QUEM FOI O PADRE ALTA
Tendo dito
da obra o que se nos afigurou necessário e conveniente e o que nos foi possível
para, de antemão, lhe realçarmos a importância e o valor, aos olhos dos que
dela venham a inteirar-se pela sua tradução no nosso idioma, não houvéramos,
contudo, realizado o nosso empenho, se não ensejássemos aos leitores saber algo
do Autor, a cuja destacada personalidade fizemos, em começo, as referências que
nos pareceram justas e merecidas.
Tomando a
única direção que se nos deparava como capaz de levar-nos à obtenção de alguns
dados exatos acerca do Padre Alta, mais uma vez recorremos à bondade sempre
solicita com que o nosso ilustre confrade Gabriel Gobron costuma atender ao que
lhe é pedido em nome da Federação, que se desvanece da estima e do apreço
em que ele a tem.
Respondendo-nos,
declarou esse eminente amigo ser muito difícil conseguirem-se informações
copiosas e precisas a respeito de Alta, porquanto, desde que passara a residir
em Paris, teve uma vida de beneditino completamente apagada, parecendo que o
título, que possuía, de "doutor da Sorbonne", não lhe fora conferido
a termo de curso ali feito, mas em virtude da apresentação ou publicação de
algum dos seus mais notáveis trabalhos.
Adiantou-nos,
porém, que nos seus últimos anos de existência, que se findou há quatro ou
cinco, o ilustrado sacerdote estava quase inteiramente cego, como o verificou
Luís Traffeli, professor em Roma, quando, visitando-o em Paris, teria, por essa
razão, deixado de lhe oferecer as obras de sua autoria, entre outras a que tem
por título: "Nous, Citoyens du Royaume de Satan", ("Nós,
Cidadãos do Reino de Satanás").
Informou-nos
mais Gobron, com relação às obras do Padre Alta, que elas constam, na sua
maioria, de "novas traduções" feitas sobre os textos originais e com
aproveitamento das descobertas da exegese e da linguística moderna, adiantando:
Na sua tradução de S. Paulo, este esposa a doutrina da reencarnação, o que,
aliás, os ingleses mostram por outra maneira, estabelecendo que as
palavras eterno e eternidade não existem na Bíblia.
Ainda
segundo o mesmo ilustre informante nosso, "Plotino" foi a última obra
que Alta traduziu, consumindo muitos anos nesse considerável trabalho.
 Disse-nos assim o nosso eminente amigo o que
sabia do autor de "O Cristianismo do Cristo e o dos Seus Vigários",
mas, interessado, como sempre se revela, em satisfazer, de modo tão completo
quanto possível, ao que lhe solicita a Federação, pelo que já se há constituído
credor de todo o nosso reconhecimento, lembrou-se de recorrer a uma pessoa que
conhecera de perto o Padre Alta,  Mlle.
Brasseaud, residente em Rochefort, onde dirige a publicação de uma revista
intitulada "Anais do Espiritismo", o que denuncia a natureza de suas
crenças atuais.
Em resposta
a Gobron, escreveu ela longa carta, com boa cópia das informações que
desejávamos e cujos tópicos principais passamos a transcrever:
"De
acordo com seus desejos e, sobretudo, com as minhas possibilidades, porquanto,
tendo muito defeituosa a vista, me acho impossibilitada de fazer bem qualquer
trabalho de escrita, vou, para lhe ser agradável e mau grado à minha
incapacidade, tentar reviver a lembrança que me prende ao Padre Alta, cujo
verdadeiro nome é Mélinge e que nasceu em Saintonge.
"Nomeado
pelo seu bispo, foi, durante algum tempo, capelão de um pensionato de moças, em
Rochefort. Pouco mais tarde, deram-lhe também o serviço religioso de outra
capela denominada "Bon Secours", onde alcançou os mais brilhantes
êxitos oratórios.
"Nessa
época, isto é, por volta de 1884, a nossa cidade de Rochefort era um porto de
mar muito atraente. Frequentavam-no, em grande número, oficiais de Marinha,
doutores e outras muitas pessoas de destaque. Tínhamos, pois, ali,
constantemente, um escol de intelectuais espiritualistas, constituído de
homens de valor, que acorriam a ouvir, com grande satisfação, o Padre Alta. As
fisionomias se tornavam radiantes, nos que o escutavam a discorrer sobre as
mais sérias questões, sobre as mais graves mesmo, poderia eu dizer, porquanto
muitas vezes lhe acontecia demolir de um só golpe os velhos prejuízos
católicos, mostrando a inanidade dos dogmas e profligando, em linguagem sóbria,
mas severa, o proceder dos exploradores da credulidade humana. "Eu
assistia a essas conferencias e procurava sempre, à saída do templo, colher as
reflexões que muitos externavam e que eram, acredite, invariavelmente
favoráveis ao orador.
             
 "O mesmo, porém, não se dava nas outras
paróquias da cidade, onde os devotos e os curas bradavam: escândalo! Anátema!
"Entrementes,
um desses curas, mais atilado do que os colegas e cuidando; especialmente, dos
seus interesses, pediu a Alta que fosse pregar na sua igreja paroquial. Isto
deve ter ocorrido em 1887 ou 1888. Ele aceitou e ninguém pode imaginar que
multidão o foi ouvir. Havia gente a se comprimir por toda parte,
até nos recintos batismais e nos parapeitos das grandes janelas. Nunca em minha
vida observei tão grande afluência de povo.
"Mas,
alguns adversários seus, provavelmente padres também, escreveram ao bispo,
pedindo pusesse termo às prédicas de Alta, que resistiu e continuou, pouco
tendo faltado para que os aplausos que lhe dispensavam se transformassem em
aclamações. Sentia ele, no entanto, e me disse que em breve estaria proscrito.
"Efetivamente,
foi o que, afinal, sucedeu, após inúmeros vexames e injustiças. O bispo veio
aqui a Rochefort e, na paróquia principal, diante do arcipreste (título
dos vigários de certas igrejas, que lhes confere preeminência sobre os outros vigários)
e de outros eclesiásticos, o intimou a deixar imediatamente a sua
capelania (assistência religiosa e social) e o mandou para a
campanha.
"Ele a
princípio se negou a obedecer, protestando que não estava a pregar o erro, pois
que se apoiava sempre em textos sagrados, tomados ao grego e ao hebreu, línguas
que conhecia a fundo. Não se importou com isso o bispo. Por fim, disse ele ao
prelado: Irei, mas depois de obter as satisfações que me prometeis.
"Um
ano depois, abandonava a diocese, indo para Paris, onde, passado algum tempo,
foi nomeado capelão da Casa da Legião de Honra de Ecouen (Instituição
fundada por Napoleão, para asilo dos órfãos de oficiais pobres. É um
estabelecimento de educação, a 20 ou 25 quilômetros de Paris). Também
daí teve de retirar-se, em consequência de excesso de preconceitos, da parte da
respectiva diretoria, que não o compreendera. Para reconfortá-lo,
ficavam-lhe apenas seus livros e o estudo.
"Eis
aí o que sei desse homem todo bondade e tolerância levadas ao extremo. Era
exclusivamente com bondade e tolerância que respondia à injustiça e a felonia e
Deus sabe quanto o fez sofrer a crítica mentirosa que o alvejava.
"Todavia,
não devemos querer mal aos que, com relação a ele, não tiveram o senso da
Verdade e da Realidade. Devemos, ao contrário, perdoar-lhes. Que bela natureza
a sua! Sempre pronto ao perdão e tão simples no viver! 
"Desde
o dia em que saiu de Ecouen, cessaram as nossas relações, que não procurei
manter, temendo aborrecê-lo, informei-me, porém, e vim a saber que ele vivia
muito precariamente, quase que só das generosidades de um amigo que lhe provia
às necessidades mais prementes.
"Nunca
foi ambicioso, do ponto de vista terreno. Sua única ambição era o estudo.
Aprender constantemente, dizia, porque nada mais somos do que grandes
ignorantes.
"É
natural perguntem, como se explica que uma inteligência medíocre, qual a minha,
haja podido aproximar-se daquele gênio. Nada mais vejo, nesse fato, do que um
desígnio da Providência, de quem bendigo por me haver conduzido até junto de
tão nobre inteligência.
"Este
o breve apanhado que posso apresentar acerca da personalidade do Padre Alta.
Não sei se satisfará...
"Admiro
os espíritas brasileiros pela sua fé esclarecida e pela estima que votam a essa
grande alma que foi o Padre Alta.
Queira
perdoar a incorreção desta carta, que escrevi mecanicamente, mal enxergando as
letras ao traçá-las e sem poder reler o que escrevo. Minha vista se enfraquece
cada vez mais. Queira também apresentar as minhas felicitações e saudações
fraternais aos nossos irmãos do Brasil. ”
Embora
deficiente como retrato biográfico, a carta que se acaba de ler contém
informações bastantes para que, diante da excelente obra que é "O
Cristianismo do Cristo e o dos Seus Vigários" e depois de colhidos os
valiosos ensinamentos que ela encerra em profusão, não nos achamos sem poder
avaliar a elevação espiritual e intelectual do seu autor que, por dar
desassombrado e eloquente testemunho da Verdade, incorreu nas iras do
sectarismo sempre implacável e mereceu ser proscrito do seio dos que a
abominam, por amor do erro com que alimentam suas almas e pretendem que todas
as outras se alimentem. A essa proscrição, juntando mais uma prova da sua
firmeza de ânimo e da inquebrantabilidade da sua têmpera de lutador que não
cedia às arremetidas contra as suas convicções sinceras, alude ele próprio,
dizendo num dos derradeiros períodos do seu admirável trabalho de sustentação e
defesa do vero Cristianismo:
"Passou,
felizmente! O tempo em que o Santo Padre Inocêncio XI podia reduzir à fome o
douto Baluze, para impedi-lo de dar à publicidade os verdadeiros textos dos
Concílios e dos Pais da Igreja, alterados em Roma, a favor da autocracia
pontifical. Já não podeis fazer mais do que adornar com o cognome de
"modernista" e privar amavelmente das suas funções eclesiásticas o
padre que teve a audácia de verificar por si mesmo o ensino dos teólogos
romanos e que se julga obrigado, em consciência, a expor o resultado de suas
verificações, resultado que conduziria, não, certamente, à supressão, mas a uma
modificação séria da Igreja ensinadora, para pô-la de acordo com os reclamos da
verdadeira ciência e do verdadeiro Cristianismo."
Com este
tópico que, além de comprovar a proscrição a que nos referimos, revela
claramente o espírito com que foi concebida e executada a presente obra, bem
como dos altos fins que com ela colimou o Autor, fins, que, quase poderíamos
dizer, se identificam aos do Espiritismo, encerramos estas páginas
prefaciais, juntando-lhes apenas os mais vivos e sinceros agradecimentos aos
bondosos irmãos e confrades G. Gobron e J. Brasseaud, que tão eficientemente
nos ajudaram a escrevê-las, o que fizemos sem preocupações literárias, mas tão
só com a de também servirmos à Verdade, na medida dos nossos parcos recursos
intelectuais.
FONTE:
Padre Mélinge
usando o pseudônimo de PADRE ALTA
 
