FILOSOFIA
ESPIRITUALISTA
O
humano, contempla de cima todas as coisas da terra, mantendo apenas o contato
indispensável com as coisas de baixo, enquanto vive na pureza da luz celeste...
Lá
se foi a sua infeliz satisfação de anteontem, bem como a sua feliz insatisfação
de ontem!... Despontou em feliz satisfação de hoje, de amanhã e de sempre...
A
fome e sede da verdade foram, finalmente, saciadas...
Mas
para que a lagarta rastejante pudesse transformar-se na borboleta voadora, foi
necessário que se interpusesse entre as duas vidas uma espécie de morte, a pseudo
morte da crisálida... A vida da borboleta é a mesma vida da lagarta; é a mesma
essência vital, numa outra existência; é uma sublimação e transformação de uma
vida única – e esta metamorfose foi realizada graças à passagem pela pseudo morte
da crisálida. Se a lagarta não tivesse uma fé biológica na vida, não permitiria,
serena e calma, um mergulho nessa morte misteriosa da crisálida...
“Eu
sou a ressurreição e a vida; quem tiver fidelidade a mim não morrerá e, ainda que
tenha morrido, viverá para todo o sempre. ”
5.
Bem-aventurados os misericordiosos, porque eles alcançarão misericórdia. À
primeira vista, esta beatitude parece ser puramente moral e filantrópica – e ainda
com a agravante de que outros nos façam a mesma misericórdia que a eles
fizemos.
Se
assim fosse, esta bem-aventurança representaria uma decaída da altura das precedentes.
Entretanto, nem o caráter meramente moral nem a índole mercenária de
retribuição fazem parte desta beatitude, que está bem à altura das outras,
embora a sua índole seja profundamente metafísica e univérsica.
Aliás,
os grandes Mestres da humanidade, sobretudo o Cristo, nunca falam de uma
perspectiva puramente moral, horizontal; falam sempre da perspectiva vertical
de uma metafísica ontológica e mística, lembrando nascentes que brotam do seio
das montanhas e daí derivam para as planícies. Os ensinamentos dos grandes
avatares da humanidade nunca são simples rios ou lagos plácidos nos vales, são
sempre poderosas cachoeiras nas alturas. De horizontal a horizontal, não há
voltagem, há apenas amperagem; não há ectopia, mas apenas entropia. Mas, como
ensina a própria ciência, de nível para nível não há força; a força vem de
desnível para nível. Onde não há um fundo de metafísica não há uma física
poderosa; onde falta a mística, a ética se esgota logo em simples moralidade.
Esta
beatitude anuncia a grande lei cósmica do dar e do receber; e a íntima interdependência
entre estas duas atitudes do homem.
Ninguém
pode receber algo para além da sua receptividade, porquanto, como diz o antigo
adágio filosófico, “o recebido está no recipiente segundo a capacidade do
recipiente”.
E
a capacidade do recipiente se alarga ou se estreita segundo a maior ou menor atitude
de doação do doador.
A
finalidade desta beatitude não é apenas ética ou moral, como parece à primeira vista;
ela é altamente mística. O maior beneficiado não é o receptor da misericórdia,
mas sim o doador. Através da sua espontânea e desinteressada doação, o doador
crea em si uma atitude de auto-realização em alto grau, alto-realizando os
outros. Suposto, naturalmente, que o doador não vise a nenhuma retribuição por
parte dos seus beneficiados, qualquer especulação, por mais sutil e secreta, no
sentido de ser recompensado por seus benefícios, nulifica totalmente o valor da
doação.
Por
quê?
Porque
qualquer ideia de recompensa, seja antes ou depois da morte, é egoísmo. Somente
o ego humano pode ter semelhante intenção. O Eu divino no homem, o Pai, o
Cristo interno, a Luz do mundo, o Reino de Deus, não esperam recompensa, nem da
parte dos homens nem da parte de Deus, uma vez que o Eu, na sua essência, é
tudo e não necessita de nada; ele apenas desperta ou conscientiza esse Tudo,
que é ele mesmo.
Esta
conscientização é feita pelos objetos, mas o sujeito é a fonte.
Somente
um pobre mercenário espera ser recompensado, escorado por algo de fora.
Somente
um homem incompleto deseja ser compensado.
Somente
um pobre doente necessita ser pensado, como a enfermeira pensa os ferimentos.
Mas
o Eu não é mercenário, nem incompleto, nem doente.
Portanto,
quem dá misericórdia não espera misericórdia da parte dos homens.
Nem
espera misericórdia da parte de Deus; mas, segundo leis eternas, a misericórdia
de Deus flui, irresistível e espontaneamente, da Fonte plena para dentro de
qualquer canal vazio. Quer o homem o saiba e queira ou não, a plenitude da
fonte plenifica infalivelmente a vacuidade dos canais.
Pedi
– e recebereis.... Buscai – e achareis.... Batei – e abrir-se-vos-á...
A
finalidade desse pedir, buscar, bater, não consiste em lembrar a Deus que de
algo necessitamos, nem em movê-lo a que nos dê o necessário. Pois, “vosso Pai
celeste sabe que de tudo haveis mister, antes mesmo de lho pedirdes”.
A
finalidade do pedir, buscar, bater, não está em Deus, mas no homem. O doador
não pode dar nada sem que o receptor possua a necessária receptividade – e essa
receptividade é creada pelo homem mediante o pedir, buscar, bater.
O
ensinamento dos grandes Mestres nunca visa, em primeiro lugar, aos objetos do
mundo externo, mas sim ao sujeito do nosso mundo interno.
Muitos
homens caridosos e filantrópicos veem na sua beneficência o fim primário, ou
mesmo único, da sua atividade altruística. Querem, acima de tudo, fazer
benefícios; não compreendem que o beneficiado não é o alvo primário da
beneficência, mas sim o benfeitor – naturalmente não o ego-canal, que seria
egoísmo, mas o Eu-fonte, que é cristificação.
Muitos
se iludem, convencidos de que toda a sua beneficência seja puro transbordamento
da sua benevolência mística. Pode a beneficência horizontal servir de meio para
intensificar a mística vertical, mas nunca pode ser um fim. O segundo
mandamento, “amarás o teu próximo como a ti mesmo”, nunca pode substituir o
primeiro e maior de todos os mandamentos: “amarás o Senhor, teu Deus, com toda
a tua alma, com toda a tua mente, com todo o teu coração e com todas as tuas
forças”.
Quando
a beneficência se torna um fim em si, em vez de ser um auxílio, transforma-se
num empecilho para a auto-realização espiritual.
O
Universo é o Uno Infinito que transborda para o Verso dos Finitos.
O
homem deve agir assim como o Universo age.
Só
pode receber da Fonte do Uno na razão direta em que dá aos canais do Verso.
Quando cessa a evasão rumo aos homens, cessa a invasão da parte de Deus. Quem
não dá não recebe.
A
medida da resiliência vertical é diretamente proporcional à distribuição
doadora na horizontal.
Onde
cessa a doação para os lados, cessa o recebimento de cima.
Estranhamente,
quase todas as igrejas cristãs ensinam a seus filhos que devem praticar o bem
aqui na Terra, a fim de serem recompensados por Deus no céu, entendendo por
“céu” um determinado lugar, em tempos futuros e regiões distantes. Nesse
sentido, os teólogos educam os seus adeptos para uma espécie de egoísmo, embora
sublimado e póstumo. Por isso, disse o filósofo Bergson que as igrejas detestam
o egoísmo terrestre, mas recomendam o egoísmo celeste.
Felizes
são somente os misericordiosos, quando praticam misericórdia para com seus
semelhantes desinteressadamente, sem esperar retribuição da parte deles.
Felizes
são os misericordiosos que nem de Deus esperam recompensa por sua misericórdia,
embora não possam abolir nem ignorar o fato de que a plenitude flui
infalivelmente para dentro da vacuidade – e essa atitude desinteressada é um
total ego esvaziamento, uma vacuidade de todo e qualquer conteúdo do
ego-humano.
Fazer
bem aos outros envolve um grande perigo para o benfeitor, e muitos sucumbem a
este perigo.
O
fariseu no templo, que dava 10% dos seus haveres para fins religiosos e
beneficentes, voltou para casa “não ajustado”; com todas as suas beneficências
estava “desajustado”, porque fazia o bem não como um transbordamento de ser bom,
mas como um fim em si mesmo, quiçá até para a satisfação de sua vaidade pessoal.
É
tão gostoso para o nosso ego fazer estatísticas das suas filantropias; sentir o
cálido aperto de mão de um beneficiado; ver o sorriso de uma criança ou as
lágrimas de um velhinho em face de um benefício recebido. E o homem se esquece
facilmente de que é “servo inútil”, e vai creando em si um complexo de
utilidade e utilitarismo.
Tanto
o Cristo como Krishna recomendam a seus discípulos que trabalhem intensamente,
mas renunciem a cada momento aos frutos do seu trabalho.
Mas
o nosso ego dificilmente compreende essa linguagem dos Mestres. Quando age,
sucumbe ao falso-agir, visando em primeiro lugar aos frutos do seu trabalho;
outros preferem não-agir, caindo numa total passividade; poucos conseguem as
alturas de um retroagir, trabalhando intensamente em qualquer setor de atividade,
não por amor aos frutos do trabalho, nem à recompensa, mas por amor ao Pai, ao
Cristo interno, à Luz do mundo, ao Reino de Deus dentro do homem, que deve ser
realizado por qualquer atividade do ego.
O
homem é aqui na terra o único ser que se pode fazer melhor do que Deus o faz.
Disse alguém que Deus creou o homem o menos possível para que ele se possa
crear o mais possível.
O
homem é o único ser ao mesmo tempo creatura e creador. O seu livre-arbítrio é
um poder creador ou destruidor; por ele pode o homem fazer-se bom ou mau.
Não
são os atos que o tornam bom ou mau, é a sua atitude interna, produto do seu
livre-arbítrio. Essa atitude é o seu modo de ser, a árvore da atitude, da qual
brotam os frutos dos atos.
Ser
misericordioso é ser-bom, e todo o homem bom faz o bem. Do ser-bom há um
caminho para o fazer-bem, como de cima as águas fluem para baixo. Mas o simples
fazer o bem não é prova de ser-bom; pode o homem fazer o bem por outros
motivos, até por motivos sem ética, como vaidade e ego-complacência, ou, na
linguagem de precisão matemática de Einstein: “Do mundo dos fatos (fazer o bem)
não conduz nenhum caminho para o mundo dos valores (ser bom); porque os valores
vêm de outra região”.
Poderia
o grande matemático ter acrescentado: do mundo dos valores há um caminho para o
mundo dos fatos; da qualidade de ser bom há um caminho para a quantidade de
fazer o bem.
Da
benevolência mística conduz um caminho para a beneficência ética.
Da
fonte da mística derivam todas as águas para os canais da ética.
6.
Bem-aventurados os puros de coração, porque eles verão a Deus; Os pobres pelo
espírito são os possuidores do Reino dos Céus.
Os
puros de coração são os videntes do próprio Deus.
Os
possuidores do Reino dos Céus são os que, interiormente, pela atitude do seu
espírito, se despossuíram dos reinos da terra, e assim abriram o caminho para o
Reino dos Céus.
Os
videntes de Deus são os que se libertaram, não só dos bens materiais, mas
também dos bens mentais e emocionais, de todos os pensamentos e desejos
incompatíveis com o mundo divino.
Quem
é puro de coração é também pobre pelo espírito; quem se libertou de pensamentos
e desejos egoístas, também se liberta de posses egoístas.
Pureza,
na linguagem do Evangelho, é sempre desapego de tudo que não seja compatível
com o mundo do espírito; não se refere apenas a desordens sexuais, que são
apenas um pequeno setor dessa vastíssima impureza do ego.
Nenhum
objeto em si pode escravizar o homem, quando o homem se mantém, mental e
emocionalmente, livre pela atitude interior; o que escraviza não é aposse
interna, e sim o apego interno. Pode um milionário estar livre daquilo que
possui – e pode um pobre mendigo estar livre daquilo que não possui, mas deseja
desordenadamente possuir.
Liberdade
e escravidão não são, em última análise, uma questão de ter ou não ter, mas sim
um problema de não ser possuído por aquilo que se possui, ou mesmo não possui.
A
pobreza pelo espírito supõe necessariamente a pureza do coração. Nenhum ato em
si, nenhum fato, nenhum objeto escraviza o homem, se ele mantém no seu interior
uma atitude de desapego e liberdade.
Não
existem objetos moralmente bons ou maus; todos os objetos são moralmente
neutros, nem bons nem maus. Somente o sujeito é que pode ser bom ou mau, pela
atitude correta ou incorreta do seu livre-arbítrio.
A
morte priva o homem do seu corpo material – mas não o priva necessariamente do
seu materialismo, que é uma atitude mental e emocional.
Possivelmente,
existem mais materialistas no mundo imaterial do que no mundo material. A morte
não nos priva do materialismo, que é uma atitude mental do ego, e pode ser
mantida indefinidamente; priva-nos apenas da matéria. O nosso livre-arbítrio é
responsável pelo nosso materialismo ou não materialismo, seja antes, seja
depois da morte.
Quem,
durante a vida terrestre, em corpo material, não superou o seu materialismo,
não tem a garantia de superá-lo após a morte, no mundo imaterial.
A
morte não nos faz o que a vida não nos fez.
Por
isso, é importantíssimo que o homem se liberte do seu materialismo, aqui e
agora. Se o homem sem corpo material, porém materialista, não se libertar desse
materialismo e só idolatrar a vida da matéria, possivelmente conseguirá voltar à
matéria, mas nem por isto superou o seu materialismo. Pelo contrário, reforçou
o materialismo mental pela rematerialização física. E, se nessa rematerialização
física, não se desmaterializar mentalmente pela espiritualização do seu
livre-arbítrio, poderá repetir quantas vezes quiser esse regresso à matéria sem
progredir
um passo, num eterno círculo vicioso.
“O
homem é aquilo que ele pensa no seu coração” – estas palavras da sagrada
escritura são uma grande verdade. O pensamento do homem é a locomotiva da sua
vida; se os pensamentos seguem por trilhos errados, todos os vagões da vida
humana seguem o mesmo caminho. E isto, sobretudo, quando são pensamentos do
coração, isto é, pensamentos onerados de afetividade. Pensar é luz, querer é
força; pensar afetivamente é uma luz poderosa, é um poder luminoso.
A
pureza do coração visa, de preferência, ao mundo invisível dos pensamentos e
dos afetos, que, mais do que outro fator qualquer, libertam ou escravizam o
homem, consoante a natureza positiva ou negativa dessa atitude mental.
O
que modifica o homem não são as circunstâncias, como o nascer, o viver ou o
morrer; mas sim a substância do seu ser.
Nascemos
mercê de nossos pais.
Vivemos
graças aos alimentos que assimilamos.
Morreremos
em consequência de um acidente, de uma doença ou da velhice.
Nada
disto é obra nossa, da nossa substância, é obra das circunstâncias alheias ao
nosso verdadeiro ser. Nossa é somente a substância do nosso ser, que se
focaliza no livre-arbítrio. O homem é, aqui na Terra, o único ser que se pode
fazer melhor ou pior do que Deus o fez. Disse alguém que Deus creou o homem o
menos possível, para que o homem se possa crear o mais possível. De Deus
recebeu o homem a sua creaturidade creativa e, de acordo com sua creatividade,
o homem se pode tornar melhor ou pior do que Deus o fez.
O
livre-arbítrio é a chave do céu ou do inferno, da felicidade ou da infelicidade,
da vida eterna ou da morte eterna.
Quando
o livre-arbítrio não está em sintonia com o infinito, o homem está, por assim
dizer, num ambiente opaco que não permite ver a Deus; mas, quando o homem
sintoniza a sua consciência individual com a consciência universal, a sua visão
se torna diáfana e transparente; ele vê Deus, não somente em Deus, mas também
em todas as obras de Deus. Para ele, o mundo mineral, vegetal e animal deixou
de ser algo espesso e opaco; todos os invólucros se tornaram como que transparentes
e cristalinos, e lhe permitem enxergar o seu conteúdo, a sua essência interna
através das existências externas. Se Deus não estivesse presente em todas as
coisas – ou melhor, se Deus não fosse a íntima essência de todas as coisas – o
homem só poderia imaginar a presença de Deus, só poderia sugestionar-se
ilusoriamente como se Deus estivesse presente. Mas como a onipresença de Deus é
uma realidade ontológica e metafísica; como não há nada onde Deus não esteja
presente, o homem, em toda a plenitude da verdade, pode ver Deus em tudo, sem
nenhuma necessidade de recorrer a sugestões e camuflagens artificiais. Ver o
Deus onipresente, presente em qualquer creatura – em átomos e astros, em pedras
e plantas, em animais e hominais – isto é iniciar o Reino de Deus aqui na
Terra.
A
pureza do coração produz, pois, uma espécie de clarividência, digamos, uma teo-vidência.
Aliás,
todo progresso do mundo do espírito consiste, sempre e invariavelmente, num
processo de remoção de obstáculos. A realidade espiritual nunca está ausente;
nunca o homem necessita tornar presente o que está ausente. O que o homem
necessita fazer é unicamente ver o que está presente, mas invisível; perceber o
que está imperceptivelmente presente; conscientizar o que está realmente
presente, mas de que o homem era inconsciente.
Quando
a vidraça de uma janela está coberta de fuligem ou outra substância
impenetrável, e o sol meridiano brilha do outro lado e eu estou deste lado da
vidraça, o sol presente em si está ausente de mim. É invariavelmente isto que
acontece ao homem profano quando não percebe Deus, o espírito, a Realidade
eterna, objetivamente presentes, mas subjetivamente ausentes.
Nos
seus Solilóquios, Santo Agostinho pergunta a Deus: “Onde estavas tu quando eu
vivia nos meus pecados? ”. E Deus lhe responde: “Eu estava no meio do teu
coração; estava sempre presente a ti, mas tu estavas ausente de mim”.
Ao
que Agostinho replica: “Como podia eu estar ausente de ti se tu estavas
presente a mim? Presença não supõe dois? ”. E Deus lhe responde: “Eu estava
sempre presente a ti porque sou onipresente a todas as coisas; mas tu fazias de
conta que eu estava ausente, para poderes viver nos teus pecados; e a esta
suposta ausência minha tu chamavas a minha ausência”.
Nenhum
homem pecador gosta de admitir a presença de Deus, assim como as trevas não
gostam da presença da luz. E o homem, para justificar a sua atitude antidivina,
recorre a toda a espécie de camuflagens e escamoteações, para se convencer, ou
pelo menos persuadir, de que Deus não existe.
Todo
ateísmo metafísico é uma consequência do ateísmo moral. Somente o homem que
enxerga alguma vantagem subjetiva na ideia da ausência de Deus está inclinado a
negar a existência objetiva dele. O sistema da nossa filosofia, disse alguém, é
quase sempre o produto do nosso modo de viver. Nenhum homem eticamente bom está
em perigo de professar ateísmo.
Os
puros de coração verão a Deus, porque a pureza interior é uma transparência
espiritual.
Os
romanos chamavam o Universo mundus, que quer dizer, puro. O mundo de Deus é
sempre puro, inconscientemente puro. Somente o mundo do homem pode ser
conscientemente puro ou conscientemente impuro. Quando o homem, pelo uso
correto do seu livre-arbítrio, crea em si um mundo puro, fez ele coincidira sua
pureza consciente com a pureza inconsciente do cosmos – e é então que ele
descobre, pela primeira vez, que o mundo, que é mundus (puro), é também um
kosmos, isto é, um mundo “belo”, como os gregos chamavam o mundo.
Para
o puro de coração, a pureza e a beleza de Deus transparecem através de todos os
mundos de Deus.
A
diafaniza da alma torna diáfanos todos os corpos opacos.
7.
Bem-aventurados os pacificadores, porque eles serão chamados filhos de Deus Paz...
Há
quase dois mil anos que os arautos de Deus cantaram sobre o estábulo de Belém:
“Paz na terra aos homens de boa vontade”.
E
alguns decênios depois, em vésperas de sua morte, disse o Nazareno aos seus
discípulos: “Eu vos dou a paz, eu vos deixo a minha paz; não a dou como o mundo
a dá, para que minha alegria seja em vós, seja perfeita a vossa alegria, e
nunca ninguém tire de vós a vossa alegria".
Depois
da sua ressurreição, Jesus saúda os seus discípulos, invariavelmente, com as
palavras: “Salem alelkum”, a paz seja convosco.
Entretanto,
a história do cristianismo, que nasceu sob o signo da paz, é uma história de
guerras e de armistícios, mas não de paz. O armistício é uma pseudo paz, uma
trégua entre duas guerras.
O
nosso ego humano nada sabe de paz, só conhece guerra – a guerra quente nos
campos de batalha, ou então a guerra fria do armistício, nos parlamentos.
Por
isto dizia o Mestre: “Eu vos dou a paz, mas não a dou como o mundo a dá”, em
forma precária de pseudo paz ou armistício.
Aliás,
quando o ego nasceu, como refere o Gênesis, já nasceu beligerante, lutando para
os dois lados, guerreando o mundo de Deus e o Deus do mundo: “Porei inimizade
entre ti e a mulher, entre teu descendente e o descendente dela (o Cristo); ele
te esmagará a cabeça e tu armarás cilada ao calcanhar dele! ”.
Esta
é a guerra do anticristo contra o Eu crístico.
E
também entrou em guerra contra o mundo natural: “Comerás o teu pão no suor do
teu rosto... num mundo coberto de espinhos e abrolhos”.
E
que fez o ego da nossa personalidade até hoje senão combater Deus e a natureza?
Nunca a humanidade gozou de um único ano de paz verdadeira.
Bem
dizia a Bhagavad Gita: “O ego é o pior inimigo do Eu, mas o Eu é o melhor amigo
do ego”.
Para
que haja paz entre a personalidade humana do ego e a individualidade crística
do Eu, deve o homem elevar-se à altura do Cristo, porque este não pode descer
às baixadas do ego.
A
paz social, nacional e internacional depende da paz individual. Enquanto o homem
não fizer as pazes consigo mesmo, não pode ter paz com os outros.
Todo
e qualquer tratado de paz no mundo político-social acabará infalivelmente numa
guerra quente, nos campos de batalha, ou então numa guerra fria nos parlamentos.
As leis cósmicas são de uma lógica retilínea inexorável: nada há no mundo
social que antes não tenha havido no mundo individual.
Sempre
de novo, através de séculos e milênios, o homem tenta subornar as leis cósmicas,
que são a ordem de Deus: sempre de novo tenta fazer o segundo antes do primeiro
– e o círculo vicioso continua sem fim.
O
homem tem de pacificar-se a si mesmo, antes de poder pacificar os outros.
“Bem-aventurados
os pacificadores...”
A
tradução habitual diz “pacíficos”. Embora esta palavra seja certa em si, hoje
em dia é ela mal compreendida. Pacífico é, para o homem comum, um homem calmo,
passivo, mais ou menos inerte. Mas o termo latino é derivado de pacemfacere,
fazer a paz, bem como a expressão grega eirenepoiuntes, derivada deeirene (paz)
e poieo (fazer). O sentido desta palavra é, sobretudo, ativo e dinâmico, e não
estaticamente passivo. Feliz é o homem que faz ou realiza a paz, e não apenas
vive ou vegeta pacificamente.
A
paz não representa um estado de passividade e inércia, mas é uma conquista, uma
vitória, altamente dinâmica. Pode o homem viver numa espécie de paz comparável
à dos cemitérios, onde ninguém briga com os outros, mas todos estão em paz por
falta de vida e vitalidade. Mas não é esta a paz desejável; a paz verdadeira é
uma bonança que segue a uma grande tempestade, é a tranquilidade final da
sapiência depois de uma longa tormenta de dúvidas e incertezas.
Durante
a última guerra mundial apareceu numa revista uma ilustração satírica: um
enorme campo cheio de cruzes, uma ao lado da outra, um cemitério onde tinham
sido sepultados milhares de soldados mortos na guerra – alemães, franceses,
russos, ingleses, italianos etc., e a legenda dizia: “finalmente a paz mundial”.
Esses
beligerantes tinham conseguido a paz graças à perda da vida. A verdadeira paz,
porém, não é uma paz por ausência de vida, mas sim uma paz pela presença e
plenitude da vida, por uma vivência tão plena e exuberante que todas as
desarmonias culminaram em perfeita harmonia.
Por
isso dizia o Mestre: “Eu vim para que os homens tenham a vida, e a tenham em
maior abundância”.
O
homem-ego não tem paz, porque não está na plenitude da vida, vive apenas uma
semivida, quiçá uma pseudo vida, e por isto tem de brigar com os outros, porque
está em discórdia consigo mesmo.
A
solução não está numa diminuição de vida, mas sim numa intensificação devida.
Se todos os homens tivessem a plenitude da vida, a consciência do seu Eu divino,
haveria paz individual e paz universal.
A
verdadeira paz é a coisa mais dinâmica e realizadora do mundo; o homem auto
pacificador e auto pacificado é o campeão das grandes realizações; ele sabe que
paz é um poder silencioso, uma potência irresistível, que faz lembrar o curso
silencioso dos astros pelas vias inexploradas do cosmos, ou a irresistível dinâmica
da natureza, que tudo vence sem o menor ruído.
A
verdadeira paz tem afinidade com o mundo da metafísica, e não da física, como
mundo da invisível realidade, e não das facticidades visíveis.
A
principal tarefa do homem, aqui na Terra, é estabelecer o grande tratado de paz
dentro de si mesmo.
Toda
a falta de paz que desgraça a pobre humanidade provém unicamente da falta de
equilíbrio e harmonia entre o ego da humana personalidade e o Eu divino da sua
alma. Aqui no Ocidente, é regra geral que o ego humano – material, mental e
emocional – se preocupe com a vida humana sem se importar com o seu destino
divino. “Que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, se sofrer prejuízo em
sua própria alma? ” – Estas palavras do Cristo enunciam, em forma lapidar, toda
a tragédia da vida humana: o homem corre freneticamente atrás dos bens deste
mundo, sem se importar com o bem-estar de sua alma. Mas essa diversidade
dispersiva, sem a devida unidade concentrativa, tende a acabar fatalmente num
caos centrífugo, que, na medicina, chama-se “frustração”, que quer dizer
despedaçamento ou esfacelamento. É precisamente este o programado anti-Cristo,
no episódio da tentação: “Eu te darei todos os reinos deste mundo e sua glória
– prostra-te em terra e adora-me”.
O
homem ocidental é um homem visceralmente centrífugo, dispersivo, fragmentado,
frustrado, e por isto não tem paz, que é o apanágio da harmonia, ou seja, da
unidade na diversidade.
Alguns
orientais caíram no extremo oposto, abolindo a diversidade a favor da unidade,
substituindo a atividade do ego pela passividade do Eu; em vez de realizarem
uma mística sadia, sucumbiram a um misticismo doentio.
O
homem integral, porém, não é um profano dispersivo, nem apenas um místico concentrativo.
O homem cósmico estabeleceu dentro de si o grande tratado de paz, a harmonia, o
equilíbrio entre o seu centro divino e as suas periferias humanas. O homem
integral é cósmico ou univérsico, porque é governado pelas mesmas leis que
regem o mundo sideral, cuja atração centrípeta é perfeitamente equilibrada pela
repulsão centrífuga.
A
harmonia cósmica do homem, que se chama paz, é, pois, o resultado da realização
do homem bipolar.
O
homem que se pacificou a si mesmo por meio dessa lei de equilíbrio irradia paz
e harmonia ao redor de si, na vida doméstica, social, nacional e internacional.
O
auto pacificador é, mesmo inconscientemente, um alo pacificador. Não há
necessidade que fale muito em paz, nem que faça congressos ou comícios pró-paz
– basta que ele mesmo seja um centro e uma fonte da verdadeira paz – e o mundo
será pacificado por esse centro de paz dinâmica.
Paz,
já o dissemos, não quer dizer passividade, inércia, inatividade. A verdadeira
paz é essencialmente dinâmica, ativa, realizadora, transbordando para todos os
lados, assim como o globo solar irradia luz, calor, vida e beleza por todas as
latitudes e longitudes do Universo.
Os
verdadeiros pacificados e pacificadores, diz o Mestre, são chamados “filhos de
Deus”. Sendo Deus a infinita e eterna paz do Universo, que outra coisa poderiam
os filhos de Deus ser, senão esta mesma paz?
Basta
que exista algures um centro de paz dinâmica para que o mundo tenha paz.
Mas
esse centro de paz dinâmica supõe autoconhecimento e auto-realização.
Enquanto
o homem não se conhece a si mesmo, confundindo o seu ego-humano com o seu Eu
divino, não há conhecimento da verdade sobre si mesmo, e por isto não há
libertação pela verdade. O primeiro passo para a realização do grande tratado
de paz é a eterna pergunta: “Que sou eu? ”.
A
resposta foi dada por todos os grandes Mestres da humanidade, sobretudo pelo
Cristo, quando identificou o centro do homem com o Pai, com a Luz, com o Reino
de Deus, com o Tesouro Oculto, com a Pérola Preciosa, com uma Fonte de águas
vivas.
Quando
o homem realiza em si esse Reino de Deus, verificará, talvez com grande
surpresa, que não perdeu as coisas do seu ego humano, mas as possui mais firme
e autenticamente. Quem possui o mais possui o menos – mas quem procura possuir
este à custa daquele perde tanto o menos como o mais. Quem quer salvar o seu
ego humano, sacrificando o Eu divino, perderá tudo; mas quem está disposto a
renunciar ao ego humano a fim de possuir o Eu divino, verificará que, além de
salvar este, salvou também aquele, uma vez que a redenção do TODO implica na
redenção da parte. “Buscai, em primeiro lugar, o Reino de Deus e sua harmonia –
e todas as outras coisas vos serão dadas de acréscimo”.
Em
véspera de sua morte disse o Mestre aos seus discípulos: “Eu vos dou a paz, mas
não a dou como o mundo a dá”. Promete-lhes uma paz com alegria. Uma paz passiva
seria uma paz com tristeza, uma vez que a atividade é alegria, e a passividade
é tristeza. Esta paz que o Mestre tinha em si, mesmo em face da morte, é a paz
que ele quer ver em seus discípulos, não pode ser destruída nem pela
perspectiva da morte, nem pela traição, negação e fuga de seus discípulos.
Esta
paz, que o mundo não pode dar e que o mundo não pode tirar, é totalmente
inatingível pelas circunstâncias externas. Podem, sim, as circunstâncias
adversas causar sofrimento e tristezas, como aconteceu até ao Nazareno, mas não
podem destruir a paz e felicidade da alma. As tempestades revolvem a superfície
do mar, mas na sua profundeza continua absoluta quietação e tranquilidade. A
soberania da substância divina do homem não é atingida pelas tiranias das
circunstâncias humanas. A paz de dentro persiste no meio de todas as guerras de
fora. É a grande declaração da independência espiritual no meio de todas as
escravidões materiais e sociais.
A
verdadeira paz dos filhos de Deus é silenciosamente dinâmica, age como senão
agisse, realiza grandes coisas sem arrombar portas e sem esmagar ninguém; não
atua com o estampido da explosão de uma bomba, mas com a taciturna potência com
que o sol e as estrelas traçam as suas silenciosas órbitas pelo espaço
infinito. A paz é silenciosamente poderosa, anonimamente Irresistível, move os
maiores pesos com leveza, faz com facilidade as coisas mais difíceis, abrange
com suavidade todo o Universo de uma à outra extremidade, “não se ouve o seu
clamor nas ruas, não quebra a cana fendida, nem apaga a mecha ainda fumegante”.
O
homem que encontrou a paz dentro de si mesmo não é apressado, nervoso, agitado,
porque em qualquer trecho da sua jornada está sempre no termo e na meta de
todas as suas viagens. O seu centro, como o de Deus, está em toda parte, e a
sua querência está em sua própria consciência; a meta de todos os seus métodos
coincide com o Infinito, como a geometria diz das linhas paralelas.
A
paz do homem auto pacificado pela verdade sobre si mesmo exala uma indefinível
serenidade. Todos se sentem bem e felizes na presença desse homem que
conquistou a paz depois de grandes lutas consigo mesmo. A sua serenidade
dinâmica envolve e permeia todo o ambiente, como um fluido magnético, como uma
aura suavemente poderosa, como um banho de luz e força. E todas as almas
receptivas se sentem tão bem nesse Tabor de transfiguração que estão com vontade
de dizer: Mestre, que bom que é estarmos aqui... vamos aqui armar as nossas
tendas, porque aqui moram os filhos de Deus e aqui impera o Reino dos Céus...
Um
único homem realmente pacificador e pacificado dentro de si mesmo vale mais
para a paz universal do mundo do que todos os pretensos fazedores de paz que
não realizaram a paz dentro de si mesmos.
“Bem-aventurados
os pacificadores, porque eles serão chamados filhos de Deus. ”
8.
Bem-aventurados os que sofrem perseguição por causa da justiça, porque deles é
o Reino dos Céus.
O
Mestre amplifica esta bem-aventurança, acrescentando: “Bem-aventurados sois
vós, quando vos injuriarem e perseguirem e caluniosamente disserem de vós todo
mal, por minha causa; alegrai-vos e exultai, porque grande é a vossa recompensa
nos Céus”.
Quem
lê esta bem-aventurança, e sobretudo o seu acréscimo do ponto de vista do ego
profano, não pode furtar-se à impressão ingrata de que a mensagem do Cristo é
visceralmente sádica e escapista. Imagine-se: felizes são os que sofrem perseguição
e difamação de toda espécie porque deles é o Reino dos Céus, aqui e agora, e
não apenas no futuro.
Sendo
que o Reino dos Céus está dentro do homem, no seu Eu divino consciente e
realizado, parece que a auto-realização anda necessariamente incompatível com a
realização do ego. Parece que o homem não pode ser espiritualmente bom sem ser
ao mesmo tempo mártir e vítima da sua própria espiritualidade. E, para
justificar este conceito, vai através de toda a literatura de quase dois mil
anos a ideia de que Jesus foi o rei dos sofredores, o homem das dores, o mártir
por excelência. Fomos educados na ideia de que não se pode ser feliz no Aquém
sem
ser infeliz no Além, ou vice-versa; que os que são infelizes na Terra serão
necessariamente felizes no Céu.
É
verdade que Jesus foi o rei dos sofredores?
Os
seus sofrimentos, em 33 anos de existência terrestre, não abrangem quinze horas,
desde a quinta-feira à noite, até a sexta-feira pelas três horas da tarde.
Os
seus sofrimentos físicos talvez não cheguem a três horas, desde o meio-dia até
às três horas da sexta-feira, quando expirou. E todos estes sofrimentos foram
livremente aceitos, antecipadamente: “Não devia então o Cristo sofrer tudo isto
para assim entrar em sua glória? ”.
Será
que já existiu sobre a face da terra um homem que vivesse 33 anos e sofresse
tão pouco?
Mas...
os sofrimentos morais e psíquicos de Jesus? A incompreensão do povo e dos seus
próprios discípulos? A traição de Judas, a negação de Pedro e o abandono dos
seus discípulos?
E
não sabia o Cristo de tudo isto na encarnação? Não sabia ele que a encarnação
era um mergulho nas trevas espessas do mundo material e hominal?
Quando
se sofre livremente, por amor a um grande ideal, o sofrimento perde o seu mais
profundo amargor; realmente amargo é somente o sofrimento quando sofrido
estupidamente, à toa, sem se saber por que, sem nenhuma finalidade superior.
Todo sofrimento, físico ou moral, realizado à luz de uma grande missão, de um
ideal sublime, é uma doce amargura, é um “jugo suave” e um “peso leve”.
Foi
nesse sentido que Jesus proclamou felizes os que sofrem perseguição por causa
da verdade, precisamente porque deles é Reino dos Céus que está no interior de
todo homem. Não diz “será”, mas “é” o Reino dos Céus. O Reino dos Céus não jaz
em nenhuma região distante e futura; o Reino dos Céus não é objeto de uma
aquisição após a morte. O Reino dos Céus é a íntima natureza de todo homem. A
presença deste Reino é um fato, uma realidade no interior de cada homem. A
diferença não está em que o Reino de Deus esteja presente em alguns, e ausente
de outros – a diferença está unicamente no fato de terem alguns a consciência
da presença desse Reino, e outros viverem na inconsciência dessa presença. Para
alguns homens o Reino de Deus é ainda “uma luz debaixo do alqueire”, para
outros já é “uma luz no alto do candelabro “da sua consciência espiritual.
Os
que ainda não conscientizaram a presença da luz, do Reino dentro de si, sofrem
como se essa luz, esse Reino, estivessem ausentes, como se tudo fosse treva
espessa.
A
conscientização da presença da luz do Reino depende da reta ou falsa função do
livre-arbítrio de cada um.
É
experiência geral que o ego, quando está repleto de gozos e satisfações,
dificilmente se interessa pelas coisas do seu Eu espiritual. O desejo de algo
espiritual só desperta no homem quando lhe faltam os objetos do ego. O
homem-ego só conhece os objetivos da vida, mas ignora a sua razão de ser. Enquanto
os objetivos da vida estão presentes em abundância, o homem profano procura a
sua satisfação e felicidade nesses objetos, e dificilmente descobre a sua razão
de ser, que tem de ver com o seu sujeito profundo, com o seu Eu interno...
A
parábola dos convidados à festa nupcial, do Evangelho, é uma ilustração típica
dessa atitude: os homens profanos, convidados em primeiro lugar, não
compareceram à festa nupcial do Reino de Deus, porque um comprou um sítio e
tinha de vê-lo e cultivá-lo; outro comprou cinco juntas de bois e tinha de
experimentá-las; o terceiro havia casado e tinha festa e baile em casa. Todos eles,
de tão satisfeitos com os objetos da vida, não sentiam a fome de uma razão de
ser superior. Os seus teres e fazeres eclipsaram totalmente o seu ser. Não
atingiram a plenitude espiritual por causa das suas pseudo plenitudes materiais,
que eram as suas grandes vacuidades.
Então,
convidou o senhor à festa nupcial os pobres, os aleijados, os surdos, todos os
que não estavam saturados com os objetivos da vida, e estes compreenderam a
razão de ser da sua existência superior, e compareceram à solenidade do Reino
de Deus, pelo autoconhecimento e pela auto-realização.
A
transição da ego-consciência para a Cristo-consciência implica, quase sempre,
em sofrimento, em “caminho estreito e porta apertada”; mas, uma vez conseguida
a Cristo-consciência, a vida do homem espiritual pode tornar-se um “jugo suave”
e um “peso leve”.
Para
os realizados, a espiritualidade é um sofrimento.
Para
os realizados, é um gozo.
A
infeliz satisfação do profano deve passar pela feliz insatisfação do místico –
afim de poder, um dia, culminar na feliz satisfação do homem cósmico.
Todos
os Mestres da vida espiritual falam a homens profanos, espiritualmente
analfabetos, como é o grosso da humanidade. E por isto insistem na necessidade
da renúncia, do sacrifício, da abnegação. Insistem na transição do homem
profano para o homem místico e pouco se referem ao homem cósmico.
A
pedagogia tem de preceder à metafísica. Se os Mestres mostrassem a
compatibilidade da felicidade espiritual com os gozos externos, que
aconteceria?
A
imensa maioria dos profanos se julgaria pertencente à elite dos homens cósmicos;
substituiriam a libertação real por uma pseudolibertação ilusória, gozando os
prazeres da vida na ilusão de serem homens cósmicos, de terem já superado o
doloroso período ascético-místico.
O
profano, sobretudo quando ignorante, e ainda por cima arrogante, facilmente se
convence de que o seu primitivismo espiritual é perfeição e que renúncia,
sacrifício, ascese são estágios superados. O mais difícil dos doentes é aquele
que considera como saúde a sua própria enfermidade. Os grandes Mestres sabiam
disto, e por isto insistiam grandemente na renúncia e no sacrifício: “Quem não
renunciar a tudo o que tem não pode ser meu discípulo”. Só depois de renunciar
corajosamente a tudo é que o homem pode possuir algo sem perigo –pode mesmo
possuir tudo sem ser possuído por nada. Mas estes poucos – onde estão?
Albert
Schweitzer escreve: “O cristianismo é uma afirmação do mundo que passou pela
negação do mundo”.
E
Mahatma Gandhi diz: “Homem, renuncia a tudo, entrega tudo a Deus – e depois
recebe-o de volta, purificado, das mãos de Deus”.
O
homem-ego é incrivelmente insincero consigo mesmo; a expressão bíblica omnis
homo mendax (todo homem é mentiroso) é pura verdade: o homem tema inextirpável
mania de se iludir a si mesmo, de se julgar auto realizado, quando nem começou
ainda o abc da sua iniciação. Em vez de soletrar o abc e a tabuada na escola
primária, procura matricular-se na universidade do espírito.
Em
face desse pendor de insinceridade, de mendacidade, de auto decepção, devem os
grandes Mestres falar como falam, chamar felizes os que sofrem perseguição e
difamação por causa da verdade. Só assim podem eles levar os analfabetos do
espírito a aprenderem os rudimentos da espiritualidade.
Ninguém
pode passar do primeiro ao terceiro sem passar pelo segundo.
Ninguém
pode chegar ao mundo da consciência Cristo-cósmica sem ter passado pelo mundo
da mística ascética.
Segundo
todos os Mestres, o caminho ascensional passa pelos estágios da purificação, da
iluminação e da união. Se o profano impuro não se purificar das suas impurezas,
não pode ser iluminado pela mística, nem unido pela consciência cósmica. É esta
a matemática inexorável do Reino de Deus. É esta a lógica retilínea da
libertação pela verdade.
É
imensa a legião dos profanos que se julgam cósmicos – porque não passaram ainda
pelo noviciado da mística.
Quanto
mais severamente o homem passar por esse noviciado místico-ascético, tanto mais
esperança tem ele de entrar um dia no mundo glorioso da consciência cósmica do
Cristo.
“Bem-aventurados
os que sofrem perseguição pela justiça, porque deles é o Reino dos Céus. ”
EPÍLOGO
A
Mística das Beatitudes resume, em duas palavras, o que o Mestre disse depois de
proferir essas oito proclamações, que representam a plataforma do Reino de Deus
e o autorretrato de sua própria alma: “Vos sois o sal da terra. ”
“Vós
sois a luz do mundo. ”
Estas
duas alegorias formam como que o alicerce e ao mesmo tempo a pedra fecho do
majestoso santuário sustentado pelas oito colinas das bem-aventuranças. Esse
octógono tem o seu fundamento nas alturas do céu, como acidade santa de Deus,
que, segundo o Apocalipse, desce de cima para baixo; tem as raízes no céu, e se
ramifica, floresce e frutifica na terra.
Quando
algum homem já é sal e luz, realiza com espontânea facilidade o conteúdo das
Beatitudes, que aos profanos e inexperientes pode parecer absurdo ou extremamente
difícil.
O
sal dá sabor a todos os alimentos – assim como a experiência espiritual é um
misterioso condimento que permeia de sapiência todas as insipiências, e dá sapidez
(propriedade dos corpos que provocam uma excitação gustativa e são por isso
dotados de um sabor) divina a qualquer insipidez da vida
humana. O sal, se fosse tomado em estado puro, não seria agradável, mas, quando
usado discretamente como aditamento, dá sabor a tudo. É a espiritualidade
sensata e dosada que transforma todas as materialidades e preserva-as, ao mesmo
tempo, da corrupção.
A
luz, essa realidade mais sutil e invisível do Universo, dá vida, alegria e beleza
a todas as creaturas da Terra. Sem ela, o Universo não seria um cosmos, mas um
caos de morte e treva.
Estas
duas alegorias, sal e luz, sabor e vida, são a quintessência da filosofia e
poesia do Nazareno. Nelas se aliam a metafísica da verdade e a mística da
beleza. Bem se poderiam aplicar a estas alegorias as palavras de Mahatma Gandhi.
“A verdade é dura como o diamante – e delicada como flor de pessegueiro. ”
Por
esta razão, acrescentamos às Beatitudes este remate metafísico-místico, coroa e
alicerce do santuário da sabedoria cósmica do Nazareno.
“Vós
sois o sal da terra “O sal é, por via de regra, identificado com o nosso sal de
cozinha, cloreto de sódio, que usamos para dois fins: para dar sabor aos
alimentos e para preservá-los da putrefação. Neste sentido popular, a ideia do
sal tem ótima aplicação ao mundo espiritual.
O
discípulo do Cristo tem de fazer, na zona espiritual, o que o sal faz no mundo
material: dar sabor à vida – e preservá-la da putrefação.
Sem
o condimento do sal, os alimentos são insípidos, ou insulsos – e não é isto
mesmo que acontece no mundo superior? O profano, que nada sabe do condimento da
espiritualidade, leva uma vida insípida; mas, como ele ignora a sua própria
insipidez, nem jamais saboreou alimento espiritual, tolera os seus alimentos
cotidianos, insulsos. E quando a insipidez se lhe torna insuportável, procura
esquecê-la por algum tempo, narcotizando-se com toda a espécie de anestésicos e
analgésicos, como são geralmente dinheiro, sexo e divertimentos.
Praticamente,
nenhum profano sabe de outra coisa que não se possa reduzir de algum modo a
essa trindade egoica. Pratica esses escapismos temporários coma intenção de
fugir da insipidez da vida; mas, depois de voltar a si, enfrenta novamente, com
redobrada violência, a mesma insipidez. Na juventude é sobretudo o escapismo
para a zona do sexo, da luxúria em todas as suas variantes. Para isto, não
necessita ele de muito dinheiro; basta ter um corpo são e normal, e o caminho
para essa espécie de narcótico está aberto.
Na
idade madura é sobretudo o dinheiro, em todas as suas formas, que serve para
derivativo: indústria, comércio, negócios, especulações cambiais etc.
E
em todas as idades servem os divertimentos e as diversões, esportes, viagens,
que hoje em dia têm aspectos tão variados que parecem até satisfazer os mais
avançados anseios do homem profano.
Alguns
sabem sublimar o seu alimento por meio de condimentos mais sutis, como sejam a
ciência e a arte. Sobretudo a arte serve, não raro, de traço de união entre a
física e a metafísica.
Para
o homem de sorte, esses derivativos substituem, muitas vezes, a ignota zona da
metafísica e da mística. Mas, quando os revezes da fortuna e o estado de saúde
privam o homem de sentir plena satisfação nesses ídolos do ego –então se acha
ele numa dolorosa encruzilhada da sua existência. O sofrimento pode ser uma
espada de dois gumes: pode ser o início da sublimação da vida humana – e pode
ser também o início do seu total desespero. Se o homem, durante meio século de
vida totalmente profana, vivida na dimensão do dinheiro, do sexo e dos
divertimentos, se vir subitamente privado desses seus ídolos tradicionais,
dificilmente enveredará, de improviso, pelo caminho da sublimação espiritual;
acabará, provavelmente, no desânimo, no desespero, possivelmente no manicômio,
no hospital, quiçá no suicídio – em todo caso num inferno em plena vida.
É
sumamente perigoso, mesmo em estado de plena saúde e prosperidade, firmar-se
com ambos os pés unicamente na base da física, sem nenhum apoio na metafísica.
Somente
homens de natureza medíocre encontram plena satisfação, como eles pensam, na
zona da física, sem anseios metafísicos.
Caracteres
dotados de maior voltagem vital fazem a experiência seguinte: quanto mais
favoráveis são as circunstâncias externas da sua vida, maior e mais intensa é a
nostalgia da substância interna. Não é necessário nenhum terremoto de fora para
essas pessoas sentirem a sua inquietude metafísica; parece até que a própria
plenitude física lhes faz sentir mais conscientemente a sua vacuidade
metafísica. A harmonia da sua vida material, emocional e social lhes faz sentir
ainda mais desarmonia do seu mundo espiritual.
Neste
ambiente, deve Santo Agostinho ter escrito as tão citadas palavras:
“Fizeste-nos para ti, Senhor, e inquieto está o nosso coração até que encontre
quietação em ti”.
Poucos
homens devem ter levado uma vida externa tão feliz como esse genial africano;
mais de meio século de prosperidade, de saúde, de inteligência brilhante, de
glórias, de admiração e esse homem, nadando num oceano de prosperidade humana,
anseia por uma felicidade longínqua, desconhecida, porém intensamente farejada
– e sofrida.
Outro
homem, Léon Tolstói, foi outro felizardo profundamente insatisfeito: fazendeiro
riquíssimo, dono de uma fortuna imensa, pai de nove filhos, feliz como esposo e
pai, como escritor, poeta e artista, alvo de imensa admiração do mundo–
sente-se ele tão infeliz na sua felicidade, que resolve fugir da maldição da sua
prosperidade, como ele mesmo diz. Desaparece..., mas a polícia o reconduz para
casa e o obriga a viver, por algum tempo, no meio da família. Tolstói, porém,
não tolera a sua chamada felicidade; numa fria noite de inverno, quase aos
oitenta anos de vida, foge pela segunda vez, desta vez em companhia da filha
mais nova Alexandra, que parece ter participado da nostalgia mística dopai.
Apenas com a roupa do corpo, adoece no trem e morre numa pequena estação
ferroviária em plena mata; antes de dar o último suspiro, transmite à filha a
sua última vontade, proibindo qualquer discurso, música ou pompa ao pé do seu
túmulo.
Nem
sempre dinheiro, sexo e divertimentos roubam ao homem a visão de uma felicidade
transcendente; desse roubo só são vítimas os caracteres medíocres, os
homens-minhocas, satisfeitos com os seus húmus no fundo da terra, e incapazes
de invejarem os voos das águias nas luminosas alturas do céu.
Quando
o Mestre diz aos seus discípulos que eles são o sal da terra, faz alusão a esse
condimento de espiritualidade, destinado a tornar saborosas todas as
materialidades da vida terrestre. Não lhes recomenda comer sal puro, mas sim
condimentar todos os alimentos da vida física com o sabor da metafísica e da
mística, que ele designa geralmente com a palavra o “Reino de Deus”.
Mas
o Nazareno faz aos seus discípulos uma advertência muito séria: se o próprio
sal da espiritualidade perder a sua salinidade, o seu poder de salgar, fica
inútil e para nada mais serve senão para ser lançado fora e pisado aos pés dos
transeuntes.
Quando
o homem perde a consciência da sua espiritualidade, a consciência do seu Eu
divino, como poderia ele ainda espiritualizar a sua vida material? Como poderia
o Eu divino condimentar as profanidades do ego humano, se ele perdera
consciência de que “eu e o Pai somos um”?
E
como conseguirá o homem preservar esta consciência se, no meio deste dilúvio
diário de profanidades e profanações, não se recolher muitas vezes à sacralidade
da interiorização, da sintonização crística?
Esse
homem perdeu a sua razão de ser, abriu falência. É lançado fora, mesmo na vida
presente, e pisado aos pés. Pode ser que os seus companheiros de profanidade o
estimem e respeitem aparentemente; mas o que eles respeitam é antes o que esse
homem tem, não o que ele é; respeitam algo que ele possui, dinheiro, sua
posição social, seu prestígio – não respeitam o alguém que ele devia ser, mas
não é. Em última análise só se pode respeitar um valor e não uma
coisa.
Mas o homem que se desvaloriza e coisifica deixou de ser alguém e se tornou
apenas algo.
O
sal, além de dar sabor aos alimentos, também os preserva da putrefação. Masquem
é putrefato não pode salvar outro da putrefação, da corrupção.
Hoje
em dia, quem não anda na moda não é moderno e como o homem profano, acima de
tudo, quer ser moderno, tem de acompanhar a moda, por mais putrefata que ela
seja. A moda, porém, é quase sempre não ter modos, ser escravo da opinião
pública, não se guiar pela consciência própria, mas obedecera a convenções
alheias. Não ser moderno exige grande firmeza de caráter e independência de
espírito.
Hoje
em dia, é quase impossível ter consciência própria. A publicidade social e
comercial é tão requintadamente sutil e contagiante que nenhum homem medíocre
resiste ao impacto da propaganda; somente uns poucos monólitos conseguem
erguer-se, incólumes, do meio do vasto areal da escravidão universal da
sociedade.
Para
não ser moderno é necessário ser herói.
Para
ser alguém é preciso ter a coragem de renunciar a algo – e muitas vezes esse
algo é quase tudo o que a sociedade preza.
Para
poder funcionar como o sal da sociedade, para lhe dar sabor e preservá-la da
corrupção, é necessário, não raro, parecer antissocial, não ser um passivo
refletor da opinião pública, mas sim um ativo diretor dela.
O
homem-sal tem de ter a coragem de ser antipático à sociedade – por amor à
sociedade, tem de contrariá-la, para salvá-la.
O
homem espiritual se guia por princípios – o homem material só é dominado por
fins.
O
homem fraco é derrotado por fins egoísticos – o homem forte é orientado por
princípios espirituais.
Por
isto, o homem de princípios não terá fim, é eterno, porque está sempre no
princípio da sua vida e carreira.
Os
princípios preservam o homem, como o sal.
Os
fins corrompem o homem, como se corrompem os alimentos sem sal.
“Vós
sois o sal da terra”...
“Vós
sois a luz do mundo”
O
que a ciência analítica de Einstein provou no século XX, isto já sabia a
sapiência intuitiva de Moisés quinze séculos antes de Cristo. Logo no princípio
do Gênesis, diz Moisés que, no primeiro yom (período), Deus creou a luz, não a
luz do sol e das estrelas, que, segundo ele, apareceram só no quarto período.
Moisés
fala da luz cósmica, invisível, da qual nasceram as luzes focalizadas no sol,
nas estrelas e nas outras unidades siderais.
Seja
nas páginas do Gênesis, escritas cerca de 3.500 anos antes do nosso tempo, seja
em pleno século XX, na era atômica, os sapientes e os cientes afirmam que a luz
é o alfa e ômega de todas as coisas finitas – o alfa, porque tudo é lucigênito,
o ômega, porque tudo é lucificável.
O
Cristo cósmico afirma que ele é a luz do cosmos, não no sentido físico, mas na
visão metafísica; “antes que o mundo existisse, eu sou”, diz ele na sua oração
de despedida, na santa ceia.
E
afirma que todo homem é essencialmente essa mesma luz cósmica, embora em nós
essa luz esteja ainda oculta debaixo do alqueire da nossa opaca egoidade, e
nele já estava manifesta, brilhando no alto do candelabro da sua consciência
espiritual. Quando ele diz: “Eu e o Pai somos um, o Pai está em mim”, logo
acrescenta: “O Pai também está em vós”; e quando afirma: “Eu sou a luz do
mundo”, logo completa: “vós também sois a luz do mundo”.
Certos
teólogos, ainda emaranhados na ilusão do seu esoterismo, não admitem que nós
sejamos da mesma substância essencial que o Cristo, da substância divina do Pai;
querem que o Cristo seja “gerado”, nascido da consubstancialidade homogênea da
Divindade, e que nós sejamos “feitos” da diversidade heterogênea, não nascidos
de Deus, mas manufaturados por ele.
Mas
essa teologia contradiz frontalmente o Evangelho e as palavras explícitas do
Cristo. Contradiz até as palavras que Paulo de Tarso disse aos filósofos
atenienses, nas alturas do Areópago: “Nós somos de estirpe divina”.
Não
há nenhum panteísmo blasfemo nessa concepção da substancialidade crística de
todos os homens. A homogeneidade consubstancial não se refere à nossa
existência finita, mas tão-somente à nossa essência infinita. Em nossa finitude
hominal todos nós somos infinitamente inferiores à Divindade e, quando caímos
em erros e pecados, não é Deus que erra ou peca, é apenas o nosso pobre ego
humano, que não é igual a Deus.
A
nossa tarefa, aqui na Terra, consiste precisamente em fazer do nosso ego humano
existencial uma perfeita imagem e semelhança do nosso Eu divino essencial.
Assim como o Eu divino do Cristo faz do ego humano do seu Jesus um perfeito
veículo do seu Cristo cósmico, assim deve todo Eu crístico do homem transformar
o seu ego humano num perfeito veículo e agente dócil do seu Verbo, que se faz
carne em cada um de nós.
“Toda
alma humana – escreve Tertuliano no segundo século – é crística por sua própria
natureza. ”
A
nossa missão aqui na terra é revelar através do prisma da nossa humanidade
cristicidade da luz divina.
A
nossa personalidade humana pode servir de impedimento opaco e opor-se à
penetração da luz divina – mas pode também servir de prisma triangular para
difundir beneficamente a luz incolor do Cristo na maravilhosa faixa multicor da
nossa humanidade. O nosso prisma triangular – alma, mente e corpo – pode fazer
da luz incolor do Verbo uma epopeia de belezas, em vez de funcionar como
interceptor opaco da luz divina.
Difusor
transparente de belezas multicores – e não interceptor opaco da luz divina.
*
* *
Onde
não há luz não há vida, beleza, alegria.
Se
Deus, segundo Aristóteles, é actus purus, pura atividade ou vibração espiritual,
então a creatura deve ser tanto mais divina quanto mais se aproximar do actus
purus.
O
profano entende por atividade “movimento”, correria, agitação. Na verdade,
porém, a atividade é precisamente o contrário do movimento. Uma roda em
movimento giratório, que recebe sua força do eixo, tem toda a força no centro,
ao passo que tanto menor é a força quanto mais distante do eixo central e quanto
mais próximo da periferia. Força e movimento estão em sentido oposto. Força é
atividade – movimento é passividade. A força dá, o movimento recebe. Luz é o
máximo de vibração, atividade.
Quando
o homem atinge o zênite da sua força e atividade, torna-se cada vez mais
tranquilo, mais quieto, mais centralizado, e por isto mais eficiente. Eficiência
é força, e não movimento; 10% de força vale mais que 90% de movimento. A luz é
a maior força do Universo, embora pareça ser a coisa mais fraca. A essência da
dinamite, das águas, da eletricidade, do vento, é a luz. Nestes últimos anos a
nossa ciência e técnica descobriram que o último reduto da força é o átomo, ou melhor,
o núcleo atômico, que se chama próton. Próton é a palavra grega para “primeiro”;
a primeira e a maior das forças é o próton, que é a alma invisível do átomo e,
portanto, de todas as coisas da natureza.
Antigamente,
força era músculos de animais, camelos, elefantes, bois, búfalos, cavalos etc.
Força era também a água, o vento; mais tarde força era vapor d’água, que
acionava locomotivas. Desde o século passado, força é eletricidade, que parecia
ser fraqueza.
Finalmente,
força é esta aparente imobilidade invisível do átomo e, ultimamente, essa
entidade que nunca ninguém viu, do núcleo atômico, o próton. Hoje, o homem se
convenceu que força é aparente fraqueza e imobilidade.
*
* *
No
microcosmo humano, o próton ou núcleo é o seu Eu, que é a fonte de todas as
suas forças e o centro imóvel de todas as periferias móveis; é o ponto fixo; é
o átomo indivisível, o “indivíduo”, indiviso em si e indiviso, não dividido, da
alma do Universo.
Quando
o Nazareno disse que o homem é luz cósmica como ele mesmo, enunciou o ponto
culminante de toda sapiência dos séculos e milênios.
Teilhard
de Chardin falou do “alfa e ômega” do homem; escreveu um livro sobre o fenômeno
humano, que vai da pilosfera através da biosfera, e hoje chegou até à noosfera,
em demanda da logosfera, que é o Logos, o Verbo, o Cristo cósmico, a Luz do
mundo.
Mas,
através de toda essa jornada multimilenar – através da hyle (matéria), dabios
(vida), do noos (inteligência) rumo ao Logos (razão), é o homem guiado, Luci-guiado,
consciente ou inconscientemente, pela luz cósmica do seu Cristo interno.
Dizem
e escrevem certos ignorantes, sobretudo os ignorantes eruditos, que o homem
veio da matéria, do animal – e ignoram a sua própria ignorância. Pois, segundo
a mais comezinha lógica e matemática, o menos não pode produzir o mais, o
inferior não produz o superior. Esses homens confundem fonte com canal, causa
com condição. Possivelmente, o corpo humano tenha fluído através de veículos
materiais, mas, em hipótese alguma, veio desses canais; o homem veio da mesma e
única fonte infinita da qual derivaram todas as águas das coisas finitas. Podem
os finitos fluir através de outros finitos, mas não podem vir de outros
finitos. Podem os finitos funcionar como potencialidades (canais), mas não
podem ser potência (fonte).
Assim
como todos os 92 elementos da química, dos quais vêm todas as coisas, vieram da
luz, como a ciência provou – assim vieram todas as coisas finitas do Infinito,
como a sapiência sabe e intuiu desde o princípio da humanidade.
A
luz da essência humana veio da Luz da Essência Divina. O próprio Cristo, que é
a luz do mundo já plenamente realizada, afirma que também ele veio da Luz
Infinita que ele chama o Pai:
“Eu
e o Pai somos um, mas o Pai é maior do que eu”. Ele, o Cristo cósmico, é o
canal-mestre, que veio da fonte do Pai; e nós somos como que canais secundários
ligados ao canal-mestre dele. Por isso diz ele: “Ninguém vai ao Paia não ser
por mim; eu sou o caminho, a verdade e a vida, quem me segue não anda em
trevas, mas tem a luz da vida”.
*
* *
Onde
não há luz, como já dissemos, não há vida, beleza, alegria. Sem a luz tudo é
morto, feio, triste.
O
que os profanos chamam vida, beleza e alegria é como luz pintada numa tela de
museu, mas não é luz verdadeira e autêntica. Todos sabem que a mais perfeita
luz pintada não ilumina nem aquece; é uma pseudo luz ilusória, fictícia.
Um
incêndio na tela não fornece luz nem calor como um simples fósforo. A diferença
entre luz natural e luz artificial, entre luz verdadeira e luz pintada, não é
questão de quantidade, mas de qualidade. Com a pequena chama de um fósforo
podemos incendiar uma floresta inteira, e iniciar a iluminação da maior cidade
do mundo – mas com uma luz artificial pintada não podemos iluminar uma sala,
nem sequer aquecer um cafezinho.
Quando
a pequena chama de um fósforo encontra combustível suficiente, inicia uma
“reação em cadeia” de caráter molecular, e enquanto houver combustível o fogo
não se apaga.
O
mesmo se dá no mundo metafísico, onde a “reação em cadeia” é sem limites: basta
que apareça um homem-luz, um homem-fogo, e a iluminação e o incêndio metafísico
se propagam irresistivelmente. Há quase dois mil anos que apareceu um homem
dessa natureza, de luz e fogo, que disse: “Eu sou a luz do mundo”; “Eu vim para
lançar fogo à terra, e que quero eu senão que arda? ” – e há quase dois mil
anos muitos homens foram iluminados e ignificados por esse gigantesco incêndio.
Basta que alguém se torne combustível idôneo, para ser iluminado e incendiado
por essa gigantesca conflagração Cristo-cósmica. Dá-se então uma “reação em
cadeia”, um contágio de luz e fogo, quando um homem crea em si a necessária
receptividade luci-ígnea.
*
* *
O
profano está como que na escuridão ou na sombra espessa, porque se acha por
detrás de uma muralha opaca que se ergue entre ele e a luz; vive nessa
escuridão e nada sabe da luz.
O
místico chegou a saber que há luz do outro lado da muralha opaca e, desejoso da
luz, resolveu derrubar essa muralha, que é o mundo material do qual faz parte o
seu próprio corpo e todas as coisas do ego.
O
homem cósmico, porém, descobriu uma terceira alternativa: não está por detrás
de nenhuma muralha opaca, nem derrubou esse muro, mas, de tão iluminado e
lucificado, tornou esse muro transparente. O homem cósmico despertou em si
tamanho poder de sabedoria que conseguiu diafanizar amuralha divisória entre si
e a luz; fez da muralha opaca um prisma cristalino, através do qual penetra a
luz incolor e aparece nas maravilhas das cores do arco-íris, embelezando todas
as coisas da sua vida. Mas para lucificar a muralha divisória das coisas
mundanas, deve ele mesmo ter intensificado ao máximo a sua lucificação.
A
luz incolor é una.
O
prisma tem três faces.
E
o resultado do uno e do três são as sete cores do arco-Íris.
A
alma, a mente e o corpo – esse prisma triangular – quando se tornam
perfeitamente transparentes, podem transformar a luz branca do Cristo na
maravilha multicor – como aconteceu com Jesus de Nazaré, através do qual se
manifestou o Cristo cósmico – e a personalidade do Nazareno apareceu “cheia de
graça e de verdade”.
Quando
o Verbo do nosso Eu crístico se encarna na pessoa humana pela geração e pelo
nascimento, pode o ego humano eclipsar a luz do Eu divino –mas pode também
fazer do ego a mais bela creatura de Deus.
Quando
a personalidade humana do Nazareno foi penetrada pela luz do mundo, ficou esta
terra embelezada pelos esplendores de Jesus de Nazaré, “de cuja plenitude todos
nós recebemos graça sobre graça”.
FONTE:
Huberto
Rodhen
DADOS
BIOGRÁFICOS
Huberto
Rohden; nasceu na antiga região de Tubarão, hoje São Ludgero, Santa Catarina,
Brasil em 1893. Fez estudos no Rio Grande do Sul. Formou-se em Ciências, Filosofia
e Teologia em universidades da Europa – Innsbruck (Áustria), Valkenburg (Holanda)
e Nápoles (Itália).
De
regresso ao Brasil, trabalhou como professor, conferencista e escritor.
Publicou
mais de 65 obras sobre ciência, filosofia e religião, entre as quais várias
foram traduzidas para outras línguas, inclusive para o esperanto; algumas
existem em braile, para institutos de cegos.
Rohden
não está filiado a nenhuma igreja, seita ou partido político. Fundou e dirigiu
o movimento filosófico e espiritual Alvorada.
De
1945 a 1946 teve uma bolsa de estudos para pesquisas científicas, na
Universidade de Princeton, New Jersey (Estados Unidos), onde conviveu com
Albert Einstein e lançou os alicerces para o movimento de âmbito mundial da
Filosofia Univérsica, tomando por base do pensamento e da vida humana a constituição
do próprio Universo, evidenciando a afinidade entre Matemática, Metafísica e
Mística.
Em
1946, Huberto Rohden foi convidado pela American University, de Washington,
D.C., para reger as cátedras de Filosofia Universal e de Religiões Comparadas,
cargo este que exerceu durante cinco anos.
Durante
a última Guerra Mundial foi convidado pelo Bureau of lnter-AmericanAffairs, de
Washington, para fazer parte do corpo de tradutores das notícias de guerra, do
inglês para o português. Ainda na American University, de Washington, fundou o
Brazilian Center, centro cultural brasileiro, com o fim de manter intercâmbio
cultural entre o Brasil e os Estados Unidos.
Na
capital dos Estados Unidos, Rohden frequentou, durante três anos, o Golden
Lótus Temple, onde foi iniciado em Kriya-yoga por Swami Premananda, diretor
hindu desse ashram.
Ao
fim de sua permanência nos Estados Unidos, Huberto Rohden foi convidadopara
fazer parte do corpo docente da nova International Christian University (ICU),
de Metaka, Japão, a fim de reger as cátedras de Filosofia Universal e Religiões
Comparadas; mas, por causa da guerra na Coréia, a universidade japonesa não foi
inaugurada, e Rohden regressou ao Brasil. Em São Paulo foi nomeado professor de
Filosofia na Universidade Mackenzie, cargo do qual não tomou posse.
FONTE:
Huberto
Rodhen
A
VOZ DO SILENCIO
ANÁLISE
- ou SÍNTESE?
NÃO SOU MESTRE DE NÍNGUEM
Sabedoria das Parábolas
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