domingo, 3 de outubro de 2021

OS TRABALHADORES NA VINHA

 

OS TRABALHADORES NA VINHA

(Mt 20,1-16)

Porque o Reino dos Céus é semelhante ao pai de família que, saiu de manhã cedo para contratar trabalhadores para a sua vinha. Depois de combinar com os trabalhadores um denario por dia, e mandou-os para a vinha.

Tornando a sair pela hora terceira, viu outros que estavam na praça desocupados e disse-lhes: Ide também vós para a vinha, e eu vos darei o que for justo.

Eles foram. Tornando a sair pela hora sexta e pela hora nona, fez a mesma coisa.

Saindo pela hora undécima encontrou outros que lá estavam e disse-lhes. Porque ficais aí o dia inteiro sem trabalhar? Responderam: porque ninguém nos contratou. Disse-lhes: ide também vós para a vinha. Chegada à tarde disse o dono da vinha ao seu administrador.

Ao anoitecer disse o dono da vinha a seu feitor: Vai chamar os trabalhadores e paga-lhes o salário, a começar pelos últimos até aos primeiros. Apresentaram-se, pois, os que tinham entrado pelas cinco horas, e recebeu cada qual um denario. Chegando, porém, os primeiros, calculavam que iam receber mais; mas também esses não receberam senão um denario cada um. E ao recebê-lo, murmuraram contra o pai de família, dizendo: Esses últimos trabalharam apenas uma hora, e os igualaste a nós, que suportamos o peso e o calor do dia.

Meu amigo – respondeu ele a um da turma –, não te faço injustiça. Pois não ajustaste comigo um denario? Toma, pois, o que é teu e vai-te. Mas quero dar também a este último tanto quanto a ti. Ou não me será lícito fazer dos meus bens o que quero? O teu olhar é mau porque eu sou bom?

Assim é que os últimos serão os primeiros, e os primeiros serão os últimos. O ego humano deve ser recompensado, mas o Eu divino trabalha de graça. Mais uma das parábolas paradoxais de Jesus: diversos grupos de trabalhadores recebem o mesmo pagamento por períodos de trabalho totalmente diversos. Uns trabalham o dia todo, doze horas, das 6 às 18 horas; outros apenas uma hora, das 17 às 18 horas – e todos recebem o mesmo pagamento.

Onde está a justiça do trabalho?

Alguns intérpretes tentam justificar a aparente injustiça do pagamento afirmando que o último grupo trabalhou em uma hora mais intensamente que os outros; dizem que a intensidade compensou a falta de extensão. Esta explicação é um desesperado escapismo, e prova mais uma vez a impossibilidade de uma justificação no plano horizontal de tempo e espaço, em que esses exegetas se encontram.

Confessemos, lhana e sinceramente, que esta parábola não comporta explicação alguma no plano do nosso ego empírico-analítico.

Mas é um erro fundamental e funesto querer explicar uma verdade nascida da pura intuição espiritual pelos pobres expedientes da análise intelectual. Temos de explicar a parábola de um ponto de vista totalmente diferente.

O nosso ego vive gastando e ganhando, e não pode gastar mais do que ganhassem se esgotar e autodestruir. Se alguém gasta 12 horas de trabalho, tem de ganhar 12 recompensas, sob pena de se diminuir e acabar em 0. Trabalho é despesa, recompensa é receita; o trabalhador tem de ser compensado, completado, porque se descompensou, descompletou. No mundo das quantidades, quem se desquantifica tem de ser requantificado. Quem foi diminuído pelo trabalho tem de ser aumentado pela recompensa.

Se o ego humano não fosse um composto quantitativo, não teria necessidade dessa requantificação (pagamento) equivalente à desquantificação (trabalho).

A igualdade entre gasto e ganho é uma questão existencial para o ego, se ele gasta mais do que ganha, abre falência, acaba em zero, deixa de existir. Por isto, deve haver rigorosa justiça, justeza, reajustamento, entre o que o ego gasta em trabalho e o que ganha em recompensa. Se o homem-ego não é recompensado, ele se descompensa ou aniquila.

Toda a dificuldade em compreendermos esta parábola está no fato de que o homem-ego, que constitui a quase totalidade do gênero humano, só é capaz de pensar em termos de personalidade quantitativa, divisível, e não em termos de individualidade qualitativa, indivisível. O Eu individual não gasta nem ganha, não se decompõe nem se recompõe – ao passo que o ego personal sofre de todas essas taras. Para compreendermos realmente a alma da parábola, deveríamos assumir uma perspectiva fundamentalmente diversa, ultrapassar todas as análises sucessivas, e vislumbrar tudo à luz de uma intuição simultânea. Masquem é capaz disto?

Se a parábola girasse no plano material do símbolo quantitativo do ego, seria clamorosamente injusto o procedimento do empregador – e é esta a falsa suposição que subjaz a quase todas as tentativas de explicação.

A verdade, porém, é esta: a parábola não trata primariamente desse plano horizontal quantitativo do ego; baseia-se na premissa de que “o Reino de Deus não é deste mundo”, não obedece àquele critério. As categorias de tempo e espaço não são o alicerce da parábola. Verdade é que o primeiro termo de comparação é um símbolo material e, como tal, obedece às categorias de tempo, espaço e quantidade. Mas o segundo termo é o simbolizado espiritual e, como tal, nada tem que ver com as categorias de tempo, espaço e quantidade, que são o ambiente do ego.

No mundo espiritual do Eu não há tempo, espaço e quantidade; há somente eternidade, infinito, qualidade. E como a alma da parábola é o simbolizado espiritual, e não o símbolo material (que é apenas seu corpo), a solução tem de ser dada na base da realidade espiritual, e não das facticidades materiais.

No mundo espiritual da realidade qualitativa do Eu não existe tal coisa como “recompensa”. Nenhum Eu espiritual é recompensado por seu trabalho, porque não foi descompensado por esse trabalho. O Eu espiritual é indivíduo, indiviso e indivisível e como tal não pode ser decomposto para ser recomposto, não pode ser descompensado para ser recompensado.

Toda e qualquer descompensabilidade e recompensabilidade são atributos do ego quantitativo, decomponível e recomponível, atributos esses que, de forma alguma, podem ser aplicados ao Eu qualitativo, não decomponível nem recomponível.

Nenhum dos trabalhadores na vinha é recompensado por seu trabalho; todos trabalham de graça, porque não vivem na dimensão mosaica da “lei” (ego), mas sim na dimensão crística da “graça” e da verdade (Eu).

Cada um desses trabalhadores poderia repetir as palavras do Cristo: “Quando tiverdes feito tudo que devíeis fazer, dizei: somos servos inúteis (sem crédito, sem direito a recompensa), porque cumprimos a nossa obrigação, nenhuma recompensa merecemos por isto”. Esta seria a atitude de todos os trabalhadores, se todos estivessem na dimensão espiritual do Eu; mas não foi isto que aconteceu.

Todos estes grupos de trabalhadores na vinha do Reino de Deus deveriam ter compreendido que trabalhavam de graça; ninguém teria direito algum apagamento, porque pagamento é algo que não existe no Reino de Deus; existe somente absoluta gratuidade; todos os trabalhadores cônscios da sua missão se sentiriam “servos inúteis”, sem crédito nem direito a recompensa alguma. Quem se sente útil, credor de recompensa, prova que ainda está marcando passo no plano horizontal, quantitativo, da velha egoidade humana, e nada sabe da “nova creatura crística” do seu Eu divino.

Recompensar, compensar, pensar – são categorias do mundo do ego.

O ego deve ser recompensado, porque é mercenário.

O ego deve ser compensado, porque é incompleto.

O ego deve ser pensado, porque está ferido, e seus ferimentos devem ser pensados por algum enfermeiro. (Estranhamente, pensar é tanto um processo físico como também um processo mental, mas tanto este como aquele têm de ver com o nosso ego, que é pensado, por estar doente; que pensa, por ser fraco).

Ostrabalhadoresdaparábolaquequeremsermaisamplamenterecompensados por terem trabalhado mais tempo, não entraram ainda na consciência da graça e da verdade do Cristo, mas rastejam ainda nas baixadas da lei de Moisés. Não deixam de pertencer externamente ao Reino de Deus –assim como também as cinco virgens tolas são do Reino de Deus, porquanto “o Reino dos Céus é igual a dez virgens” – todos eles são redimíveis, mas nem todos são redimidos. Quem está atualmente na Cristo-vivência da graça e da verdade trabalha jubilosamente na vinha de Deus, seja por muito tempo, seja por pouco tempo, porque vive para além de tempo e espaço, no Eterno e no Infinito, onde não vigora a lei mercenária do ego. Sente-se como um “servo inútil”, feliz em poder trabalhar de graça, pela graça e para a graça.

Em síntese elucidativa: O Reino dos Céus é semelhante a um Pai de família que contratou operários para a sua vinha.

Contratou quatro turmas, cada uma das quais trabalhou como bons mercenários, e todos foram devidamente recompensados. A recompensa foi de um denario a cada operário. O denario equivalia a doze horas de trabalho, de 6 a 18 horas, conforme o empregador combinara previamente com a primeira turma, que de fato trabalhou doze horas, “suportando o peso e o calor do dia”, como alega um da turma. Mas o empregador pagou um denario também aos outros que haviam trabalhado menos de doze horas, inclusive àqueles que haviam trabalhado apenas uma hora, das 17 às 18 horas, mas com os quais nada ajustou.

Com os da primeira turma o empregador combinou um denario por doze horas.

Com a segunda turma combinou pagar-lhes o que fosse justo. Com as outras turmas apenas contratou, sem nada especificar. Com a última turma, que entrou às 17 horas, como dissemos, não contratou nada; apenas lhes disse: “Ide à minha vinha”; mandou que trabalhassem, sem falar em recompensa.

Recompensa equivalente ao seu trabalho. A quinta turma trabalhou só uma hora, sem “o peso e calor do dia”, pois era pela tardinha, podemos dizer que as quatro primeiras turmas foram recompensadas, e os da quinta turma foram agraciados; estes últimos receberam um denario não merecido, mas dado de graça, tanto assim que o empregador diz: “Não me é lícito fazer do que é meu o uso que eu quero? ”

As quatro primeiras turmas são dos egos virtuosos, recompensados por sua virtuosidade.

Os da última turma são os Eus sapientes, não recompensados, mas simplesmente agraciados.

O homem virtuoso não é capaz de trabalhar se não receber nada em retribuição, não na vida presente, mas na vida futura, pois ele não é do egoísmo terrestre, mas do egoísmo celeste, como diz Bergson.

Os virtuosos, ou egoístas celestes, segundo a parábola, também fazem parte do Reino dos Céus, como é ilustrado também no caso do jovem rico, que merecera a vida eterna por ter cumprido todos os mandamentos desde a sua infância; esse jovem era virtuoso, ótimo mercenário na vinha de Deus. Mas quando ele quer saber o que é que lhe falta ainda, além de ser virtuoso e ter direito à vida eterna, o Mestre lhe faz ver que “uma coisa te falta ainda”. Não lhe faltava virtude, faltava-lhe sapiência, auto-realização; faltava-lhe ser bom sem nada esperar em retribuição por esse ser-bom. Esse jovem era condicionalmente bom; faltava-lhe ser incondicionalmente bom. Se assim fosse, não receberia apenas em retribuição a vida eterna, mas “um tesouro nos céus”, e isto o Mestre chama “querer ser perfeito”.

Para ser perfeito, auto realizado, não basta não receber pagamento por ser bom, mas até desfazer-se livremente dos bens materiais que já se possui; não basta não receber, mas desfazer-se do já recebido – libertação total de toda e qualquer bagagem do ego, passada, presente e futura.

“Quando tiverdes feito tudo que devíeis fazer, dizei: somos servos inúteis; cumprimos a nossa obrigação, nenhuma recompensa merecemos por isso”.

Ser servo inútil, sem crédito algum, e fazer tudo que se deve fazer – isto é ser perfeito e ter um tesouro nos céus.

As quatro primeiras turmas da parábola eram “servos úteis”, os da última turma eram “servos inúteis”. Estes últimos não trabalharam com intuito lucrativo; se receberam o denario, não o receberam como recompensa, mas como dom gratuito; aliás, o dono da vinha, como dissemos, não fez contrato algum com eles; simplesmente lhes deu de graça aquilo a que eles não tinham direito.

“Por Moisés foi dada a lei – pelo Cristo veio a verdade, veio a graça.”. Os discípulos de Moisés trabalham dentro da lei, por recompensa – os discípulos do Cristo trabalham de graça, por amor.

Esta parábola termina com a ideia absurda do suposto “merecimento”. Nenhum homem pode ter direito diante de Deus. Nenhum homem pode ter a pretensão de ser “credor” de Deus, e considerar Deus como seu “devedor”. O Creador não pode dever nada à creatura.

O Mestre disse com absoluta clareza a seus discípulos: “Quando tiverdes feito tudo que devíeis fazer, dizei: somos servos inúteis; cumprimos a nossa obrigação – nenhuma recompensa merecemos por isso”.

Ter merecimento, ter direito à recompensa, é ser credor de um Deus devedor.

Em vez do tal “merecimento”, vamos usar a palavra recebimento do transbordamento da plenitude divina. Sendo Deus a Infinita plenitude, ele naturalmente transborda a sua plenitude para todos os lados. E quem está em condições de abertura ou receptividade, receberá desse transbordamento, e receberá na medida da sua receptividade. Receberá de graça essa graça divina; é o homem que determina a medida da sua receptividade. Mas isto não é merecimento no sentido usual do termo; é capacidade receptiva e nada mais. A condição principal para o recebimento desse transbordamento divino está no fato de o homem não se sentir como credor de Deus, e Deus como seu devedor.

Esse erro funesto fecha todos os canais do homem, e a Fonte divina, por mais que transborde, não fluirá para dentro dos canais humanos, não por culpa de Deus, mas por culpa única do homem, que obstruiu seus canais.

A natureza toda recebe automaticamente esse transbordamento da plenitude divina, recebe inconscientemente, sem poder obstruir nem alargar os seus canais.

Mas o homem, dotado de certo livre-arbítrio, tem a possibilidade de abrir e alargar, ou então fechar e estreitar os seus canais.

Todos os dons de Deus são pura graça, nada é merecimento, pagamento, nem na natureza, nem no homem.

Essa atitude de espontâneo abrimento, em face do transbordamento da plenitude divina, enche o homem de jubilosa certeza e inefável felicidade.

Nenhum dos trabalhadores da vinha foi pago; todos receberam de graça o seu denario, e receberam de acordo com a sua receptividade, que era máxima nos que nada reclamaram, e mínima nos que reclamaram.

“Não tenho eu o direito de fazer dos meus bens o uso que eu quero? ”

FONTE:

Huberto Rodhen

 

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