novamente Emmanuel, envolvido na edição do futuro livro. A indefinição prosseguiu até o ano seguinte. Em carta de 28 de janeiro de 1949, descobrimos que a autorização para o uso do nome de Figner fora negada. O original continuava em posse das filhas:  A primeira menção ao título do livro aparece em texto de Emmanuel, de 11 de fevereiro de 1948: “Na próxima reunião, daremos algumas sugestões quanto à remessa do livro de impressões do nosso irmão Figner, que ele propõe seja intitulado Voltei. ” (Xavier, 2007, p. 382) 80 A referência a este trecho é a seguinte passagem de Emmanuel, escrita em 7 de abril de 1948: “Relativamente ao Voltei, somos de opinião devamos esperar mais tempo pelo parecer das irmãs Figner. Pelo menos, por alguns meses. Até dezembro próximo. Cabe-nos fazer tudo para evitar o ‘fermento dos fariseus’, em torno do serviço edificante. ” (Xavier, 2007, p. 390). Quanto ao livro do Sr. Figner, logo que nossas irmãs restituírem o original, peço-te encaminhá-lo para cá, a fim de receber as impressões do autor sobre a apresentação. O nosso devotado Emmanuel me diz que ele escolherá um pseudônimo semi-reconhecível em nosso meio doutrinário, não se oferecendo ocasião aos descendentes para um processo escandaloso e dispensável. Seria muito interessante se conseguisses, habilidosamente, que as senhoras nos devolvam o original e, de posse dele, farás o favor de enviar para cá, em meu nome, e logo que for “retificado” o nome do autor será reconduzido às tuas mãos, sim? (Apud Schubert, 1991, p. 250) O trecho não esclarece a circunstância da recusa, que fica implícita. Chico Xavier quer de volta o original. Ele pretende ouvir a opinião de Figner para tomar novas providências. A frase em que menciona Emmanuel é ambígua: não se sabe se o pronome “ele” se refere a Emmanuel ou a Figner. De qualquer forma, pretende-se agora criar um “pseudônimo semi-reconhecível”, que cumpra dupla função: ser identificado no meio espírita como uma máscara de Figner – que mais mostre do que esconda – e, por outro lado, não oferecer possibilidade de a família processar o médium e a editora, como no caso Humberto de Campos. Na carta de 10 de março de 1949, Chico Xavier volta a tratar do pseudônimo: “em reunião íntima de ontem, manifestou-se Emmanuel e pediu que no ‘Voltei’ o nome do nosso amigo Sr. Fred Figner passe a ser ‘Irmão Frederico’81. Desse modo, não precisas devolver-me o original. ” (Apud Schubert, 1991, p. 253-254). Dá-se a entender, até aqui, 81 Este trecho de carta tem como base a seguinte passagem da psicografia de Chico Xavier, assinada por Emmanuel, de 9 de março de 1949: “Relativamente ao livro do nosso amigo Figner, combinamos seja empregado o nome ‘Irmão Frederico’, apenas. Não nos convém disputar com inimigos, quanto mais com amigos, que só nos compete respeitar e prezar, quais sejam os parentes encarnados que ele deixou em vosso círculo. Sugerimos não seja o original restituído às nossas mãos e sim pedimos para que o nosso companheiro presente, tão logo possa, faça uma releitura do Voltei, assinalando todas as páginas em que o nome ‘Figner’ esteja grafado, permutando-o por ‘Frederico’. Daremos ciência disto ao irmão Wantuil e o volume aqui retificado será remetido, então, ao nosso amigo Quintão, de acordo com o programa de sempre. Acreditamos que assim solucionaremos o assunto. ” (Xavier, 2007, p. 446) 121 que a única pendência para a publicação era a adoção do pseudônimo. Mas três dias depois, em nova carta, escreve Chico Xavier a Wantuil: [...] quanto ao “Voltei”, Emmanuel insiste em que o nome a adotar-se seja o de “Irmão Frederico” e nos recomenda que ainda nos serão apresentadas umas duas ou três corrigendas para o texto, para que a identificação verbal não seja feita. São as passagens em que ele fala das crônicas, no “Correio da Manhã”, e em que diz (se diz) introdutor do fonógrafo de Edison. Colherei a opinião de Emmanuel para as retificações e as enviarei. Diz o nosso amigo que não convêm as reticências, porque devemos tratar de fazer assentamentos definitivos de serviço para que, em nos desencarnando, não tenhamos a aflição de vir consertar. (...) [sic] As reticências toda vez que vistas acordariam nos leitores um risinho produtor de vibrações desagradáveis para o Espírito do Sr. Figner, depois de haver possuído ele tantos nomes através de muitas reencarnações, ele é o que é – irmão da Humanidade e filho de Deus. As filhas, desse modo, não terão com que proclamar afirmativas públicas desse ou daquele teor e estaremos tranquilos por nossa vez. (Apud Schubert, 1991, p. 262) O termo “insiste”, do início do trecho, sugere que alguém propusera um outro pseudônimo. Mas não bastaria um pseudônimo: alguns trechos do volume deveriam ser alterados, para que o narrador, em primeira pessoa, não fosse identificado diretamente como Fred Figner. Chico Xavier menciona duas ocorrências que deveriam ser reescritas. O ponto que mais chama a atenção, porém, é sua justificativa para vetar as reticências em passagens a serem modificadas. Essa pontuação lacunar daria a entender que algo, relacionado à identidade de Figner, não pôde ser dito – o que denotaria queixa e desapreço às filhas do confrade. Os leitores que percebessem esta intenção, fixada naquelas reticências, poderiam rir de um modo a produzir “vibrações desagradáveis” para Figner. Mas os responsáveis por elas seriam Chico Xavier e seu editor, os quais teriam de reparar o deslize após a morte. Perceba-se que aí subjaz uma propriedade de uma noção peculiar de autoria: um autor, por menor que seja sua participação, é o responsável pelas repercussões do texto que escreve – em um sentido mais consciencial do que jurídico. Em carta de 24 de março de 1949, Chico Xavier conclui os ajustes para que, finalmente, Voltei possa ser publicado pela FEB: Esperando que tenhas recebido meu telegrama, confirmo a aprovação de nosso benfeitor espiritual. Em todas as páginas do “Voltei”, inclusive na capa, o nome do nosso companheiro Sr. Figner deve ser “Irmão Jacob” e onde estiver “Raquel”82 deve ser “Marta”. Para maior ocultação da identidade pessoal do autor, Emmanuel solicita as seguintes retificações: Pág. 2, 17ª. linha, a frase que se refere ao “Correio da Manhã” deve ser mudada para – “leitores de minhas páginas doutrinárias. ” Na página 99, 13ª. linha, o trecho que se reporta ao nosso amigo indicando-o como introdutor do fonógrafo na América do Sul deve ser mudado para “– fonógrafo, cuja vulgarização tive o prazer de acompanhar”. Se mais alguma coisa surgir, nesse setor de reajustamentos no “Voltei”, dar-te-ei o aviso, e espero o obséquio de tuas notificações em qualquer outro caso do livro, em que julgues a corrigenda oportuna. [...] (Apud Schubert, 1991, p. 265) De acordo com esse trecho, Emmanuel aprovara as modificações para a publicação do livro, cuja autoria foi atribuída a “Irmão Jacob”, pseudônimo talvez proposto por Wantuil. As alterações nas duas passagens mencionadas obedecem ao mesmo critério do pseudônimo: substituir as referências diretas a Figner, mas com o cuidado de não impedir, textualmente, alusões a ele.  Raquel era uma filha de Figner, falecida antes dele (Wantuil, 1990).  A aprovação de Emmanuel, referida por Chico Xavier, foi escrita em 23 de março de 1949, um dia antes da carta a Wantuil: “[...] julgamos oportuno que os dois principais personagens, o nosso amigo e a filha que o recebeu, adotem os nomes ‘Irmão Jacob’ e ‘Marta’, nomes que não lhes são estranhos na vida espiritual, para que o anonimato absoluto nos constitua defesa na hipótese do ataque indébito. E as corrigendas, como as que foram lembradas, quais a do cronista no Correio da Manhã e a da introdução do fonógrafo na América do Sul, serão levadas a efeito, permanecendo, de nossa parte, à disposição dos amigos para quaisquer outros reajustes. ” (Xavier, 2007, p. 449-450) 123 III. A CO

 

. IRMÃO X E O PROCESSO DE 1944 O crítico Eduardo Frieiro notou que Humberto de Campos “estilizava tudo”: era “literato até o sabugo das unhas” (Frieiro, 1955, p. 284). Seguindo-lhe os passos, o autor da série em questão, assumindo-se agora como Irmão X, estilizou, em Lázaro redivivo, os temas debatidos no caso Humberto de Campos. Para dissolver o conflito de 1944, era necessário abandonar o nome adotado pelo autor espiritual; por isso, foi trocado para Irmão X. Nessa transição, porém, o autor fez questão de preservar laços textuais com a obra de Humberto de Campos e com os escritos que Chico Xavier lhe atribuiu. No prefácio do primeiro livro assinado por Irmão X, que indica uma nova fase da série, o autor fala de Lázaro de Betânia. Este personagem bíblico, que intitula o volume, aparece também em textos de Humberto de Campos. A mudança de nome do autor, além de ser aludida várias vezes no livro, foi o pano de fundo de duas narrativas: “Ante o amigo sublime da cruz” e “Doce nome”, que justifica a escolha do termo irmão. Um dos temas mais recorrentes em Lázaro redivivo – são possíveis provas cabais da sobrevivência do espírito? – Foi motivado pela questão que a família de Humberto de Campos formulou à Justiça, sobre a verdadeira autoria dos livros atribuídos ao escritor. Com base, pois, em pontos de partida bem determinados do histórico da série mediúnica, o autor elaborou muitas das narrativas do livro. Em “Mãe”, desenvolve um tema relacionado ao Novo Testamento com o objetivo de, indiretamente, referir-se à mãe de Humberto de 106 Dois exemplos: no livro A funda de Davi, existe uma anedota na qual o espírito de Lázaro se manifesta em uma sessão espírita; ele conta sua versão de como Jesus o ressuscitou e por que a façanha não se repetiu em sua segunda morte (cf. Campos, 1954d, p. 111-114). Em seu diário, Humberto de Campos, após comentar o tratamento médico que recebeu em 19 de julho de 1928, compara-se a Lázaro: “E eu logo me sinto melhor, mais animado, como se Jesus de Nazaré tivesse arrancado, de novo, Lázaro, irmão de Marta e Maria, à apavorante escuridão de seu túmulo...”  Alguns dos textos que discutem esse tema são: “Carta aberta”; “No estudo da fé”; “Buscando a verdade”; “Aos espiritistas”; “Questão de provas”; “Serviço de investigação”; “Adivinhações”; “Filosofia da dúvida” (Xavier, 1995b). Campos, que, ao contrário de outras pessoas que lhe eram próximas, acreditava ser ele próprio o autor da série mediúnica. Em “Carta aberta”, o autor analisa, sem mencioná-lo, o item da ação declaratória que solicitava o depoimento do escritor “morto”, cuja operosidade deveria ser demonstrada perante o Poder Judiciário. Tal despropósito foi ironizado: “Reclamavam vocês a presença do morto, com todos os pormenores anatômicos e características psicológicas e, para tanto, pediam o apoio da organização judiciária, apesar da dificuldade para encontrar um meirinho habilitado a entregar mandados no ‘outro mundo’. ” (Xavier, 1995b, p. 25). No parágrafo abaixo, o autor lança mão de um conhecido procedimento de Humberto de Campos: a analogia entre o tema abordado e uma referência livresca: Vocês, aí no mundo, enviam tantos amigos para o céu e tantos inimigos para o inferno, tentando subverter a justiça divina, que não era demais requisitar a presença de um comentarista morto, recorrendo à justiça humana. E, observando os apuros do escritor desencarnado, recordei o artigo vigésimo das famosas instruções de Torquemada, segundo Llorente, que, por espírito de caridade na salvação dos hereges, recomendava aos inquisidores a exumação dos cadáveres dos escrevinhadores impenitentes, para responderem aos processos de lesa-fé, embora os réus só pudessem comparecer em atitude pouco higiênica, em virtude dos vermes que se lhes apossavam dos ossos. Felizmente, porém, para a tranquilidade de todos nós, que já atravessamos as águas turvas do Aqueronte, e para honra da civilização, Tomás de Torquemada também já restituiu os despojos ao campo de cinzas, há quatrocentos e quarenta e sete anos. Não obstante esta certeza confortadora, impressionava-me o volume de opiniões desconcertantes e das acusações lançadas a esmo. (Xavier, 1995b, p. 24-25). Por meio da ironia, a crítica do autor também recai sobre o evento histórico que escolheu para a analogia, representado pelo artigo vigésimo das Instrucionais de Tomás de 144 Torquemada (1420-1498). Tal artigo foi mencionado e comentado no livro História crítica de la Inquisición de España, de Juan Antonio Llorente108 (1756-1823). O caso Humberto de Campos foi alegorizado na narrativa “O sábio juiz”. Nela, o autor transportou o histórico do processo de 1944 para a época do bíblico Salomão. O início do texto refere a famosa decisão do rei dos israelitas, que solucionou a disputa das duas mulheres que se diziam mães de um mesmo filho109. Salomão era respeitado e requisitado pelos súditos, que se viram envolvidos no seguinte problema: – Foi assim que apareceu no reino uma questão estranha. A família de Natan, filho de Belazel, morto desde muito tempo, recebeu alguns papiros, onde se liam mensagens amigas, assinadas por ele, por intermédio de uma pitonisa de Jope, especializada em relações com os espíritos dos mortos. Natan, que não mais pertencia ao mundo dos homens de carne, tinha o cuidado de não interferir em qualquer assunto propriamente humano, para não invadir a esfera de ação dos velhos amigos que deviam caminhar por si, aprendendo com a própria experiência. Comentava as realidades espirituais, referindo-se, de maneira velada, às situações e coisas do novo país a que fora chamado a viver. Entretanto, antigos companheiros seus manifestaram-se absolutamente hostis. Impossível que Natan, patriarca respeitável e amante da lei, voltasse do outro mundo escrevendo aos afeiçoados. Iniciaram-se discussões em tom discreto. Negociantes de cabras e carneiros transportaram o assunto de Jerusalém para a Arábia e da Arábia para a Fenícia. Em vista das grandes dúvidas surgidas, encaminhou-se o problema ao esclarecido critério de Salomão. Os descendentes de Natan exigiam o pronunciamento da Justiça, em sentença insofismável. (Xavier, 1995b, p. 112). Localizei a referência mencionada pelo autor no sexto capítulo da História crítica de la Inquisición de España (tomo II): “O [artigo] 20º, [estabelecia] que se por livros ou processos resultava ter sido herege algum defunto, se movesse processo até condená-lo como herege, exumar seu cadáver, confiscar seus bens, e despojar os herdeiros do seu espólio. Digam-me agora se o zelo da fé ditava esta lei contra um morto que já não se podia converter, ou se a cobiça unida com o desejo de infundir terror e de se fazer temível. Não vejo com o que comparar tal barbárie, a não ser com a que alguns papas do século X usaram em Roma, desenterrando cadáveres de seus antecessores e condenando à infâmia sua memória. ” (Llorente, 1822, p. 13). A passagem foi traduzida por Marco Catalão. 109 A propósito, esse mesmo episódio foi tema do conto anedótico “A sabedoria de Salomão”, do livro O arco de Esopo (série Conselheiro XX). Ver Campos, 1944b: O autor, que mistura elementos dos dois contextos históricos, representou Humberto de Campos como Natan e Chico Xavier como a pitonisa de Jope. Visto que os textos assinados pelo “morto” provocaram reações hostis, o assunto se espalhou e a família de Natan levou a questão à Justiça, pleiteando uma “sentença insofismável”, à maneira da ação declaratória de 1944. A controvérsia chegou a Salomão: O rei examinou o caso e esclareceu que precisava tempo para decidir. Sentia-se espantado. Resolvera já muitos processos de herança e partilha, onde os mortos compareciam como ausentes em definitivo e sem representantes legais, mas nunca lhe surgira um problema em cuja solução devesse considerar direitos e obrigações daqueles que haviam atravessado o horizonte sombrio da morte. Por isso, estudou e meditou dias e noites, ponderando sobre a reclamação havida. Poderia, de fato, emitir um laudo declaratório? Como decidir uma pendência em que havia partes interessadas no outro mundo? Seria razoável considerar apenas o direito dos súditos vivos? E os súditos que haviam partido para a morte, confiantes na Justiça do reino? O morto, certamente, havia dado o conteúdo dos papiros à pitonisa de Jope, sem qualquer constrangimento, e por sua espontânea vontade. Seria crime obsequiar alguém? Como impedir no mundo o sagrado direito de dar? Extinguir o intercâmbio da amizade entre as almas seria o mesmo que interromper o curso das bênçãos divinas. (Xavier, 1995b, p. 112-113) As especulações do personagem buscam ajustar o ineditismo do caso em suas noções de direito. Ele não coloca em dúvida a existência de espíritos de mortos nem a possibilidade de sua comunicação com os vivos: a proibição israelita a esta prática garantia a sua realidade, e antes de seu reinado, Saul, a quem Salomão não poderia condenar, havia conversado com o espírito de Samuel. Após inferir um irredutível conflito de interesses entre vivos e mortos do reino, Salomão indaga se seria sensato emitir um laudo declaratório, conforme solicitara a família do morto. 146 Salomão, por mais de trinta dias, concedeu audiências incessantes e recebeu as mais estranhas rogativas, acabando por compreender que a Justiça Humana era organizada para pessoas humanas e que, de modo algum, deveria invadir os extensos e misteriosos domínios da Morte, sob pena de complicar todos os assuntos da vida, incentivando angústias e tormentos da Humanidade. Em razão disso, com grande surpresa para os súditos irrequietos, devolveu os papiros aos descendentes de Natan, esclarecendo que a Justiça era um templo sagrado e não podia constituir-se em órgão de consultas sem interesse fundamental para a vida dos homens. (Xavier, 1995b, p. 114) Evidente que essa decisão do personagem alude à rejeição do pedido para que a Justiça brasileira emitisse um laudo declaratório a respeito do autor da série mediúnica. O último parágrafo da citação retoma a justificativa, utilizada pelo juiz Mourão Russell, de que “o Poder Judiciário não é órgão de consulta”110 . Vimos que, em 1957, a FEB declarou no Reformador que Irmão X e Humberto de Campos eram o mesmo autor espiritual. Em “Explicação de amigo”, do livro Cartas e crônicas (1966), Irmão X também se identificou como Humberto de Campos, agora de forma bem menos indireta: Que não desfrutamos competência para a arte da redação, é coisa vulgarmente sabida. Se há o que estranhar em sua carta é a impressão de que nos acharíamos 110 Refiro-me à seguinte passagem do “Despacho saneador” assinado por João Frederico Mourão Russell, em 23 de agosto de 1944: a ação declaratória “não tem por fim a simples declaração de existência ou inexistência de uma relação jurídica, nos termos do § único do artigo 2º do Código de Processo, e sim a declaração de existência ou não de um fato (se são ou não do ‘espírito’ de Humberto de Campos as obras referidas na inicial), do qual hipoteticamente, caso ocorra ou não, possam resultar relações jurídicas que a suplicante enuncia de modo alternativo. Assim formulada, a inicial constitui mera consulta; não contém nenhum pedido positivo, certo e determinado, sobre o qual a Justiça se deva manifestar. O Poder Judiciário não é órgão de consulta. ” (Apud Timponi, 1978, p. 210) presentemente modificados, o que, em verdade, não sucede. Sou o mesmo jornalista desenxabido, sem a ilusão de estar servindo caviar no cardápio das letras, quando apenas dispõe de algum refogado pobre para oferecer aos amigos. Em socorro do que asseveramos, basta recorrer às informações do nosso colega Eloy Pontes, quando escrevia as suas impressões em “O Globo”, de há bons trinta anos. Esse distinto crítico de nossa lavoura livresca, em páginas saborosas, que se transferiram do jornal para a sua primeira série de “Obra Alheia”, assegurou a nosso respeito: “Lida uma das crônicas atuais do Sr........., estão lidas todas. Ele é monocórdio...” E acrescenta noutro passo da mencionada apreciação, em se referindo a nós: “Ele não tira coisa alguma de si. Não é o que se denomina, geralmente, um inspirado. É um paciente. Os velhos assuntos bíblicos, os antigos elementos das lendas orientais, formam a arquitetura do volume. O Sr............ Pertence ao número dos que escrevem porque leram. Não descobrimos, ao longo destas páginas, nenhum sinal de emoção própria. As emoções aqui são de reminiscências. De resto, recapitulando os volumes que vêm enfileirados na bibliografia do autor, sentimos que sua obra em prosa também se fez de alinhavos, de remendos, de chiffons. ” Não nos reportamos aos apontamentos do estimado companheiro, com a ideia de lançar pimenta no assunto, mas para confirmar, com sinceridade, que ele se expressava, desse modo, com plena razão. (Xavier, 2002b, p. 62-63) O artigo de Eloy Pontes a que o autor se refere é o de número 8 do livro Obra alheia (1ª série). O primeiro trecho citado, com a ortografia atualizada, é este: “lida uma das crônicas atuais do Sr. Humberto de Campos estão lidas todas. Ele é monocórdio...” (Pontes, s/d, p. 81). Do segundo, que se refere ao volume Poesias completas, além das mesmas reticências no lugar do nome do escritor, houve apenas a exclusão de um trecho. Eis o original: Ele não tira coisa alguma de si. Não é o que se denomina, geralmente, um inspirado. É um paciente. Os velhos assuntos bíblicos, os antigos elementos das lendas orientais, os 148 pretextos cediços de símbolos, que o tempo impôs, formam a arquitetura do volume. O Sr. Humberto de Campos pertence ao número dos que escrevem porque leram. Não descobrimos, ao longo destas páginas, nenhum sinal de emoção própria. As emoções aqui são de reminiscências. De resto, recapitulando os volumes, que vêm enfileirados na bibliografia do autor, sentimos que sua obra em prosa também se fez de alinhavos, de remendos, de chiffons. (Pontes, s/d, p. 79-80) No primeiro capítulo, observamos que, no Diário secreto, Humberto de Campos costumava transcrever passagens de avaliações elogiosas a seus livros, ou delas dar notícia, a fim de difundir determinadas imagens de sua obra. No caso acima, a citação de um juízo negativo também não é gratuita: primeiro, porque a série mediúnica se apresenta muitas vezes como uma errata à obra do escritor; segundo, porque informa ao leitor que Humberto de Campos costumava utilizar alinhavos, remendos e chiffons em sua prosa, prática também observada em textos da série mediúnica comentados abaixo. O autor espiritual, portanto, aproveita a argumentação de Eloy Pontes para justificar os seus escritos.

 

CARTA A MINHA MÃE Hoje, mamãe, eu não te escrevo daquele gabinete cheio de livros sábios, onde o teu filho, pobre e enfermo, via passar os espectros dos enigmas humanos, junto da lâmpada que, aos poucos, lhe devorava os olhos, no silêncio da noite. A mão que me serve de porta-caneta é a mão cansada de um homem paupérrimo, que trabalhou o dia inteiro buscando o pão amargo e cotidiano dos que lutam e sofrem. A minha secretária é uma tripeça tosca à guisa de mesa e as paredes que me rodeiam são nuas e tristes, como aquelas da nossa casa desconfortável em Pedra do Sal. O telhado sem forro deixa passar a ventania lamentosa da noite e desse remanso humilde, onde a pobreza se esconde exausta e desalentada, eu te escrevo sem insônias e sem fadigas, para contar-te que ainda estou vivendo para amar e querer a mais nobre das mães. Quereria voltar ao mundo que deixei, para ser novamente teu filho, desejando fazer-me um menino, aprendendo a rezar com o teu espírito santificado nos sofrimentos. A saudade do teu afeto leva-me constantemente a essa Parnaíba das nossas recordações, cujas ruas arenosas, saturadas do vento salitroso do mar, sensibilizam a minha personalidade e, dentro do crepúsculo estrelado da tua velhice cheia de crença e de esperança, vou contigo, em espírito, nos retrospectos prodigiosos da imaginação, aos nossos tempos distantes. Vejo-te com os teus vestidos modestos, em nossa casa de Miritiba, suportando com serenidade e devotamento os caprichos alegres de meu pai. Depois, faço a recapitulação dos teus dias de viuvez dolorosa, junto da máquina de costura e do teu “terço” de orações, sacrificando a mocidade e a saúde pelos filhos, chorando com eles a orfandade que o destino lhes reservara, e, junto da figura gorda e risonha da Midoca, ajoelho-me aos teus pés e repito: – “Meu Senhor Jesus-Cristo, se eu não tiver de ter uma boa sorte, levai-me deste mundo, dando-me uma boa morte. ”  Muitas vezes o destino te fez crer que partirias antes daqueles que havias nutrido com o beijo das tuas carícias, demandando os mundos ermos e frios da Morte. Mas partimos e tu ficaste. Ficaste no cadinho doloroso da saudade, prolongando a esperança numa vida melhor no seio imenso da Eternidade. E o culto dos filhos é o consolo suave do teu coração. Acariciando os teus netos, guardas com o mesmo desvelo o meu cajueiro, que aí ficou como um símbolo plantado no coração da terra parnaibana, e, carinhosamente, colhes das suas castanhas e das suas folhas fartas e verdes, para que as almas boas conservem uma lembrança do teu filho, arrebatado no turbilhão da Dor e da Morte. Ao Mirocles, mamãe, que providenciou quanto ao destino desse irmão que aí deixei, enfeitado de flores e passarinhos, estuante de seiva, na carne moça da terra, pedi velasse pelos teus dias de insulamento e velhice, substituindo-me junto do teu coração. Todos os nossos te estendem as suas mãos bondosas e amigas e é assombrada que, hoje, ouves a minha voz, através das mensagens que tenho escrito para quantos me possam compreender. Sensibilizam-me as tuas lágrimas, quando passas os olhos cansados sobre as minhas páginas póstumas e procuro dissipar as dúvidas que torturam o teu coração, combalido nas lutas. Assalta-te o desejo de me encontrares, tocando-me com a generosa ternura de tuas mãos, lamentando as tuas vacilações e os teus escrúpulos, temendo aceitar as verdades espíritas, em detrimento da fé católica, que te vem sustentando nas provações. Mas, não é preciso, mãe, que me procures nas organizações espiritistas e, para creres na sobrevivência do teu filho, não é preciso que abandones os princípios da tua fé. Já não há mais tempo para que teu espírito excursione em experiências no caminho vasto das filosofias religiosas. Numa de suas páginas, dizia Coelho Neto que as religiões são como as linguagens. Cada doutrina envia a Deus, a seu modo, o voto de súplica ou de adoração. Muitas mentalidades entregam-se, aí no mundo, aos trabalhos elucidativos da polêmica ou da discussão. Chega, porém, um dia em que o homem acha melhor repousar na fé a que se habituou, nas suas meditações e nas suas lutas. Esse dia, mamãe, é o que estás vivendo, refugiada no conforto triste das lágrimas e das recordações. Ascendendo às culminâncias do teu Calvário de saudade e de angústia, fixas os olhos na celeste expressão do Crucificado e Jesus, que é a providência misericordiosa de todos os desamparados e de todos os tristes, te fala ao coração dos vinhos suaves e doces de Caná, que se metamorfosearam no vinagre amargoso dos martírios, e das palmas verdes de Jerusalém, que se transformaram na pesada coroa de espinhos. A cruz, então, se te afigura mais leve e caminhas. Amigos devotados e carinhosos te enviam de longe o terno consolo dos seus afetos e, prosseguindo no teu culto de amor aos filhos distantes, esperas que o Senhor, com as suas mãos prestigiosas, venha decifrar para os teus olhos os grandes mistérios da Vida. Esperar e sofrer têm sido os dois grandes motivos, em torno dos quais rodopiaram os teus quase setenta e cinco anos de provações, de viuvez e de orfandade. E eu, minha mãe, não estou mais aí para afagar-te as mãos trêmulas e os cabelos brancos que as dores santificaram. Não posso prover-te de pão e nem te guardar da fúria da tempestade, mas, abraçando o teu espírito, sou a força que adquires na oração, como se absorvesses um vinho misterioso e divino. Inquirido, certa vez, pelo grande Luiz Gama sobre as necessidades da sua alforria, um jovem escravo lhe observou– “Não, meu senhor!... A liberdade que me oferece me doeria mais que o ferrete da escravidão, porque minha mãe, cansada e decrépita, ficaria sozinha nos misteres do cativeiro. ” Se Deus me perguntasse, mamãe, sobre os imperativos da minha emancipação espiritual, eu teria preferido ficar, não obstante a claridade apagada e triste dos meus olhos e a hipertrofia que me transformava num monstro, para levar-te o meu carinho e a minha afeição, até que pudéssemos partir juntos, desse mundo onde tudo sonhamos para nada alcançar. Mas, se a Morte parte os grilhões frágeis do corpo, é impotente para dissolver as algemas inquebrantáveis do espírito. Deixa que o teu coração prossiga, oficiando no altar da saudade e da oração; cântaro divino e santificado, Deus colocará dentro dele o mel abençoado da esperança e da crença, e, um dia, no portal ignorado do mundo das Sombras, eu virei, de mãos entrelaçadas com a Midoca, retrocedendo no tempo, para nos transformarmos em tuas crianças bem-amadas. Seremos agasalhados, então, nos teus braços cariciosos, como dois passarinhos minúsculos, ansiosos da doçura quente e suave das asas maternas, e guardaremos as nossas lágrimas nos cofres de Deus, onde elas se cristalizam como as moedas fulgurantes e eternas do erário de todos os infelizes e desafortunados do mundo. Tuas mãos segurarão ainda o “terço” das preces inesquecidas e nos ensinarás, de joelhos, a implorar, de mãos postas, as bênçãos prestigiosas do Céu. E, enquanto os teus lábios sussurrarem de mansinho – “Salve Rainha... mãe de misericórdia...” começaremos juntos a viagem ditosa do Infinito, sob o dossel luminoso das nuvens claras, tênues e alegres, do Amor. (Xavier, 1998a, p. 203- 207) Essa carta, dirigida a Ana de Campos Veras, foi escrita em 1936. A análise de seu conteúdo sugere que ela foi concebida não apenas para tentar convencer a mãe de Humberto de Campos de que ele, após sua morte, continuava existindo e possuía meios de comunicar-se, mas também para que o pretendido efeito de sobrevivência se estendesse a um público mais amplo. Há, por isso, muitas passagens em que o autor da carta fez questão de que suas informações se assentassem em textos escritos por Humberto de Campos, os quais, quando identificados, fornecem mais elementos para a compreensão do texto mediúnico. Uma carta simplesmente familiar, convenhamos, não exigiria o trabalho de intertextualidade abaixo explicitado. Na crônica “Parnaíba no ‘Broadway’” (Campos, 1960g, p. 295), o escritor fala de sua mãe. Ele diz que, mesmo depois de adulto, chamava-a de mamãe. Humberto de Campos tratava por “gabinete” o cômodo doméstico onde trabalhava. No Diário secreto, há a seguinte passagem: “Anteontem, pela manhã, quando trabalhava, tive uma vertigem. O meu gabinete, com as suas estantes, as suas cadeiras, o seu divã, o seu abajur, o seu ventilador, a sua máquina de escrever, girou em torno de mim, como se tudo tivesse desmoronado. ”. No mesmo livro, ele diz: “Como me custa, metodizado como tenho o meu trabalho, afastar-me desta mesa em que escrevo, e destas quatro paredes forradas de livros – prisão silenciosa, mas doce, a que eu desejaria viver perpetuamente condenado. ” (Campos, 1954a, p. 163.)  Em anotação do dia 24 de novembro de 1930, escreveu Humberto de Campos a respeito de sua visão: “[...] experimentados todos os vidros para miopia e vista fraca, verifico que eles nada adiantam e que minha vista esquerda se acha inteiramente perdida, pois que, tapado o olho direito, eu não vejo, com ou sem óculos, eu não vejo diante de mim senão um muro de cal, com umas vagas sombras à direita! ” Referência a Chico Xavier, o autor empírico, que trabalhava na Fazenda Modelo, em Pedro Leopoldo. 6-8: Menção à primeira casa onde Humberto de Campos e seus familiares pernoitaram, em 1895, em Pedra do Sal – nome do farol situado na então vila de Amarração (PI). Em Memórias, há o seguinte trecho sobre essa casa: “Muitas famílias de Parnaíba tinham ido veranear ali naquele ano, de modo que nos foi impossível conseguir uma casa menos desconfortável. A que meus tios haviam alugado devia ser coberta, ainda, de palmas de carnaúba, no dia seguinte: de modo que tivemos de nos contentar, por aquela noite, com uma esburacada em torno, a poucos metros do mar. Para podermos dormir, tivemos de amarrar lençóis nos grandes rombos abertos na palha, pelos quais entrava, assobiando como garotos e cortando como navalhas, o vento salitroso e inclemente. ” (Campos, 1960q, p. 182): Note-se que é necessário conhecer o trecho de Memórias da nota anterior para entender a comparação entre a casa precária de Pedra do Sal e a casa pobre de Chico Xavier, em Pedro Leopoldo. 10: Alusão à insônia e à fadiga de que sofria Humberto de Campos. As duas são referidas em sua anotação de 28 de julho de 1928, no Diário secreto: “As aplicações de Raios X que venho fazendo, e que são destinadas às camadas profundas do meu cérebro, determinaram em mim, nestes últimos dias, um outro mal de que há muito tempo não sofria: a insônia. [...] esta noite passada não dormi, sequer, uma hora, levantando-me hoje fatigado, exausto, vencido” (Campos, 1954a, p. 253).: O trecho “a mais nobre das mães” alude à expressão a “mais santa das mães”, da crônica de Humberto de Campos “O dia das mães”. Parnaíba (PI) foi a cidade onde Ana de Campos fixou residência, a partir de 1893, e onde Humberto de Campos viveu parte de sua infância e mocidade. : Sobre as ruas de Parnaíba em 1893, escreveu Humberto de Campos: “As ruas eram largas e numerosas, mas de areia solta [...]” Ana de Campos nasceu em 1862; ela tinha 74 anos quando essa carta foi escrita.: Miritiba (MA): cidade natal de Humberto de Campos, onde morou até 1893.: Essa informação pode ser mais bem compreendida com a seguinte passagem de Memórias: “Minha mãe foi, em síntese, na sua mocidade, uma senhora sem altos atributos de graça feminina, casada com um homem moço e bonito, mas que soube prendê-lo com a sua solicitude, com o seu instinto doméstico, perdoando-lhe as faltas, as pequenas e possíveis infidelidades, em nome da harmonia conjugal. O gênio de meu pai, alegre, festivo, brincalhão, facilitava, aliás, a minha mãe, esse sentimento de renúncia e de resignação, que era uma das virtudes específicas das mulheres do seu meio e do seu tempo. Ana de Campos e mais três mulheres da casa (a meia-irmã de Humberto e suas duas tias maternas) trabalhavam com a costura, no recinto doméstico, para obter recursos para a família. A “máquina de costura” é mencionada em Memórias (Campos, 1960q, p.: Eis uma menção a esse terço: “Minha mãe ia raramente à igreja, mas, em casa, rezava muito. Principalmente à noite. O terço ficava pendurado no punho da sua rede e, ao deitar-se, ela o dedilhava inteiro, sentada, tempos esquecidos. ”. Por algum motivo, o termo “terço” foi destacado: com itálico, em Memórias, e entre aspas, na carta mediúnica.: Ana de Campos foi mãe de Humberto e de Midoca, dois anos mais nova que ele.: É oportuno retomar, aqui, o último parágrafo da crônica “O dia das mães”, escrita no início dos anos 30. Dirigindo-se a sua mãe, escreveu Humberto de Campos: “E que ele [Deus] te conceda, nos dias de velhice que te restam, a paz que não tiveste na mocidade, fazendo desaparecer do teu coração as inquietações de que ele está cheio, e que se agravam quando te lembras que tens na terra um filho enfermo, um filho triste, um filho poeta, um filho pobre...” Em Memórias, Midoca é assim caracterizada: “Era uma linda criança, muito gorducha e muito clara, cabelos ondeados e quase louros. ” Comparando seu temperamento ao da irmã, Humberto escreve que, em sua infância: “Eu era casmurro, antipático, e, por isso, não recebia um mimo de ninguém. Essa preterição tornava-me cada vez mais taciturno, fazendo-me nascer no coração miúdo a urtiga do ressentimento e da rebeldia dolorida. ”. Midoca, ao contrário, possuía “índole precisamente diversa. ” Essa passagem está registrada também em Memórias: “Ajoelhados na esteira, diante dela [a mãe], eu e minha irmã repetíamos o Padre nosso, a Salve-Rainha, o Creio-em-Deus-Padre, e outras orações familiares. Terminadas estas, mandava que fizéssemos, com todo o coração, e em voz alta, esta súplica: – Meu Senhor Jesus Cristo, se eu não tiver de ter uma boa sorte, levai-me deste mundo, dando-me uma boa morte. ”: Primeiro morreu Midoca; depois, em 1934, foi a vez de Humberto. Ana de Campos faleceu em 1954. Na crônica “O dia das mães”, escrita em 1932 ou 1933, lemos a 193 seguinte passagem: “A capela fúnebre da minha alma se enfeita de rosas para o teu culto. Ajoelhado diante de ti, dos teus setenta anos de sofrimentos, – dos teus setenta anos de orfandade, de pobreza, de viuvez, – eu me confesso o pior dos filhos da mais santa das mães! Único filho vivo, eu te envio, também, no meu beijo, e mando ao teu coração alanceado, a gratidão da tua filha morta. ” Ana de Campos tinha quatro netos: três filhos do escritor e uma filha de Midoca. Referência ao cajueiro plantado por Humberto em Parnaíba. Essa árvore ficou famosa por conta do capítulo a ela dedicada em Memórias: “Um amigo de infância”. É oportuno, para o contexto de “Carta a minha mãe”, o registro de 29 de janeiro de 1932 do Diário secreto: “Tendo remetido à minha mãe o capítulo do meu livro de ‘Memórias’ sobre o cajueiro que plantei em nossa casinha de Parnaíba, recebi, ontem, dela, uma carta, em que se refere, num período, àquela minha lembrança. ‘Sobre o teu escrito, oh, meu filho! Chorei tanto, relembrando o nosso passado, bem penoso, sim, mas ao mesmo tempo consolador, porque tinha os meus dois filhos a meu lado, que me davam coragem e me ajudavam a trabalhar até tarde da noite, acompanhando-me nos dissabores e nas poucas alegrias desse tempo! E hoje, que me resta? Recordações! Saudades! Acredita: quantas vezes, quando vou visitar o túmulo de tua irmã, passo por lá, pela nossa casinha, tenho saudades de tudo; mas não tanto como quando chego defronte do teu cajueiro, onde estudavas as tuas lições de manuscrito, que o Firmino tanto apreciava. Há muito queria te pedir que escrevesses sobre a tua origem. ’” Ana de Campos, a propósito, presenteou Chico Xavier com castanhas desse cajueiro (cf. Reformador, janeiro de 1955, p. 13).: Mirocles Veras: primo de Humberto de Campos.: “Este irmão que aí deixei”: o cajueiro.: Referência à reação de Ana de Campos aos outros textos psicografados por Chico Xavier e atribuídos a Humberto.: Coelho Neto (1864-1934) foi conterrâneo e amigo de Humberto de Campos. Não consegui localizar a origem da citação.: Algumas referências sobre Luiz Gama (1830-1882) encontram-se na obra de Humberto de Campos. Não localizei, porém, a procedência do episódio mencionado na carta.: Menção a um dos efeitos da hipertrofia da hipófise, de que padecia Humberto de Campos. Em anotação de 6 de janeiro de 1928, ele já registra o problema da inchação de suas mãos, pés, nariz, lábio inferior e língua: “Era evidente, em suma, em mim, uma grande alteração orgânica e, em particular, fisionômica. ”: Essa comparação nos remete ao seguinte trecho de “O dia das mães”: “Beijemos mais carinhosamente do que nunca a mão enrugada e leve que nos chegou ao seu seio nas primeiras horas da vida, e que ainda hoje nos protege, como uma asa, com o voo da sua bênção. ”

 

A PALAVRA DO MORTO Quando Saul sentiu o peso das tremendas responsabilidades, no campo da autoridade e do poder, lembrou-se imediatamente de Samuel, o grande juiz que o precedera na direção dos israelitas. O nobre varão, todavia, fora arrebatado ao mundo da morte. No entanto, o rei sabia que os mortos podiam voltar, fazendo-se ouvidos. Interrogando os áulicos do seu séquito, soube que em Endor havia uma pitonisa que talvez pudesse satisfazer-lhe os propósitos. Não hesitou e dirigiu-se a ela. E quando a intermediária caiu em transe, após admoestá-lo quanto ao anonimato a que se recolhera, eis que Samuel lhe surge aos olhos assombrados. Não é um fantasma que o visita, trazendo resquícios da sepultura. É o verdadeiro Samuel, materializado à plena luz, que lhe estende as mãos acolhedoras. Não tem as insígnias de juiz e o seu olhar, outrora severo e autoritário, mantém-se impregnado de humildade infinita. Ampla capa resguarda-lhe o corpo, e enquanto recompõe a sua figura, a fim de conversar calmamente, Saul cai, genuflexo, em pranto convulsivo.  – Ó santo Juiz de Israel – pergunta o rei, emocionado e confundido –, onde estão as tuas insígnias de enviado de Jeová? Por que voltas do túmulo, pobre e simples, como qualquer mortal?  Contemplou-o Samuel, tristemente e respondeu: – Saul, que o Eterno te abençoe e te conceda paz! Não me perguntes pelas possessões e honrarias efêmeras. Minha túnica de linho de julgador e minha espada de guerreiro ficaram para sempre no sepulcro de Ramá. O homem que exerce a Justiça, perante o Supremo, não deve aguardar prerrogativas diferentes daquelas que felicitam os ministros do Senhor, em qualquer trabalho proveitoso..., Mas, ouve! Que te induz a chamar-me do túmulo? Por que razões interrompes o meu trabalho no reino dos mortos? Saul enxugou as lágrimas abundantes e falou:  – Ó Grande Juiz, aconselha-me! Estamos na véspera de grandes batalhas e tenho o coração cheio de maus presságios!... Sinto-me inquieto, hesitante...  Dize-me o que pensas, concede-me as tuas diretrizes sábias e justas!  O Espírito de Samuel fitou-o, melancolicamente, e voltou a interrogar:  – Que desejas que eu diga?  – A verdade! – Disse o rei, ofegante e os que já reviveram, fora dela, ao sublime influxo da morte, a verdade é sempre terrível. Poderás, acaso, suportá-la?  Respondeu Saul, afirmativamente.  O Espírito materializado avançou para ele, afagou-lhe a cabeça e falou, comovido: – Volta então ao povo de Israel, desarma o nosso exército e dize à nação que o nosso orgulho racial é um erro nefasto e profundo, diante da morte, inevitável para todos. Notifica as doze tribos de que nossas guerras e atritos com os vizinhos são malditas ilusões que nos agravam as responsabilidades, diante do Deus Altíssimo. Cientifica-os de que a morte ensinou a mim, último juiz dos israelitas, as mais estranhas revelações. O Senhor Supremo não está em nossa arca de substância perecível do mundo, que não passa de mero símbolo, respeitável embora.... Onde teremos buscado tanta audácia para nos julgarmos privilegiados do Eterno? Que espíritos satânicos penetraram nossos lares, para odiarmos o trabalho pacífico, entregando-nos ao monstro da guerra, que espalha a fome, a peste e a desolação? É verdade que os nossos antepassados muito sofreram nas perseguições da Babilônia e no cativeiro do Egito, mas também é inegável que nunca soubemos valorizar os favores e as graças de Jeová, o Pai Magnificente. Reajustando agora os meus conhecimentos pelas imposições do sepulcro, eu mesmo, que cultivava a Justiça e supunha servir ao Senhor, compreendo quanto me afastei das vozes espirituais que nos induziam ao escrupuloso cumprimento da Lei. Sou hoje obrigado a socorrer os nossos armadores e flecheiros, guerrilheiros e pajens de armas, que choram e sofrem junto de mim e aos quais ajudei na matança. Volta, pois, Saul, enquanto é tempo, e ensina aos nossos a realidade dura e angustiosa. Explica-lhes que os filisteus são também filhos do Altíssimo e que, ao invés de nos odiarmos, é imprescindível nos amemos uns aos outros, auxiliando-nos reciprocamente, como irmãos. Os lares de Jerusalém não são melhores que os de Ascalão. Vai, e ensina ao nosso povo uma vida nova! Faze que os instrumentos destruidores do extermínio se voltem para o trabalho pacífico e abençoado no solo da Terra! Saul soluçava, de joelhos. Como aceitar os conselhos inesperados e humilhantes? Não se sentia com a força precisa para recuar. Buscava orientação para a vitória na batalha e o juiz inesquecível de Israel voltava do misterioso reino da morte para induzi-lo à submissão? O Espírito de Samuel compreendeu-lhe a luta íntima e falou, carinhoso: – Lembra-te do tempo em que, humildemente, reunias jumentas no campo, na pobre condição de descendente da tribo de Benjamim, e não estranhes minhas palavras. Recorda-te que, quando o Senhor deseja conhecer as conquistas de uma alma, dá-lhe a autoridade e a fortuna, o governo e o trono para a terrível experiência. Atende a Deus e domina-te. Executa a Vontade do Senhor e esquece-te, para que possas, de fato, triunfar, por sua Divina Misericórdia. Fez-se então pesado silêncio. Como Saul chorasse, o mensageiro, desejando ultimar a entrevista, perguntou: – Desistirás da carnificina? Reconciliar-te-ás com os inimigos? Ensinarás ao povo a humildade, o serviço e a concórdia? O rei de Israel fez um esforço supremo e respondeu:  – É impossível! Não posso!  O Espírito fitou-o com profunda tristeza e acrescentou:  – Como pedes, então, conselhos à luz da sabedoria, se preferes a prisão nas trevas da ignorância? O Senhor envia-te as verdades de hoje, por minha boca, mas, se persistes em desatendê-lo, rasgará o reino que guardas nas mãos e entregará a outrem a autoridade. E se não deres ouvidos à Divina Palavra, executando os sinistros propósitos de tua rebeldia, cairás aos golpes do adversário e, amanhã mesmo, serás recolhido pela morte, juntamente com os teus filhos, vindo aprender conosco que ninguém confundirá o Eterno Poder!  Voltou Samuel à sua condição no plano invisível e Saul caiu desmaiado de espanto, enquanto a pitonisa acordava para socorrê-lo. E como acontece a muita gente que roga orientação aos Espíritos desencarnados, Saul desprezou as advertências ouvidas e atendeu aos caprichos condenáveis de seu coração, mas, também, no dia seguinte, estava com os filhos no caminho sombrio do sepulcro, a fim de aprender com a morte as sagradas lições da vida. (Xavier, 1995b, p. 125-129) Essa narrativa também faz parte do livro Lázaro redivivo. De forma sutil, seu autor ideou uma transtextualidade125 cujas fontes remetem a Humberto de Campos e à anterior série mediúnica a ele atribuída por Chico Xavier. O primeiro passo para um entendimento do texto é a identificação de seu intertexto explícito: o Primeiro Samuel, livro d’O Antigo Testamento, principalmente o seu capítulo 28, no qual Saul, auxiliado por uma necromante, dialoga com Samuel. Contudo, a fala do Samuel de “A palavra do morto” pouco tem a ver com a do texto bíblico; para compreendê-la, é necessário identificar seu intertexto oculto – que é “Clemenceau”, publicado no livro Carvalhos e roseiras, de Humberto de Campos. Por sua vez, a narrativa “Clemenceau” tem como intertexto explícito um ensaio histórico do francês Fustel de Coulanges: “La politique d’envahissement”, publicado em 1871 na Revue des deux mondes. Além dessas referências principais, há outras fontes intertextuais, como veremos abaixo; uma delas é o mediúnico “Ludendorff”, presente em Novas mensagens. O jogo intertextual engendrado pelo autor de “A palavra do morto” sugere uma chave de leitura para “Clemenceau”: o intertexto explícito da narrativa de Lázaro redivivo seria a fonte oculta do mencionado texto de Carvalhos e roseiras. Após as indicações referentes a passagens da narrativa de Lázaro redivivo, há um resumo dos intertextos citados e a explicação para a chave de leitura proposta.  O intertexto, aqui, é a passagem 28 do Primeiro Samuel: “Samuel tinha morrido, e todo o Israel o tinha lamentado, e o sepultaram em Ramá, sua cidade. Saul havia expulsado da terra os necromantes e os adivinhos. Entretanto, os filisteus se congregaram e vieram acampar em Sunam. Saul reuniu todo o Israel e acamparam em Gelboé. Quando Saul viu o exército dos filisteus acampado, encheu-se de medo e o seu coração se perturbou. Saul consultou a Iahweh, mas Iahweh não lhe respondeu, nem por sonho, nem pela sorte, nem pelos profetas. Saul disse então aos seus servos: ‘Buscai-me uma necromante para que eu lhe fale e a consulte. ’ E os servos lhe responderam: ‘Há uma em Endor. ’” (A Bíblia de Jerusalém, p. 461-462). Esse segundo parágrafo apoia-se na continuação do intertexto acima. Trata-se da passagem do mesmo livro: “Então Saul disfarçou-se, vestiu outra roupa e, de noite, acompanhado de dois homens, foi ter com a mulher, e lhe disse: ‘Peço-te que me digas o futuro, chamando para mim quem eu te disser. ’ A mulher, porém, lhe respondeu: ‘Tu bem sabes o que fez Saul, expulsando do país os necromantes e adivinhos. Por que me armas uma cilada para que eu seja morta? ’ Então Saul jurou-lhe por Iahweh, dizendo: ‘Tão certo como Iahweh vive, nenhum mal te acontecerá por causa disso. ’ Disse a mulher: ‘A quem chamarei para ti? ’ Ele respondeu: ‘Chama Samuel. ’ Então a mulher viu Samuel e, soltando um grito medonho, disse a Saul: ‘Por que me enganaste? Tu és Saul! ’ Disse-lhe o rei: ‘Não temas! Mas o que vês? ’ E a mulher respondeu a Saul: ‘Vejo um espectro que sobe da terra. ’ Saul indagou: ‘Qual é a sua aparência? ’ A mulher respondeu: ‘É um velho que está subindo; veste um manto. ’ Então Saul viu que era Samuel e, inclinando-se com o rosto no chão, prostrou-se.” (A Bíblia de Jerusalém, p. 462): Esta frase – “Não tem as insígnias de juiz e o seu olhar, outrora severo e autoritário, mantém-se impregnado de humildade infinita. ” – E este trecho – “onde estão as tuas insígnias de enviado de Jeová? Por que voltas do túmulo, pobre e simples, como qualquer mortal? ” – tocam dois outros intertextos. O primeiro, de contraste, é um trecho de “Clemenceau”, de Humberto de Campos, que descreve um aspecto do fantasma de Bismarck: “Trajava o uniforme do Exército alemão, e ostentava o peito hercúleo coberto de medalhas, como um rochedo saliente que mostrasse as suas ostras ao mar. ” Bismarck apresentava-se com “seu fundo olhar de leão sem garras”. O outro intertexto consta de “Ludendorff” e se refere ao fantasma de Hindenburg: “Hindenburg, porém, já não era mais o soldado cheio de audácia e de aprumo. Seu corpo se achava destituído de todas as insígnias e de todos os uniformes, e no seu olhar andava uma onda de tristeza e de humildade, saturada de indefinível ternura. ” (Xavier, 1995a, p. 106). Note-se, também, que a modificação no olhar de Samuel é um índice de sua representação cristã.  Em “Oração dominical”, outra narrativa da série mediúnica atribuída a Humberto de Campos, situada na época de Jesus, há o seguinte trecho sobre os diferentes tipos de trabalho: “Todo trabalho honesto é de Deus. Quem escreve com a sabedoria dos pergaminhos não é maior do que aquele que traça a leira laboriosa e fértil, com a sabedoria da terra. O escriba sincero, que cuida dos dispositivos da lei, é irmão do lavrador bem-intencionado que cuida do sustento da vida. ” (Xavier, 1998b, p. 121) O autor, aqui, retoma o intertexto do Primeiro Samuel, em 28:15: “Samuel disse a Saul: ‘Por que perturbas o meu descanso chamando-me? ’” (A Bíblia de Jerusalém, p. 462). Perceba-se que o descanso de Samuel, no trecho bíblico, contrapõe-se ao seu trabalho, no trecho mediúnico, evidente referência à ideia espírita das atividades espirituais no além-túmulo.  Essa passagem se refere ao prosseguimento do Primeiro Samuel, 28:15: “Saul respondeu: ‘É que estou em grande angústia. Os filisteus guerreiam contra mim, Deus se afastou de mim, não me responde mais, nem pelos profetas nem por sonhos. Então vim te chamar para que me digas o que tenho de fazer. ’” (A Bíblia de Jerusalém, p. 462) A propósito, o tema da verdade foi tratado por Humberto de Campos em sua crônica “A verdade e o boato” (Campos, 1960p, p. 41-46); na série mediúnica, aparece, por exemplo, em Lázaro redivivo: “Buscando a verdade” (Xavier, 1995b, p. 163-167). 40-64: Em “A palavra do morto”, a experiência da morte (linhas 44; 53-54) justifica a transformação de Samuel, que é representado como um cristão avant la lettre, inteiramente distinto do Samuel bíblico. Veremos abaixo quais foram os principais intertextos carreados para as suas falas.  Em outro contexto, essas três passagens apresentam ideias semelhantes às defendidas por Fustel de Coulanges, algumas delas reproduzidas em “Clemenceau”, de Humberto de Campos. Seguem alguns exemplos: “A luta do espírito de conquista contra o espírito de trabalho é, sem dúvida, tão antiga quanto a humanidade. Não é somente em nossos dias que vemos nações aspirando à paz e soberanos ou ministros as mergulhando em todos os males e em todos os furores da guerra. ”126 (Coulanges, 1871, p. 5) Segundo Coulanges, a belicosa política de Luís XIV arruinou a economia francesa; a classe agrícola foi a mais afetada. “A pobreza se estendeu sobre toda a sociedade francesa, como uma lepra, e Fénelon escreveu ao grande rei conquistador: ‘Vosso povo morre de fome, e a França inteira não é mais que um grande hospital’”. (Coulanges, 1871, p. 25) os trechos mencionados do ensaio de Fustel de Coulanges foram por mim traduzidos.  Com objetivos pacíficos, “a verdadeira grandeza das nações consiste em seu trabalho, em sua prosperidade, no progresso regular de suas instituições livres, no desenvolvimento de seu espírito, no equilíbrio de sua consciência”. (Coulanges, 1871, p. 17) Na narrativa de Humberto de Campos, o espectro de Bismarck diz a Clemenceau: “Que monarca violou em primeiro lugar, na idade moderna, a liberdade dos povos pequenos, recorrendo a razões mentirosas e servindo-se, antes dos meus príncipes, do nome de Deus? Luís XIV! ”. Mais adiante, referindo-se aos alemães, fala ao líder francês: “Muitos dos defeitos de que nos acusam provieram das nossas guerras, especialmente das nossas guerras felizes. A vaidade, a fanfarronada, a admiração ingênua de nós mesmos, o desdém pelo estrangeiro, não eram mais fortes em nossa natureza do que na de qualquer outro povo. Eles foram introduzidos, pouco a pouco, por nossas guerras, por nossas conquistas, pelo hábito do sucesso. Toda nação que procurar, como nós, a glória militar, e conte tantas vitórias como nós, terá os mesmos defeitos. ” Essas guerras e atritos são sintetizados na passagem 14:47-48 do Primeiro Samuel: “Saul assumiu a realeza sobre Israel e fez a guerra em todas as fronteiras contra todos os seus inimigos, contra Moab, amonitas, Edom, o rei de Soba e os filisteus. Para onde quer que se voltasse, saía vitorioso. Realizou proezas de valentia, bateu os amalecitas e livrou Israel das mãos dos que o pilhavam. ” (Bíblia de Jerusalém, p. 440) A ideia da existência de povos privilegiados por Deus servia muitas vezes como justificativa para guerras. No Primeiro Samuel, Iahweh determinava a Saul grandes massacres; o ataque aos amalecitas (15: 1-9) é emblemático: Iahweh pede a Saul que os extermine, sem poupar mulheres, crianças nem recém-nascidos. Na Idade Moderna, segundo Coulanges, Luís XIV alegava que suas ações bélicas cumpriam a vontade divina: “Para um rei de direito divino, a ambição era um direito e quase um dever. Era preciso, para responder à vontade de Deus, que o rei fosse grande, e que todo o brilho da glória resplandecesse em sua pessoa. Engrandecer seu reino ou sua reputação era servir aos desígnios de Deus. ” (Coulanges, 1871, p. 9) Em “Clemenceau”, diz o fantasma de Bismarck: “Ele próprio [Luís XIV] escreveu, nas suas memórias: ‘Deus, que é o protetor da justiça, abençoou e ajudou os meus exércitos. ’ Foi com ele que os meus príncipes aprenderam a mentir em nome do céu. ” (Campos, 1960t, p. 327) essa passagem diz respeito a uma noção espírita de justiça, que implica a reparação aos prejuízos cometidos a outrem; no caso em questão, iniciada no além-túmulo. A ideia da justiça após a morte aparece também no ensaio de Coulanges: “Após uma série de vitórias inúteis, sucedeu uma série de derrotas; a paz que ele [Luís XIV] tantas vezes negara aos outros, desta vez, foi-lhe negada; ele não a encontrou senão nos últimos dias de sua triste velhice, às vésperas de ir prestar contas a Deus pelo sangue derramado. ” (Coulanges, 1871, p. 14) Em “Ludendorff”, o espírito de Hindenburg fala ao general alemão: “Fecha todas as portas do orgulho e da exaltação, porque, se a nossa pátria quis guardar as minhas cinzas no Panteão de Tannenberg, o meu espírito foi obrigado a se socorrer do último dos nossos comandados... O generalíssimo das batalhas, para Deus, não passava de um verme obscuro e insolente, condenado a prestar as mais severas contas de suas atividades sobre a Terra...” (Xavier, 1995a, p. 106-107) 59-62: Essa passagem alude ao preceito cristão do amor ao próximo, exposto em Mateus, 22: 39: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (A Bíblia de Jerusalém, p. 225 1881). Na narrativa, os filisteus e os ascalonitas são considerados os “próximos” dos hebreus. Em “Ludendorff”, esse mesmo princípio aparece na fala de Hindenburg, sobre Deus: “Na balança do seu amor e da sua justiça inviolável, a Alemanha não vale mais que a Palestina. Os judeus que combates são igualmente nossos irmãos, no caminho da vida.... Reconhece toda a verdade das minhas fraternas revelações, porque, na realidade, nenhuma nação, como nenhum homem, se pode antepor à Vontade Suprema...’” (Xavier, 1995a, p. 107). Em “A lição a Nicodemos”, de Boa nova, há esta passagem: “Se nos prendemos à lei de talião, somos obrigados a reconhecer que onde existe um assassino haverá, mais tarde, um homem que necessita ser assassinado; com a lei do amor, porém, compreendemos que o verdugo e a vítima são dois irmãos, filhos de um mesmo Pai. Basta que ambos sintam isso para que a fraternidade divina afaste os fantasmas do escândalo e do sofrimento. ” (Xavier, 1998b, p. 97) 65-68: Nesse parágrafo, a reação de Saul é semelhante à de Ludendorff, com relação às palavras do espírito de Hindenburg: “Ludendorff ouvia, com estranheza, as palavras que lhe vinham ao coração, das profundezas do túmulo. Dentro do seu orgulho inflexível conseguiu balbuciar: – ‘Deus? Não existe outro Deus a não ser aquele que simboliza a força, a superioridade da Alemanha...’ – ‘Cala-te! – Replicou ainda a voz pungente da sombra. – Acima de todas as pátrias do planeta, está a misericórdia suprema de um Deus, cuja providência é a luz e o pão de todas as criaturas. A sua sabedoria permitiu que os homens se dividissem à sombra de bandeiras, não para a carnificina das batalhas, mas para que amassem a escola do mundo terrestre, aproveitando seus trabalhos, dentro do idealismo das pátrias, até que conseguissem, longe de todo o estímulo do espírito de concorrência, compreender integralmente as leis da fraternidade e da solidariedade humanas...’” (Xavier, 1995a, p. 107) A referência, aqui, é a passagem 9:1-3 do Primeiro Samuel: “Havia entre os benjaminitas um homem chamado Cis, filho de Abiel, filho de Seror, filho de Becorat, filho de Afia. Era um benjaminita, um homem poderoso. Tinha ele um filho chamado Saul, um belo jovem. Nenhum outro havia entre os filhos de Israel mais belo do que ele. Dos ombros para cima era mais alto do que todos. As jumentas de Cis, pai de Saul, tinham-se desgarrado. Cis disse a Saul seu filho: ‘Chama um dos criados e vai à procura das jumentas’” (A Bíblia de Jerusalém, p. 430). Nessa passagem, Samuel continua sugerindo preceitos cristãos a Saul. A segunda pergunta, por exemplo, vai ao encontro de Mateus, 5:43-45: “Ouvistes que foi dito: Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo. Eu, porém, vos digo: amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem [...]” (A Bíblia de Jerusalém, p. 1847). Essa passagem contrasta com seu intertexto, isto é, Primeiro Samuel, 28:16-19: “Respondeu Samuel: ‘Por que me consultas, se Iahweh se afastou de ti e se tornou teu adversário? Iahweh fez contigo o que tinha dito por meu intermédio: tirou das tuas mãos a realeza e a entregou a Davi, porque não obedeceste a Iahweh e não executaste o ardor da sua ira contra Amalec. Foi por isso que Iahweh te tratou hoje assim. Como consequência, Iahweh entregará, juntamente contigo, o teu povo Israel nas mãos dos filisteus. Amanhã, tu e os teus filhos estareis comigo; e o acampamento de Israel também: Iahweh o entregará nas mãos dos filisteus.” (A Bíblia de Jerusalém, p. 462). Note-se que, no texto bíblico, tem ares de fatalidade a previsão de Samuel; em “A palavra do morto”, Saul teria uma possibilidade de escolha para evitar sua morte um dia após o diálogo com Samuel. 86-89: No texto bíblico, o desvio de Saul, que lhe causou graves consequências no dia seguinte ao de seu encontro com o espectro de Samuel, foi o não cumprimento integral das ordens de Iahweh. Em “Clemenceau”, o fantasma de Bismarck prenuncia, como resultado da vitória francesa na Primeira Guerra, um novo confronto; ele diz: “A guerra de amanhã – continuou a sombra – será um crime da França, como a de hoje foi, pela minha ambição, um crime da Alemanha. ” (Campos, 1960t, p. 325). Essas duas linhas resumem a passagem 28:20-22 do Primeiro Samuel: “Imediatamente, Saul caiu estendido no chão, terrificado pelas palavras de Samuel e também enfraquecido por não se ter alimentado todo o dia e toda a noite. A mulher aproximou-se de Saul e, vendo-o tão perturbado, disse-lhe: ‘A tua serva te obedeceu; arriscando a minha vida, obedeci às ordens que me deste. Agora, eu te suplico, ouve também as palavras da tua serva: deixa-me servir-te um pedaço de pão, come e recupera as tuas forças antes de voltares. ’” (A Bíblia de Jerusalém, p. 462). Essas últimas linhas do texto se referem à passagem 31:2-5 do Primeiro Samuel: “Os filisteus fizeram o cerco a Saul e seus filhos, e mataram Jônatas, Abinadab e Melquisua, filhos de Saul. Todo o peso do combate se concentrou sobre Saul. Os arqueiros o surpreenderam, e foi gravemente ferido por eles. Então disse Saul ao seu escudeiro: ‘Desembainha a tua espada e transpassa-me, para que não venham esses incircuncisos e escarneçam de mim. ’ Mas o seu escudeiro não quis obedecer-lhe, porque estava assombrado. Então Saul arrancou de sua espada e lançou-se sobre ela. Vendo que Saul estava morto, também o escudeiro se lançou sobre a sua espada e morreu com ele. ” (A Bíblia de Jerusalém, p. 465) A parte final de “Ludendorff” também enfoca a sua morte: “O valente soldado da Grande Guerra estava ali, vencido, em face da morte, e, daí a algumas horas, sem que os médicos pudessem explicar o desenlace inesperado, Ludendorff penetrava os pórticos do mundo espiritual, amparado por uns braços de névoa, não mais para pregar o imperialismo do seu país ou para recordar os dias gloriosos de Tannenberg, mas para orar humildemente,  diante da misericórdia divina, suplicando ao Senhor a inspiração necessária para os vivos da sua pátria.” (Xavier, 1995a, p. 109) REFERÊNCIAS PRINCIPAIS DE “A PALAVRA DO MORTO”: Primeiro Samuel, 28: Abandonado por Iahweh, e na véspera de batalhas contra os filisteus, Saul vai a uma necromante para ouvir o espírito de Samuel, líder político e religioso que o antecedera e o ungira como o primeiro rei dos hebreus. O espectro prediz a morte de Saul e de seus filhos, em luta contra os filisteus, no dia seguinte. “La politique d’envahissement”, de Fustel de Coulanges: Nesse ensaio, o pensador francês defende a ideia de que, na Idade Moderna, o reinado de Luís XIV no século XVII, sob a política de Louvois, foi o introdutor do que ele chama de “política de invasão”, movida pelo bélico “espírito de conquista”, em detrimento ao pacífico “espírito de trabalho”. Visando ao crescimento territorial da França e ao aumento de suas riquezas, o soberano francês promovia guerras para a conquista de territórios alheios. Diz Coulanges que, principalmente para a França, que vencera quase todas as guerras daquele período, essa política foi desastrosa. Cerca de dois séculos depois, a política de invasão teria ressurgido, e de forma mais danosa, sob a liderança de Otto von Bismarck. Coulanges escreveu o ensaio na época da guerra franco-prussiana; ele conclui o texto dizendo que, assim como a França amaldiçoava Louvois, a Alemanha amaldiçoaria Bismarck, por conta da equivocada política de invasão de ambos. “Clemenceau”, de Humberto de Campos Em 28 de junho de 1919, após a assinatura do Tratado de Versalhes, o francês Clemenceau encontrava-se em seu gabinete de trabalho. Diante dele, uma tênue fumaça foi ganhando forma humana: era a materialização do espírito de Bismarck. A narrativa se concentra no diálogo entre os dois líderes europeus. Bismarck acusava a política militar da França na Primeira Guerra Mundial; dizia, por exemplo, que “no ninho de ouro de Versalhes foi posto, há pouco, para ser fecundado pelo tempo, o ovo de uma calamidade” (Campos, 1960t, p. 325). Na parte final do texto, Clemenceau percebe que quase todos os argumentos utilizados por seu interlocutor eram, literalmente, as mesmas alegações com que Fustel de Coulanges127 amaldiçoara o próprio Bismarck em 1871. O fantasma de Bismarck, portanto, foi representado como um porta-voz de Coulanges, cujos pontos de vista foram direcionados, desta vez, aos franceses do início do século XX. O texto “A palavra do morto” sugere que Humberto de Campos, quando concebeu o diálogo entre Clemenceau e o espírito de Bismarck, teria se inspirado no capítulo 28 do Primeiro Samuel, intertexto explícito da narrativa de Lázaro redivivo. A propósito, uma famosa passagem do Primeiro Samuel – a luta de Davi contra Golias – é aludida no título A funda de Davi, da série Conselheiro XX. No início do volume, à maneira de epígrafe, Humberto de Campos transcreveu a passagem XVII: 39-46 do livro bíblico em questão. “Ludendorff”, de Chico Xavier, atribuído a Humberto de Campos: Escrita em 28 de dezembro de 1937, essa narrativa trata do general alemão Ludendorff, que morrera dias antes. “Nacionalista extremado, não tolerava a república, era adversário declarado da Igreja Católica e ferrenho inimigo dos judeus e da maçonaria, concentrando todas as suas aspirações de homem e de soldado no pan-germanismo, acreditando que somente da Alemanha poderia surgir o próprio aperfeiçoamento.   Embora, em “Clemenceau”, para referir-se ao ensaio de Fustel de Coulanges, Humberto de Campos tenha citado a Revue des deux mondes, onde foi primeiramente publicado, o escritor leu o texto francês no livro Questions historiques (Coulanges, 1893). O exemplar que lhe pertencia, com grifos em passagens aproveitadas para a composição de “Clemenceau”, encontra-se na Biblioteca Pública Benedito Leite, em São Luís (MA).  Mundos. ” (Xavier, 1995a, p. 104). Focalizado em seus últimos momentos antes da morte, surge à percepção de Ludendorff o espírito de Hindenburg, que também fizera parte do alto comando militar alemão na Primeira Guerra. De forma análoga à representação do fantasma de Bismarck, em “Clemenceau”, e tal como foi elaborado o espírito de Samuel, em “A palavra do morto”, o espectro de Hindenburg é representado como um revelador de novidades cristãs ao amigo Ludendorff: “O nosso sonho de imperialismo e de superioridade da Alemanha não passa de uma vaidade tocada de loucura, que Deus pode desfazer de um instante para outro, como o vento poderoso que move as areias de uma praia. ” (Xavier, 1995a, p. 106) Além dessas quatro referências, é oportuno mencionar mais cinco textos de Humberto de Campos que têm a ver com os temas acima tratados: em “A pena de morte” (Campos, 1949, p. 3-9), fala das incongruências entre o Antigo e o Novo Testamento; em “Hindenburg em Tannenberg” (Campos, 1960g, p. 15-20), por ocasião da morte de Hindenburg, descreve seus feitos militares na batalha de Tannenberg (1914); em “Hindenburg” (Campos, 1960o, p. 257-264), traça um perfil do marechal alemão; em “Em favor de Israel” (Campos, 1960d, p. 245-251), publicado no Diário Carioca de 29 de março de 1933, defende os judeus, ameaçados pelo antissemitismo hitlerista; em “Venceste, Israel!” , elogia o legado judaico.

Obras Consultadas

·         1936 - Palavras do Infinito

·         1937 - Crônicas de Além-Túmulo

·         1938 - Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho

·         1940 - Novas Mensagens

·         1941 - Boa Nova

·         1943 - Reportagens de Além-Túmulo

·         1945 - Lázaro Redivivo

·         1948 - Luz Acima

·         1951 - Pontos e Contos

·         1958 - Contos e Apólogos

·         1964 - Contos Desta e Doutra Vida

·         1966 - Cartas e Crônicas

·         1969 - Estante da Vida

·         1988 - Relatos da Vida

·         1989 - Histórias e anotações

Referências

1.     Souto Maior 2003

2.     http:/febnet/ A psicografia ante os tribunais (O caso Humberto de Campos),

3.     Alexander Moreira de. Pesquisa em mediunidade e relação mente-cérebro: revisão das evidências

4.     Rocha AC. O Caso Humberto de Campos tese doutorado

OBSERVAÇÃO:

·        Saladino chefe militar muçulmano que liderou a oposição islâmica contras as Cruzadas

·        Hélicon: na mitologia grega, monte onde habitavam as nove musas, filhas de Zeus e Mnemósine.

·        Afonso Ribeiro, segundo carta de Pero Vaz de Caminha, foi exilado às terras tupiniquins (então Colônia de Portugal) como pena por suposto assassinato.

·        Padre Manuel da Nóbrega, segundo Chico Xavier, foi uma reencarnação do Espírito Emmanuel

·        Coorte: cada uma das dez unidades de uma legião do exército romano, exército, grupo militar

·        Castor e Pólux, segundo a mitologia Greco-romana, eram dois irmãos, filhos da mesma mãe, mas de diferentes pais, sendo o primeiro oriundo de um homem (mortal) e o outro gerado de Zeus (deus imortal). Como eram irmãos unidos, simbolizam o amor fraterno, implícito na Constelação de Gêmeos

·        Te-Déum: hino litúrgico católico, originalmente atribuído a Santo Ambrósio e Santo Agostinho, iniciado com a expressão “Te Deum laudamus” = “A Deus saldamos”

·        Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) filósofo iluminista francês

·        Thomas Jefferson (1743-1826): principal articulista da independência americana e, mais tarde, presidente dos Estados Unidos da América

·        Têmis: na mitologia grega, a deusa guardiã dos juramentos dos homens e da lei diante dos magistrados para o julgamento dos réus.

·        O autor se refere a D. Pedro I, futuro imperador

·        Estróina: gandaieiro, fanfarrão, bandoleiro, gaiato

·        Longinus: supomos se tratar de Longino, venerado em Portugal como um santo católico (embora sem a canonização da Igreja) por ter sido o centurião romano que, diante do calvário, reconheceu Jesus como “o filho de Deus”. No entanto, pelo seu nome em grego significar “lança”, há quem o identifique como o soldado que perfurou Jesus com uma lança durante a crucificação

·        Província Cisplatina era a região ao sul do Brasil tomada do Reino da Espanha pelos portugueses em 1821, que, tendo ganho independência em 1828, tornou-se a República Oriental do Uruguai.

·        Christian Friedrich Samuel Hahnemann (1755-1843) médico alemão fundador da homeopatia em 1779

·        Manifestações espirituais ocorridas com as irmãs Fox, também conhecidas como Poltergeist

·        Revista que até a presente data ainda está em circulação, mensalmente publicada pela FEB, a Federação Espírita Brasileira

·        José do Patrocínio (1853-1905): importante ativista brasileiro em prol da abolição dos escravos e da campanha pela proclamação da República

·        Ano-bom: réveillon, véspera do ano novo

·        Em “novos inspirados da Úmbria, o autor nos remete ao modelo evangélico de caridade e vida simples de São Francisco, nascido na cidade de Assis, dentro da região umbriana, na Itália – N. D.

v Em 1910, quando contava 24 anos, publica seu primeiro livro de versos, intitulado "Poeira" (1.ª série), que lhe dá razoável reconhecimento e muda-se para o Rio de Janeiro, onde prossegue sua carreira jornalística e passa a ganhar destaque no meio literário da Capital Federal, angariando a amizade de escritores como Coelho NetoEmílio de Menezes e Olavo Bilac. Começa a trabalhar no jornal "O Imparcial", ao lado de figuras ilustres como Rui BarbosaJosé VeríssimoVicente de Carvalho e João Ribeiro

v Em 1919 ingressa na Academia Brasileira de Letras, na cadeira n.º 20. Um ano depois ingressa na política, elegendo-se deputado federal pelo seu Estado natal, tendo seus mandatos sucessivamente renovados até a eclosão da Revolução de 1930, quando é cassado. É nomeado, graças à admiração que lhe votavam figuras de destaque do Governo Provisório, Inspetor de Ensino no Rio de Janeiro e, posteriormente, diretor

5.     Após vários anos de enfermidade, que lhe provocou a perda quase total da visão e graves problemas no sistema urinário, Humberto de Campos faleceu no Rio de Janeiro, em 5 de dezembro de 1934, aos 48 anos, por uma síncope ocorrida durante uma cirurgia. vieram lume diversos livros supostamente escritos pelo espírito do escritor, por meio da psicografia do médium Chico Xavier. Os familiares de Humberto de Campos processaram judicialmente este último, alegando a ausência de pagamento de direitos autorais. A demanda, que provocou grande polêmica na época, foi julgada improcedente

6.     Divo a essa polemica Humberto de Campos ainda ditou outros livros, mas sendo identificado como Irmão X.

 

 

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