“O
CRISTIANISMO DO CRISTO E O
DOS SEUS VIGÁRIOS...”
Padre Alta (Doutor pela Sorbonne)
Evidentemente,
a todos os funcionários eclesiásticos possuidores de um título elevado na
organização atual do Catolicismo Romano sobram motivos para manterem as conquistas
penosamente realizadas no curso dos séculos, do mesmo modo que a aristocracia e
a realeza, em França, nas vésperas da Revolução, tinham desculpa para se
obstinarem em manter o regime do "bel prazer real", formulado por
Francisco I e constituído sob Luís XIV.
Como é, com
efeito, que um papa gloriosamente reinante, quando celebra a missa pontifical
em S. Pedro de Roma, trazendo à cabeça a tiara, naquela pompa mais que real aos
adornos pontifícios, com a grandiosa corte de cardeais e prelados cobertos de
ouro e púrpura, com um cortejo imenso de padres recamados e serviçais
magníficos, numa atmosfera de adorações de toda a assistência, concentradas na
sua augusta pessoa, poderia admitir que aquele Cristianismo deslumbrante, tão
glorioso para ele papa, não seja o verdadeiro Cristianismo?
Como é que
um arcebispo, um bispo, ao celebrar suas funções eclesiásticas com a
magnificência oficial; como é que um cura das ricas e nobres paróquias de
Paris, recebendo de trinta a quarenta mil francos por um grande enterro ou um
grande casamento, poderiam imaginar que uma organização eclesiástica que lhes
confere tais honras e honorários não seja a perfeição absoluta da organização
eclesiástica? Considero-os, em realidade, desculpáveis em afastarem, com um
sorriso de desdém, o livro, se porventura o encontrem, ainda que fosse o
Evangelho de S. João, dedicado "ao papa de gênio que elevar a Igreja
Católica, do Cristianismo material ao Cristianismo espiritual"?
Entretanto,
Monsenhores, a Constituição romana da Igreja é uma criação humana in totum diferente da instituição divina. Demonstrei-o
historicamente neste volume e vou demonstrar logicamente, em poucas palavras,
que a fé que consiste em crer-vos ou crer nos vossos catecismos, não é de modo
algum a fé. Ela mesma, ao demais, o prova, porquanto não produz em absoluto os
milagres que Jesus Cristo promete à fé.
Devo
render-vos a homenagem de reconhecer que, nos vossos catecismos impressos,
ainda ensinais que a fé, a esperança e o amor de Deus são "virtudes que se
reportam diretamente a Deus". Mas, praticamente, segundo a formação ativa,
por vós, dos vossos fiéis passivos, o amor de Deus, sobretudo nas religiosas
enclausuradas, se reporta diretamente à pessoa de Jesus Cristo, ou, ainda mais
piedosamente, ao seu coração de carne. A esperança se reporta às indulgências
que vos digneis de permitir ganhemos durante a nossa vida e se reporta
igualmente ao número de missas que vos paguem por nós, depois da nossa morte.
Quanto à fé, a que impondes sem nenhum respeito humano, consiste em crer sem
exame no que denominais "os dogmas da fé"; pelo único motivo de que
assim o ordenais. Contudo, o nosso ensino, objetar-me-eis, não é ensino nosso,
é "o ensino da Igreja".
Admirável
abstração, sem dúvida, essa dama, "a Igreja", como esse senhor
"o Estado", que nunca ninguém teve a honra de ver, senão nos seus
representantes, de maneira nenhuma infalíveis.
"- O
Estado não é infalível, não! Mas a Igreja é infalível, sim!"
E seus
representantes também o são? Ninguém o suspeitaria, garanto-vos. Mas, afinal,
Monsenhores, devo crer no ensino da Igreja, não é? Porque a Igreja é infalível.
Evidentemente, toda a questão se resume nisso e não noutra coisa. Entretanto,
porque, peço mo digais, devo crer na infalibilidade da Igreja?
"-
Porque...
- Esta a
questão embaraçosa, não é, Monsenhores?
-
Absolutamente! Deveis crer na infalibilidade da Igreja, porque a Igreja vo-lo ordena."
- Sabeis,
Monsenhores, que esse raciocínio é exatamente o que em lógica se chama "um
círculo vicioso", isto é, uma burla, o oposto de uma razão. Se tratais com
um espírito dotado de razão, comigo, por exemplo, ver-vos-eis compelidos a me
demonstrar por meio da razão, do Evangelho, da História, que a Igreja, tal como
sempre existiu, ainda existe sob os meus olhos, é verdadeiramente divina e
divinamente infalíveis. Eis-vos, portanto, forçados a recorrer à razão e à
ciência, para me demonstrar que devo crer-vos; e eis-vos, pois, sob a base
oficial que pretendeis impor à minha fé: "a autoridade da Igreja",
obrigados a chegar à base única: a razão, isto é, a visão, por mim mesmo, do
que motiva a minha fé, ou, seja, a luz. É por aÍ, com efeito, que a minha fé se
reportará a Deus, porque "Deus é luz" e a luz intelectual é a única
manifestação de Deus à razão do homem.
Em Direito,
crer sem ver não é uma fé que se possa qualificar de divina; crer sobre a
palavra dos homens, quaisquer que eles sejam, não é também uma fé a que caiba
aquele qualificativo, mas confiança humana. Em matéria de fato, no tocante ao
ensino religioso, essa confiança dos fiéis na palavra da sua respectiva Igreja
- porquanto elas são muitas e se excomungam umas às outras - gera, não a
unidade nem a fraternidade, mas divisões, hostilidades e fanatismos, que de
certo a autoridade da Razão não geraria. Nas ciências humanas, respeito às
quais o aluno pode verificar materialmente as afirmações de seus mestres, o
ensino destes não poderia ser uma exploração; na ciência espiritual, porém, a
fé por procuração, segundo declaração mesma da Igreja, não é, de modo nenhum,
uma certeza. Porque, afinal, segundo vós outros, católicos romanos, a fé dos
ortodoxos gregos ou russos nas suas Igrejas grega ou russa é um erro;
entretanto, para eles, o motivo de fé é exatamente idêntico ao dos vossos
fiéis: crer no que lhes ensina a Igreja deles.
Círculo
vicioso, manifestamente, e, portanto, o contrário de uma virtude; petição de
princípio e, portanto, fonte de erros, não infalibilidade.
Não há
mister, em verdade, discutir todos os textos do Evangelho e todos os fatos da
História, para demonstrar que nenhuma Igreja é infalível, nem a Igreja romana,
nem as outras. Basta comprovar que todas são acordes em atribuir a Deus esta
abominável crueldade: a condenação eterna.
Renunciem,
pois, todas à pretendida infalibilidade, que é uma tirania intelectual; voltem
ao Cristianismo do Cristo, que unicamente pede a fraternidade entre todos, no
amor do Deus único, Pai de todas as criaturas. Pelo que toca ao conhecimento de
Deus, não peçais a cada um, senão "segundo a medida de fé que Deus
mediu para cada um", escreveu formalmente São Paulo, "somente
essa fé constitui uma adoração racional" (rom 12:1,3-“exorto-vos,
portanto, irmãos, pela misericórdia de Deus, a que ofereçais vossos corpos,
como sacrifício vivo, santo e agradável
a Deus: este é o vosso culto espiritual e não vos conformeis com este mundo,
mas transformai-vos ,renovando a vossa mente, a fim de poderdes discernir qual
é a vontade de deus, do que é bom, agradável e perfeito, em virtude da graça
que me foi concedida, eu peço a todos e a cada um de vós que não tenha em si
mesmo um conceito mais elevado do que convém, mas uma justa estima, ditada pela
sabedoria, de acordo com a medida da fé,
que Deus dispensou a cada um”). E Deus mede a cada um, diz Jesus, segundo
a capacidade de cada um: unicuique
secundum propriam virtutem .
A missão do
Clero não é impor a sua autoridade: Nolite vocari magistri, magister vester unus est Christus.
A missão do
Clero é instruir-se cada vez melhor e devotar-se cada vez mais: Qui primus est inter vos fiat vester minister .
Ele desceu
a encosta dos arrastamentos humanos, é-lhe preciso subir a encosta por onde
desceu. Transformar-se ou perecer, tal o dilema que o progresso da liberdade e
da ciência impõe, a todas as Igrejas, em primeiro lugar à Igreja romana que,
sendo a mais poderosa, tem maiores responsabilidades.
FONTE:
Padre Mélinge
codinome Padre Alta (Doutor pela Sorbonne)
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